Out.Fest 2021: um testemunho

Out.Fest 2021: um testemunho

| Outubro 17, 2021 4:52 pm
Jessica Ekomane_OUTFEST_Nuno Bernardo

Out.Fest 2021: um testemunho

| Outubro 17, 2021 4:52 pm

Barreiro, 8 de outubro, noite, auditório, Jessica Ekomane. Uma performance sóbria de 3 actos: em primeiro tão-só uma divergência e convergência de puros sintéticos, assumidamente simples mas de textura penetrante, produzidos num equilíbrio de etéreo e austero; depois, algo duma brandeza esotérica a fazer lembrar Kaitlyn Aurelia Smith, mas enchendo-se para algo mais maníaco, mais dos ambientes abrasivos de Fuck Buttons; por último, depois de ondulações de sintetizador (e oh gente, com o chão a vibrar numa sinusoidal diferente das que se ouvia), começou-se a entrar num carrilhão de beep-boops divertidos mas rígidos, que eventualmente escalaram no frenesim e na harmonia, soltando-se num clímax fustigante sob a forma de batidas, as primeiras a serem ouvidas, parecendo batuques em borracha. Ela, mais o super jogo de luz, deixou-me imerso. Talvez o que mais me agradou do festival.

A seguir, Serpente e seu apetrecho eletrónico, mais o contrabaixo de Margarida Garcia e o saxofone de Pedro Sousa. Começa o maestro, impondo-se logo com piparotes disparados de todas as direcções, misto de arcaico e alienígena, sempre imprevisível, irrequieto, divertido, quase claustrofóbico. Vem o contrabaixo, adensando a sala com nevoeiro agoirento e depois o saxofone, mais propriamente uma respiração circular de notas tenebrosas. Começa-se a ser (des)orientado para uma selva sonora onde somos assoberbados com dançáveis rituais de inúmeras tribos, que só uma centopeia conseguiria acompanhar. A multidança da Serpente vai alternando entre esporadicidade e cacofonia, o saxofone entre a calma lúgubre e o delírio, no contrabaixo experimentam-se todo o tipo de distorções e formas de tocar o instrumento. Cada um dos 3 soube muitíssimo bem mostrar o que vale.

Serpente_OUTFEST_Nuno Bernardo

9 de outubro, tarde, um anfiteatro de pedra no parque, Space Afrika. Depois do burburinho que Honest Labour criou, talvez o que o público mais esperava. Apesar do meu cepticismo, acabei rendido. Trabalho honesto. Vazio de cor mas cheio de alma, flutuando entre um ambiente Burial-esco e um dub desconstruído, enquanto desenha um espaço de desolação e fatiga onde ainda é capaz de haver esperança, uma luz que nos apoquente. Camada espessa de melancolia com fantasmagóricos vocais e barbitúrica batida transforma-se num abraço frio que ainda é capaz de reconfortar. O mero facto de sermos mergulhados na chuva inglesa e no silêncio solitário da noite citadina, total antítese da tarde calma e suburbana em que nos encontrávamos, acrescentou um véu de serena fragilidade e uma certa alienação. Tudo nos escapa pelos dedos, foi a sensação com que Space Afrika nos deixou depois de um concerto que terminou demasiado cedo, queria ter estado mais tempo rodeado daquele céu nublado.

Space Afrika_OUTFEST_Nuno Bernardo

Já de noite, já no auditório, Gustavo Costa. Exercício de total contenção e libertação, espasmódico e calculado ao milímetro. Firme e seguro no caos total que emanava das suas mãos, enquanto ia mudando o que percutia e o que usava para percutir, demonstrando total comunhão pelos âmagos da percussão. Valia de tudo para nos embrenharmos no emaranhado, desde pratos de diferentes notas por cima da pele de tambores, objectos em queda, grandes pratos levemente percutidos e pequenos pratos arranhados com arco, grandes chapas metálicas que libertavam sons cavernosos (sim, todos estes objectos terão o seu nome, mas dessas tecnicalidades eu não entendo), até bolhas em água serviu para criar batidas orgânicas. Vais e vens de tensa calma antes de desvaires que nos deixavam uma e outra vez estacados, infectados por aquele estupendo sonho febril.

E finalmente, Still House Plants. Trio promissor no meio desta aparente vaga de rock jovem, matemático, encardido e transgressivo que tem saído de Inglaterra. Comparação com a estriquinina de Black Midi é inevitável, mas justa – embora compará-los com Squid ou Black Country, New Road já não faria tanto jus à bizarrice destes três. Este trio consegue despir-se ainda mais da típica musicalidade, ou sequer da mínima convencionalidade. Acutilantes como um garfo. Uma guitarra incessante a sujar a sala toda, uma bateria esparsa mas impositiva, quase bélica, conjugado com uma voz bem mais grave que o ar angelical da cabecilha faria crer, a quem o cantar parecia ser mais um exercício de relaxamento da voz e da psique. Três elementos sempre bem equilibrados entre si, dando-nos sempre o ocasional espaço para vir à tona respirar um pouco. O hipnotizante, jovial e modesto caos, que emanava um espírito DIY de punk embriagado que me trouxe Unwound à memória, conjugou-se em algo de venerável que me deixou bem abesbílico.

E pronto, assim foi o Out Fest. Irredutível e irrepetível. 2021 foi casta de alto gabarito, vamos lá ver o que 2022 trará.

Still House Plants_OUTFEST_Nuno Bernardo

Texto redigido por Nuno Jordão

Fotografia por Nuno Bernardo

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