Sónar Lisboa: entre o hedonismo e o desejo de experimentar, venceu a vontade de dançar

Sónar Lisboa: entre o hedonismo e o desejo de experimentar, venceu a vontade de dançar

| Abril 14, 2022 8:00 pm

Sónar Lisboa: entre o hedonismo e o desejo de experimentar, venceu a vontade de dançar

| Abril 14, 2022 8:00 pm

É um dos mais prestigiados festivais no campo da música electrónica e das artes digitais. Fundado em 1994 na cidade de Barcelona, o festival Sónar é hoje uma voz global com cerca de 100 edições em mais de 30 cidades espalhadas por todo o mundo, de Hong Kong a Nova Iorque e Buenos Aires. Nos dias 8, 9 e 10 de abril, Lisboa acolheu cerca de 27 mil pessoas, oriundas de 60 países, para a primeira edição do Sónar em Portugal, que se realizou entre o Centro de Congressos de Lisboa, o Coliseu dos Recreios, o Pavilhão Carlos Lopes e o Hub Criativo do Beato.

Um dos primeiros grandes momentos do Sónar deu-se no no Pavilhão Carlos Lopes, situado no Parque Eduardo VII, com a artista transdisciplinar Alejandra Ghersi, ou seja, Arca, que ao longo dos últimos anos tem vindo a demonstrar as suas diversas facetas em diferentes palcos e festivais do país. Impulsionada pelo recente lançamento dos cinco volumes que compõem a aclamada série KiCk, que conheceu a sua forma final no último mês de dezembro, a venezuelana radicada em Barcelona trouxe consigo uma nova e inventiva forma de construir universos, com visuais distorcidos feitos à sua imagem e uma sede imensa de reabrir a pista e conquistar o mundo (“Que me como al mundo ya / Con estas ganas de follar ya”, cantava em “Rakata”).

Através de um set híbrido, entre a performance, as práticas do djing e o lip sync, a artista apresentou um espetáculo extravagante que teve tanto de concerto como de culto de personalidade e performance de facto vocal, com direito a paragens pelo trap, baile funk e dembow — receita ideal para um há muito almejado (e merecido) serão de desbunda. Fogo!

A passagem de Leon Vynehall pelo Coliseu dos Recreios representou, em certa medida, a máxima-maior do Sónar: equilibrar o espírito lúdico e hedonista da música de dança com o ímpeto e o desejo da experimentação. O músico e produtor britânico é um mestre da sua arte, capaz de cruzar os mundos aparentemente distantes da house com o jazz, a dub, a música ambiental e as texturas pós-industriais do grime mais escorregadio. E assim o fez, munido de sintetizadores, sempre com a destreza e confiança de um verdadeiro artesão.

Não admira que Sam Shepherd seja doutorado em neurociência. A música que o britânico fabrica enquanto Floating Points é cerebral, calculista e altamente rica, equilibrando virtuosismos rítmicos com minuciosos exercícios de exploração timbral. Mas ao contrário do que aconteceu na edição de 2016 do NOS Primavera Sound, onde apresentou os temas de Elenia ao lado de um baterista, o autor de Promises, magnífica obra feita a meias com o saxofonista americano Pharoah Sanders e a Orquestra Sinfónica de Londres, apresentou-se a solo para um set imperdoável de eletrónicas ritmadas e energia avassaladora — e os resultados foram recompensadores, conquistando a maior enchente da segunda noite do festival.

O grande evento da noite coube, no entanto, aos britânicos Bicep, que se apresentaram no palco do Coliseu para um espetáculo audiovisual de qualidades multi-sensoriais. A dupla de Andrew Ferguson e Matthew McBriar encontra-se a atravessar uma jornada feita de triunfos, com dois álbuns aclamados e passagens por eventos reputados como o londrino Field Day ou irlandês AVA Festival, e o concerto que apresentaram em Lisboa foi digno de cabeça de cartaz, feito de material único e original acompanhado de uma deslumbrante seleção de projeções alusivas à distinta identidade gráfica do duo natural de Belfast.

A canadiana Jayda G conseguiu o que muito poucos conseguiram nesta primeira edição do Sónar Lisboa: quebrar com a ubiquidade do compasso quaternário. A par do virtuoso baixista norte-americano Thundercat, um caso isolado no restante tecido do cartaz, a dj e produtora radicada em Berlim trouxe groove e boa disposição ao palco maior do Pavilhão Carlos Lopes, com clássicos — novos e antigos — do funk e da soul norte-americana. Minutos antes, os franceses Polo & Pan percorriam outras coordenadas: eletrónica lúdica, em tudo muito francesa, da french touch à exótica ou à canção francesa (a cantora e colaboradora Victoria Lafaurie subiu ao palco por várias vezes para interpretar alguns dos temas que compõem Caravelle).

Já nos metros finais do evento, momentos antes do grande encerramento com a parelha entre as portuguesas Bleid e Violet, os ingleses Overmono, dos irmãos Edward e Thomas Russell, provaram que as tradições britânicas do garage e da bass music continuam bem preservadas: batidas ponderadas, gravosas e altamente contagiantes, com subterfúgios pelo techno e pela house mais propulsiva, a revolução electro dos Daft Punk ou o ácido pungente de Aphex Twin (a inclusão de “Lisbon Acid” foi uma bonita homenagem à cidade que, durante três dias, foi epicentro para alguma da mais essencial eletrónica dos últimos tempos).

Nem tudo foi um mar de rosas: o cancelamento das atuações de DJ Shadow, Total Freedom ou DJ Nigga Fox; os sistemas dúbios de pulseiras recarregáveis (e respetivos preços proibitivos das bebidas); a distância considerável entre as várias salas ou a falta de um passe diário geral com acesso aos diferentes espaços são pontos menos favoráveis e que devem ser repensados no futuro, mas há aqui um espírito e energia que não podem ser negados — Lisboa tem o clima, os fundos e as infra-estruturas necessárias para continuar (e elevar) o legado do Sónar enquanto instituição. A próxima edição já está marcada: 31 de março, 1 e 2 de abril de 2023.

Fotografia: Diogo Lima, Marta Santos, Filipa Aurélio.

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