O primeiro dia, chamado dia 0, é o dia em que está tudo a conspirar quais os concertos que farão o Milhões e que daqui a uns anos ainda serão falados.
À cabeça estavam Live Low, que tivemos tempo de observar apenas o fim, Enablers que deram um show de como tocar como os Slint e recitar poemas como Nick Cave, com um vocalista sempre comunicativo a fazer dedicatórias a cada música que se iniciava e a tentar quebrar o gelo que existe sempre nos primeiros instantes de concerto.
Todas as letras em Enablers contavam uma história que nos poderia passar à frente dos olhos ou mesmo acontecer connosco, visto serem acontecimentos que podem desenrolar-se com cada um de nós no nosso quotidiano. Uma banda com todos os elementos fortíssimos, um baixo sempre presente a acompanhar uma bateria monótona que se fazia sentir por todos com o seu vocalista.
O concerto acabou e já se começava a sentir o frio das noites em Barcelos, acompanhado pelas jams que variavam entre o ambiente e o experimental da Favela Discos, que se tem revelado um dos projectos mais interessantes que se pode acompanhar actualmente em Portugal.
Em seguida tocaram o duo Cigarra & Birdzzie, composto por um brasileiro e um português, explorarando a música da América Latina de maneira a pôr todos os que estavam presentes a dançar. Dito e feito, cumbia durante todo o concerto, o qual fez valer a noite pelo facto de surpreender quem não esperava muito de um colectivo pouco conhecido. É isto o que o Milhões de Festa costuma fazer, dar a conhecer, o derreter fronteiras será sempre mostrar o que há para além do nosso e o que de bom se faz lá fora e mesmo cá dentro onde existem várias fronteiras ainda a ser derretidas.
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Stone Dead |
A noite já se fazia longa quando os Stone Dead deixaram o palco que estava a ser preparado para o sírio que veio a Portugal sem muito nas mãos a não ser a sua case. Sem saber nada de português ou inglês, Rizan Said, antigo teclista de Omar Souleyman, chegou a Barcelos como o King of The Keyboards. Sem grandes apresentações todos se aglomeraram junto ao palco para a que ia ser a primeira grande “gessada” da noite.
Foi O Concerto da noite a par da actuação que iria suceder o sírio, que tocava incessantemente para gosto e delírio de quem observava. De tudo um pouco fez Rizan para alegrar a malta, chegando até a tocar músicas em que colaborou com Omar Souleyman ou mesmo Acid Arab. Podemos mesmo ser todos Síria após este concerto, visto ser um dos conflitos periféricos existentes na nossa civilização. O Rei já esteve em Barcelos a mostrar o ar de sua graça e nós adorámos.
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Rizan Said |
E para acabar a noite em beleza, o regresso de um filho que o Milhões viu crescer: Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs, ou Piiiiiiigs ou “Pigs vezes sete”, como se ouviu ao longo da noite para abreviar a repetição de um nome que às tantas já seria complicado pronunciar. Foi outro dos grandes shows do dia “0”, tendo em destaque o seu vocalista que a par de danças em torno do palco, tinha uma postura semelhante à de Iggy Pop. Um concerto em que o som estava tão alto que nos recordou de comprar uns auditivos para aguentar a carga que foi o concerto de “pigs vezes 7”. Este ano nem a polícia se importou com o barulho.
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Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs |
Para acabar a noite, o já conhecido conjunto de “DJs da Casa”, a fazerem o prolongamento da noite que viria a acabar mais tarde.
Em suma, o dia “0” é apenas 0 de nome, pela potência de bandas e géneros postos em provas no dia 20 de julho. Podemos dizer que o dia 1 foi mesmo no dia 20 graças à força que foi mostrada por bandas como Stone Dead, Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs e com artistas como Rizan Said, que nos fez delirar e suar numa noite que aparentava ser fria.
Dia 1
O primeiro dia despertou com o cantar de galo e com a habitual conversa e passagem de música entre acampamentos que pareciam não querer descansar. Este dia seria composto já pelo amado palco Piscina, excelente para o dia que estava devido ao muito calor que se fazia sentir.
As bandas que interessavam ver eram então Orchestre of Spheres e Mehmet Aslan mas, decidi aproveitar para mergulhar e sentir o som bem dentro da água quando actuavam ainda Lavoisier e Barrio Lindo, DJ já conhecido em Barcelos pela sua cumbia que não deixa ninguém indiferente. Foi um concerto interessante visto ser a junção de DJing e música muito ligada à Tropicália, que surgiu no Brasil com conjuntos como Novos Baianos ou mesmo com Caetano Veloso.
