Memória, identidade e novos territórios no arranque do festival Square, em Braga

Memória, identidade e novos territórios no arranque do festival Square, em Braga

| Janeiro 30, 2025 11:03 am

Memória, identidade e novos territórios no arranque do festival Square, em Braga

| Janeiro 30, 2025 11:03 am

O Atlântico como marca indelével do território, capaz de separar e ligar ao mesmo tempo. A descentralização. O terreno, as diásporas e as suas comunidades. Estes e outros temas estiveram em destaque no arranque do Square, festival-convenção que se propõe, nesta primeira edição, a mapear as músicas dos territórios banhados pelo Atlântico (Europa, Américas e África). Integrado no programa da Braga 25 – Capital Portuguesa da Cultura, o evento organizado pela Lovers & Lollypops teve início esta quarta-feira, 29 de janeiro, no gnration. Foi lá, nesse espaço situado num antigo quartel da GNR, hoje um dos mais relevantes pólos culturais do país, que decorreu o painel de conversas dedicadas à geomusicalidade, ao terreno e à acidentalidade, antes de partirmos, sempre sob esse signo, para o plano de atividades que se desenrolou em vários espaços da cidade de Guimarães, ao longo dessa tarde.

Apontamos as coordenadas, seguimos a comitiva que saltitava de sala em sala, à procura, imaginamos, da próxima grande descoberta, e demos de caras com o rock do deserto dos galegos Skanderani, congregação proveniente de Estrella, Pontevedra, que levou as guitarras do norte de África até ao Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Sem reinventar arquiteturas, foram iguais a si mesmos: coloridos como os trajes que vestiam, enigmáticos como as máscaras que os cobriam. Em palco, equiparam-se com bateria, baixo e guitarras elétricas, alguma percussão, um sampler, theremin e uma flauta digital (estilo André 3000). A bateria é certeira e o ambiente – tal como a música que praticam com alguma propriedade – de celebração. Na tela vamos vendo desertos, danças do ventre e crooners à moda antiga. Depois, as cores expandem-se, perdemo-nos nos caleidoscópios e motivos psicadélicos, à medida que o som se molda e se transforma, tornando-se progressivamente mais ácido. Viagem ao outro lado do mundo, sem bilhete de volta.

No auditório do Teatro Jordão, um pouco abaixo do Centro Cultural Vila Flor, palco também deste primeiro dia de festival, a cantora-compositora Arianna Casellas, que já havíamos encontrado numa das conferências, contava-nos (ou será melhor dizer cantava-nos) histórias de luta e aprendizagem, de guerra, saudade e precariedade. A diáspora dos que partiram e a mágoa dos que ficaram. Natural da Venezuela, mas a residir em Portugal desde os 7 anos, encontrou no brasileiro Kauê um cúmplice, e com ele tem vindo a compor preciosas canções feitas de cetim e resistência. Em Guimarães, o duo apresentou-se a meia luz, revisitando os temas do seu novo disco, Suenan las Campanas (“Soam os Sinos”), gravado entre o Porto, Trás-os-Montes e Lisboa.

Equilibrando ​​cordas e percussão insistente, cantaram, nesse espaço, a angústia e o sofrimento dos antepassados, refletindo sobre a imigração e os efeitos da violência geracional. Cantaram sobre a resiliência daqueles que, com o pouco que tinham, foram capazes de dar a volta, de virar a página e sair por cima. Cantaram ventos de mudança e novos auguros. Cantaram, enfim, sobre o poder aglutinador da música, com a paixão de quem vê nessa arte um ato de libertação e de fé — individual e coletiva.

Longe das diásporas referenciadas, mas isolados numa Grã-Bretanha pós-Brexit, os Comfort foram implacáveis no betão que sustenta as imediações do Teatro Jordão, debaixo de um velho arco de granito. Pobre mas firme estrutura, com todas as suas falhas e particularidades à vista, a servir de metáfora apropriadíssima para este duo proveniente de Aberdeen, que junta kit de bateria e eletrónicas propulsivas a uma voz em tudo fleumática. Pensar em paralelismos levar-nos-ia às vozes de Nina Simone, Geordie Greep e John Lydon, mas qualquer comparação possível seria redutora para a elasticidade de Natalie McGhee.

O grupo, que editou What’s Bad Enough pela FatCat, a mesma casa de mùm, Animal Collective e Sigur Rós, partilha o formato económico dos Sleaford Mods e o cuspe virulento de Kae Tempest, algures nessa mesma intersecção entre o nervo do hip hop e a espinha dorsal do pós-punk. O som, grosso modo, é propulsivo, graças à força buliçosa do irmão Sean McGhee, exímio na criação de padrões tétricos e incomuns. A postura, como a que testemunhamos na “cidade berço”, é galvanizadora, com a cantora a passear-se entre os poucos corajosos que ousam aproximar-se do rebuliço do palco. Já a energia transmitida, essa, é tangível, opondo frieza a um forte jogo de cintura — sempre em desrespeito pela ortodoxia.

Fotografia: Adriano Ferreira Borges (segunda) e Sérgio Monteiro (capa e restantes)