Em tempo de guerra, a percussão de João Pais Filipe e Franck Desire foi um símbolo de paz

Em tempo de guerra, a percussão de João Pais Filipe e Franck Desire foi um símbolo de paz

| Fevereiro 6, 2023 3:54 pm

Em tempo de guerra, a percussão de João Pais Filipe e Franck Desire foi um símbolo de paz

| Fevereiro 6, 2023 3:54 pm

A segunda proposta da rentrée da Lovers & Lollypops juntou João Pais Filipe ao percussionista haitiano Franck Desire , num frutífero encontro entre dois instrumentistas que cruzaram as suas linguagens individuais para delinear um envolvente mundo que só a eles lhe pertence. Mais do que um mero concerto, isto foi uma esplêndida troca de ideias,  um diálogo magistral entre o toque exótico do músico caribenho (ao qual se juntava o reconfortante timbre do seu canto harmonioso, evocativo de um modo espiritual) e as batidas certeiras de João Pais, irrepreensível como sempre na exploração do seu tribalismo hipnótico. E se esta interação, no papel, já soava bastante promissora, na prática revelou-se surrealmente bela, como se os dois músicos fossem almas separadas pela geografia mas unidas pelo destino, pela vontade de desbravar em conjunto frescas  possibilidades  sonoras.

 Os ritmos desenrolavam-se de forma fluida, imbuídos de uma magia extraordinariamente esotérica, e a mente viajava sem barreiras, estimulada  pela força de sons “quentes” e inebriantes que ecoavam livremente  numa jam maravilhosamente etérea, dir-se-ia até onírica no seu psicadelismo vibrante. Por vezes notávamos Franck a observar o seu companheiro com um olhar de aprovação (ele próprio chegou a elogiar  o talento de João Pais quando enfatizou a velocidade com que este tocava – não ousamos discordar, a destreza do homem é absolutamente admirável) , mas ambos pareciam comunicar um  com o outro em tempo real, construindo a sua química à medida que a atuação ia avançando – uma autodescoberta orgânica , ininterrupta e docemente imprevisível, pois por muito que tivessem previamente considerado possíveis caminhos, sentia-se que só na hora decidiram o rumo final, assim ao sabor do vento numa espontaneidade luminosa. Aliás, o tempo não era aqui um factor, pois o duo deu-se ao luxo  de prolongar a sua estadia, como se quisesse saborear até ao limite a felicidade desta abençoada reunião; realmente, porquê parar quando o clima era tão delicioso, tão incrivelmente rejuvenescedor? A vida já é curta demais, pelo que urge valorizar  estes momentos irrepetíveis.

Assim, depois de uma hora de atuação, houve uma pequena pausa para que todos pudessem  jantar( sim, porque as instalações da Lovers também oferecem comida de conforto, não falta nada nesta casa do povo) , conversar e recarregar energias-  se bem que cansaço nos artistas não se notava.  Na verdade, alguns minutos depois, já estavam novamente na garagem a dar tudo, e registaram-se  aqui os momentos mais festivos, mais autênticos, de toda a prestação. É que se a primeira parte foi sobretudo dedicada à exploração, a segunda foi uma ode à celebração, à pureza da harmonia que muitas vezes só a música consegue instalar. Na verdade , foi aqui que mais se sentiu o espírito Milhões de Festa, aquela atmosfera idílica de descontração máxima, a  alegria de viver, de curtir um bom som num ambiente altamente intimista. Olhávamos à nossa volta e víamos as pessoas a dançar, a beber, a conviver, até crianças a brincar na mais bonita das inocências, víamos gente  a aproveitar  vida , caraças  e só  pensávamos que isto sim,  era o paraíso, a doce utopia do underground em todo o seu magnífico esplendor. Concertos assim – não, não, desculpem, rituais  de renovação espiritual, já que a nossa alma saiu de lá a chorar de alegria –   adoçam o  estado de  espírito de qualquer melómano. Sem dúvida algum , esta foi a melhor, a mais brutal e eufórica atuação que já testemunhamos nas instalações da Lovers. Ficará para a história, e quem lá esteve poderá contar.

Texto: Jorge Alves
Fotografia: Ângela Silva

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