De seguida surgiu GPU Panic + Shake It Machine, um concerto em que cada música encaixaria perfeitamente num filme de Stanley Kubrick, em que o espaço da acção seria o deserto e uma nave espacial aterrava em busca de vida. Com bastantes semelhanças a Jean Michel Jarre, Mike Oldfield entre outros artistas de rock progressivo e dos primórdios da música electrónica, GPU Panic + Shake It Machine conseguiram surpreender a audiência que tanto parecia estar dentro da piscina a aproveitar o sistema de som como no relvado.
A partir daí foi o corropio total, estive entre Taina e Piscina sempre a correr, dum lado para o outro. Vi TAU, uma viagem ancestral com um guitarrista que avisou o público presente que Redbull matava e era tóxico e que drogas podiam ser consumidas à vontade. Um concerto em que o que se pode retirar é: cada um dos dois elementos poderia ter um projecto a solo graças à forte personalidade apresentaram no Palco Taina. Rock psicadélico no seu sentido mais puro, exploração de texturas musicais, parecia que tínhamos viajado até uma comunidade hippie e estávamos a aprender a tocar com TAU.
Vi também um pouco de Orchestre of Spheres e isso bastou. Isto porque para além da indumentária que apresentavam, parecida aos filmes de ficção científica, a banda apresentou um repertório fortíssimo que fez a enchente da tarde na piscina. Mas o que interessava era mesmo Blown Out, que seria a banda revelação do festival deste ano, assim como tinha previsto e comparado com My Expansive Awarness, presentes no Taina o ano passado.
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Orchestre of Spheres |
Foi um concerto arrebatador, com jams infindáveis. Tocavam sempre enquadrados, pareciam peças dum jogo de xadrez, duas torres na guitarra e no baixo e um cavalo na bateria, sempre a martelar forte e a mandar vibes doom e stoner rock para a audiência que já se fazia sentir no Taina. Valeu a pena esperar até julho para ver Blown Out a fazerem jus ao seu nome, rebentaram os tímpanos a todos os presentes.
A correria iria continuar. Quando cheguei ao palco da Piscina já Mehmet Aslan actuava e o público abanava o corpo. Ninguém conseguia parar, o DJ conseguiu agarrar no público que tanto esperou pela chegada do tão aguardado Mehmet. “Mechanical Turk” foi a malha do concerto, que me fez abandonar a piscina satisfeito.
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Mehmet Aslan |
Fui atestar ao Taina e já tocavam os Systemic Violence, um punk incendiário, anti-sistema, corrosivo e que fazia frente a qualquer força que os tentasse enfrentar. Deu para sentir assim ao longe o mosh e as letras sobre a “bófia” e sobre “muitas merdas que acontecem na vida”.
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Systemic Violence |
Após este concerto segui até ao campismo para preparar a noite que iria ser forte com FaUSt e GNOD, banda já conhecida em Barcelos, e ainda com o DJ Gaslamp Killer no palco principal. Comecei por ver o que se passava no palco principal quando cheguei. Já actuava a mega banda de Alvalade, Cuca Monga, que fez música de ambiente para quem ia jantando, não conseguindo obter muita aderência do público que ou se ia juntando ou estava a jantar.
A seguir surge um dos momentos mais altos da noite no Palco Lovers &Lollypops, um dos concertos que vai marcar o Milhões de Festa pela sua aposta na World Music como ela é, sem fronteiras e com a capacidade de mostrar mais mundo ao Mundo.
Decorem este nome nas vossas cabeças: Ifriqiyya Électrique, ou seja, Itália com a super baixista de Putan Club, banda que tive já a oportunidade ver ao vivo algumas vezes e aprender a apreciar visto ser uma banda com um conceito muito diferente; França com o guitarrista de Putan Club, sendo África, Turquia e Tunísia os restantes elementos. Uma família muito bem constituída, não fosse esta noite a que considerei a noite das famílias musicais, tivemos Cuca Monga que são uma família portuguesa, Ifriqiyya Électrique que seriam a família mais humilde que tive oportunidade de ver este ano e ainda FaUSt e GNOD, que fizeram um belo dum concerto que mais à frente falarei.
Mas adiante, explicar o porquê de ter sido um dos momentos altos da noite e um dos concertos que marcará decerto o Milhões de Festa: deixaram em transe com o seu trance tribal, puxando os galões de Putan Club para algo ainda mais agressivo, mais industrial e ainda marcado pela cumplicidade entre os elementos da banda e público, que se mostrou sempre pronto para mais música e manter o seu “ritual” em continuidade.
