Ao segundo dia, o Square atravessou Barcelos com as múltiplas possibilidades de tradição

Ao segundo dia, o Square atravessou Barcelos com as múltiplas possibilidades de tradição

| Janeiro 31, 2025 11:21 am

Ao segundo dia, o Square atravessou Barcelos com as múltiplas possibilidades de tradição

| Janeiro 31, 2025 11:21 am

Uma das bandeiras do Square, além do de mapear o Atlântico e as músicas dos territórios que por ele são banhados, passa por estimular o pensamento e instar ao sentido crítico, trazendo para o centro do discurso questões que são sistematicamente negligenciadas pela sociedade. Por isso o programa de conferências, que tem lugar todas manhãs nos quarteis do gnration, em Braga, é um segmento tão importante para a filosofia deste festival-convenção, espécie de montra das novas músicas feitas à margem que avança esta sexta-feira para o seu terceiro dia, saltando de cidade em cidade até completar a rede urbana que compõe o Quadrilátero Cultural. Ao segundo dia, a comitiva do Square, que inclui sobretudo agentes da indústria musical, deslocou-se até Barcelos (esta sexta parte para Famalicão, quedando-se depois por Braga até ao quarto e último dia de festival).

“A margem não escreve a história” foi o mote da performance-conferência que juntou a compositora queniana Nyokabi Kariũki ao crítico norte-americano Joshua Minsoo Kim, responsável pela newsletter Tone Glow. Ao longo da melhor parte de uma hora, a música que opera entre as cidades de Nairobi e Nova Iorque, onde reside atualmente, deu a conhecer ao público a história por contar do egípcio e pioneiro da música eletrónica Halim El-Dabh, autor de um dos primeiros exemplos conhecidos de música concreta. Não só a sua história, mas também as peças que compôs para piano e ensembles de cordas e percussão ao longo de um importante (ainda que nem sempre valorizado) percurso que atravessa seis décadas, bem como os ensinamentos dados em palestras em universidades. Experiência incomum e refrescante que, sem intenções de reinventar algo, propôs novas possibilidades a um modelo academicamente formatado.

Groove, jinga e (mais) cowbell é o lema que os neerlandeses Housepainters levaram até ao campo da feira de Barcelos, agregando tanto público do festival como transeuntes que por ali passavam naquela quinta-feira de feira, curiosos com o aparato que se amontoava diante do emblemático chafariz da cidade. Oriundo de Amsterdão, o grupo que começou por tocar em quartos de amigos é hoje dono de um punk  redondo e dançável. Rigorosos na disciplina de fazer mover o corpo sem compromisso, com refrães orelhudos, derivas devedoras da kosmische alemã e linhas de baixo que não enganam ninguém: são herdeiros da escola literata dos Tom Tom Club, sérios conhecedores de arte de desafiar os códigos da pop profetizada pelos Talking Heads e apologistas do rock desalinhado de James Chance e dos seus Contortions.

Seguimos a sinalética disposta nas imediações do Museu de Olaria, conhecemos as diferentes formas de trabalhar a argila (as louças, os vidrados corados, o figurado de Barcelos) e parámos para escutar a interpretação livre e pessoal das galegas Caamaño & Ameixeiras e da tradição dessa região, que devolvem ao presente através de xotas modernas, ritos desempoeirados e canções de engate e amor atrevido. 

No andar subterrâneo de um centro comercial marcado pela passagem do tempo foi improvisado o campo de batalha onde os Hetta, quarteto de pós-punk do Montijo, instalaram uma pequena revolução. O corpo de obra do grupo é curto e as músicas ainda mais, por isso não têm mãos a medir: voragem hardcore, riffs metálicos, progressões que resvalam para o músculo calculista de grupos como os Botch e os Converge. Velocidade e violência, muita. Pausas, quando há, são para respirar e recuperar o fôlego. 

As excursões vindas de todo o país em direção ao Vaticano, um ex-libris da movida nortenha na viragem do milénio; as histórias de amor e abandono movidas pelos ritmos do house, do techno e dos químicos. A memória no regresso a uma das mais emblemáticas pistas de Barcelos, encerrada desde 2020 devido à pandemia. Ao entrar na afamada casa barcelense, contudo, não encontrámos nem techno, nem house, nem qualquer outro estilo assente no compasso quaternário. Bem pelo contrário. Julian Mayorga, figura idiossincrática da música experimental da Colômbia, é a antítese da doutrina instruída pelas lendas de Chicago e Detroit. 

Incessante na busca por um som desconhecido, mas identificável na maneira como reconfigura a tradição das diásporas americanas, como a cúmbia, relata as inquietações contemporâneas (a precariedade, a falta de emprego entre os mais jovens) de forma lúdica, debaixo de um turbilhão de sopros, metais e teclados mirabolantes. E assim continua, até ao fim, gritando máximas de ordem, cantando as ansiedades, jurando morte aos ricos (“a segunda pior coisa do mundo”, disse a dada altura). Só faltou indicar a primeira.

O festival Square continua esta sexta-feira com concertos de Mynda Guevara, SJU e Fidju Kitxora (em Famalicão) e El Khat, Guedra Gedra e ANTCONSTANTINO (em Braga).

 

Fotografia: Sérgio Monteiro