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Fotografia: João Machado
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Carisma. São poucos os que hoje podem reclamar com justiça esse distintivo comumente vulgarizado. Adrianne Lenker, cantora, compositora e cérebro máximo dos Big Thief, é certamente uma delas. A sua voz, singular no timbre e afinco com que articula cada palavra, é detentora de uma poderosa carga emocional, alternando entre o vibrato possante e o mais delicado sussurro. Ao lado da sua banda, com quem partilha uma profunda afinidade desde 2015, a americana percorreu um dos mais admiráveis percursos da música independente dos últimos anos, editando quatro documentos preciosos da nova música folk. Os últimos Two Hands e U.F.O.F, que marcaram a estreia do grupo nas edições pela 4AD, chegaram ambos em 2019 e projetaram-nos para um justo reconhecimento internacional. Foi precisamente com estes discos que a banda regressou a Portugal, depois de atuações nos festivais Vodafone Paredes de Coura e NOS Primavera Sound, para dois concertos em nome próprio. O LAV, em Lisboa, e o Hard Club, no Porto, acolheram os primeiros concertos da digressão europeia iniciada na capital.
Depois de uma primeira parte sólida dos Pays P., trio francês que entreteve uma pequena porção do público que encheu a sala portuense, a banda americana subiu finalmente ao palco para júbilo dos muitos que se deslocaram ao antigo Mercado Ferreira Borges. Equipada de um imprevisível microfone de cabeça (as comparações a Britney Spears, a mais notável utilizadora deste equipamento, foram inevitáveis), Lenker arrancou a noite com três novas canções, ainda verdes e em versão beta. Os rodeios e a dificuldade em afinar o tom eram visíveis nos olhares hesitantes dos seus parceiros, fazendo-nos questionar se nos encontrávamos num ensaio intimista, mas o potencial das canções é evidente – melodias caprichosas e emoções à flor da pele a lembrar Lucinda Williams e Elliot Smith.
É ao som de “Forgotten Eyes” que a máquina parece finalmente oleada. O primeiro tema de Two Hands a surgir no alinhamento trouxe nova vida à atuação e uma renovada atenção por parte do público. Seguiram-se as mais celebradas “Masterpiece”, do álbum de estreia com o mesmo nome, e “Shark Smile, do maravilhoso Capacity, de 2017, onde um manto turbulento de experimentação ruidosa dá origem a uma linha de baixo distinta que coaduna os restantes três membros da banda. Da beleza de “Mythological Beauty”, mais uma das coroas de Capacity e uma das provas concretas do génio de Lenker enquanto contadora de histórias (atente-se no relato visceral com que canta o acidente que ameaçou a sua vida quando tinha apenas 5 anos), seguiu-se a dolência de “Terminal Paradise”, original de Lenker que recebeu novo tratamento em U.F.O.F., e a fragilidade de “The Toys”. E se o rock ainda está vivo, então habita no fabuloso solo de “Not”, portento revigorante que trouxe um novo e esperançoso folgo à música feita com guitarras.
Os últimos minutos da noite foram reservados para uma “Cattails” com final feliz, já que o tema não teve a mesma sorte na noite anterior, em Lisboa, onde acabaria a ser abortado após várias tentativas para encontrar o tom correto da guitarra. “Mary” ainda serviu para aconchegar a alma dos mais enamorados mas foi com a final “Contact”, que introduz o primeiro dos últimos dois álbuns, que a banda encheu as medidas do público que, já no encore, assistiu ao assombroso bradar de Lenker.
Ao longo de 60 minutos, Adrianne Lenker, Buck Meek, Max Oleartchik (bass) e James Krivchenia cantaram-nos as feridas, os traumas e os amores que os atormentam, a eles e a nós, reforçando uma profícua relação de respeito e humanidade com o público português.