World music no estado puro, feita a partir do subúrbio, de quem veio com o que sabia fazer musicalmente e com a força do seu trabalho. Ainda se pediu encore mas infelizmente não foi concedido.
Setlist:
Laa Ia illa Allah
Qaadrii- Salaam Alaik- Massarh
Mawwel
Zuru el Haadi- El Maduulaa-Maaluuma
Stombali—Baba ‘Alaia
Annabi Moham- Laa Ia illa Allah- Deg el Bendir
Lavo- Baba Marzug- Sidi Saad-Allah
Arrah arrah abbaina- Bahari- Tenouiba
Sidriiya
Fomos acompanhado a banda até ao Palco Milhões onde se esperava fervorosamente e ansiosamente o conjunto alemão FaUSt com GNOD. As betoneiras estavam prontas e só faltava começar o show.
Show esse que parece nem começa. A família FaUSt & GNOD parecia estar a afinar os instrumentos mas o concerto já tinha começado. Puro improviso. Um concerto que mais parecia uma obra de arte que um artista como Dalí ou André Breton fariam dado o cariz surrealista a que estávamos presentes. Aliaram a actuação à representação, existindo um elemento a movimentar-se em torno do palco, e bailarinas que utilizavam manequins de lojas de roupa como indumentária. Foi uma “trip” incrível, até chegar uma senhora a varrer o chão do palco.
Até aí foi sempre puro improviso, uma obra de arte a gravar na cabeça.
Do nada começam a chover pedras para cima do público, atiradas pelo vocalista da banda que entoava palavras de incentivo à revolução, de inconformismo e luta contra o sistema violador e castrador das liberdades do povo que as merece. Também do nada surge um baterista (mais parecia saído dum filme como o “Senhor dos Anéis” dada a sua altura assustadora), que até ao momento estava no seu “apartamento” ao lado do baterista de GNOD, fazendo sequências brutais de bateria. Começa a mistura de pedras nas betoneiras que começam também a ser utilizadas como instrumento de percussão.
O puro improviso seguiu-se quando se utilizaram para percussão barris de gasolina, massacrados pelos elementos da banda e mais tarde pelo público que se apoderou do barril e foi acompanhando a banda enquanto esta continuava a tocar.
Daí este ser o concerto que vai marcar o Milhões até termos filhos. A oportunidade de vermos ao vivo as lendas do kraut alemão FaUSt com uma banda actual de krautrock como os GNOD – basta ouvir o último álbum da banda Just Say No To The Psycho Right-wing Capitalist Fascist Industrial Death Machine, um álbum de crítica ao actual sistema político inglês que parece cada vez mais assemelhar-se aos anos da “Dama de Ferro”.
A viagem espacial com FaUSt e GNOD acaba com uma apoteose do público que demorou a descer à terra após quase duas horas de concerto.
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FaUst & GNOD |
O primeiro dia estava a ter o seu término e faltava mais uma actuação pela qual toda a gente esperava: Gaslamp Killer.
DJ que actualmente vive em Los Angeles mas que tem a sua origem e família quase em torno de todo o globo, trouxe ao festival um set que variou entre o punk, chegando a passar Nirvana, e o hip hop e o trap, passando nomes conhecidos como Kendrick Lamar. Apesar de existir uma grande parte de público a adorar o concerto, este fica na memória como um concerto em que pouco ou nada se adiantou visto que o DJ apesar de ter uma grande presença em palco, se observássemos este nunca esteve parado um segundo, não conseguiu cativar pela oferta que passou no seu set.
Valeu a pena ouvir a “Nissim” do seu álbum Breaktrhough.
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Gaslamp Killer |
A primeira noite iria terminar com Switchdance, DJ que toca em espaços como o Lux Frágil, que teve uma presença normal no festival, dando um set que se acostuma ao que estamos habituados a ver nas discotecas.
Com a manhã a subir começa também a chuva a cair e o medo de não existir primeiro dia de after também começou a fazer a cabeça a muita gente. Mas São Pedro foi amigo e conseguimos ir até Barcelinhos para o after da ÁCIDA onde actuavam os Solar Corona, grupo da terra do galo, que acordou toda a vizinhança e deu um excelente concerto para começar bem o dia.
Só depois deste concerto e de um pequeno-almoço consistente de panado misto e vinho verde é que daríamos por concluído o nosso primeiro dia, ou segundo, de Milhões de Festa.
Reportagem por: Duarte Fortuna
Fotografia por: Ana Carvalho dos Santos