Los Sara Fontán + Montes: o doce sabor da liberdade sem fronteiras

Los Sara Fontán + Montes: o doce sabor da liberdade sem fronteiras

| Fevereiro 20, 2023 7:28 pm

Los Sara Fontán + Montes: o doce sabor da liberdade sem fronteiras

| Fevereiro 20, 2023 7:28 pm

Uma banda que não grava discos, mas que descobre no palco uma  plataforma segura para livremente se expressar. Bem vindos ao universo maravilhosamente imprevisível dos Los Sara Fontán, que passaram pelas instalações da Lovers & Lollypops para se lançarem no mais alucinante exercício de improvisação desenfreada que este espaço já acolheu. Na verdade, até se torna difícil arranjar palavras que “pintem” uma imagem fiel da magia que aqui se viveu, mas  isto foi uma  genuína viagem de sublime suspense sonoro, uma celebração de criatividade espontânea  absorvida em tempo real. No fundo, o duo formado por Sara Fontán – que magistralmente se desdobrava entre o violino e um pequeno teclado, para além de uma extensa pedaleira – e Edi Pou, mago indiscutível da percussão polirrítmica,  e que muitos conhecerão certamente dos Za!, faz da composição musical uma tela em branco que gradualmente vai decorando com as mais diversas cores, sempre ao serviço do sentimento anárquico que alimenta a sua arte. Se a  determinada altura “viajávamos” (nunca paramos de o fazer, estávamos em êxtase) com passagens clássicas onde se vislumbrava a delicadeza poética de uns GodSpeed You! Black Emperor, ou de uma Jessica Moss, logo a seguir partíamos sem aviso para a loucura transcendente de um free jazz marado,  ou para ambientes que pareciam saídos de uma qualquer  banda sonora obscura, e até para lugares inusitados, totalmente distintos de tudo aquilo que já descrevemos anteriormente. Nesta ode à expressão artística sem barreiras,  os sons evoluíam de forma intuitiva motivados pela disposição da banda  e as caraterísticas do espaço – sim, exatamente, o próprio  local foi usado como instrumento da forma mais literal possível, com o grande Edi Pou a sacar batidas do revestimento das paredes e a fazer dessa permeabilidade o seu modus operandi (urge dizer que isto foi do carago, o homem é efetivamente uma máquina de precisão estupenda).

Acima de tudo, assistimos a algo único, algo irrepetível, ao que os Los Sara Fontán escolheram ser neste dia, a esta hora; quando os voltarmos a ver a fórmula não será a mesma,  a “pele” terá mudado e a  metamorfose dar-se-á de forma  autêntica e revigorante. Porque não é só a abordagem surrealmente informal que nos deixa  boquiabertos e entusiasmados,  é também a coesão, a mestria indescritível desse experimentalismo sem limites. Não há momentos em que a banda parece perdida a tentar  encontrar o rumo certo –  antes pelo contrário, a viagem  é sempre extraordinariamente excitante e consistente, uma montanha russa de emoções só com altos e sem baixos.  Um feito notável que só é conseguido quando se forma uma química elevadíssima, uma comunicação tão profunda e forte que transcende a verbalização para encontrar entendimento no incomunicável. Mais tarde, quando tudo tinha terminado e o grupo trocava ideias com o público, numa  interação tão orgânica quanto o som que durante uma hora fez nascer, sabíamos que tínhamos testemunhado uma prestação bem especial, que não vamos recordar em casa  na companhia de discos, é certo (só eventuais filmagens de telemóvel, e podemos confirmar que estas existem, é que permitirão arquivar este pedaço de tempo), mas que para sempre viverá  na nossa memória… E isso tem um encanto imensurável, acreditem.

Antes, de forma tímida mas envolvente, subiram ao palco (que é como quem diz, ao tapete da sala, este nível de intimidade é insuperável, aquece mesmo a  alma de quem vive para o underground) os Montes, outro duo apaixonado pela experimentação inebriante e luminosa. Tendo lançado, já em 2020, o estrondoso “Vozes Antenas Fragas”, mostraram-se aqui num formato mais “despido” e cru, conscientes da dificuldade em reproduzir todos os pormenores da obra gravada, mas abertos à possibilidade de criar algo diferente e fresco, deixando-se contagiar pela excitação da descoberta in loco; uma ideologia curiosamente semelhante à da banda que se seguiu, numa admirável prequela do espírito de improvisação  da atuação principal.

Servindo-se de guitarras, violoncelo e alguma manipulação digital, para além do trimble poderoso e  celestial de Arianna Casellas, ali entre  um spoken word sussurrante  e um canto angelical que casava perfeitamente com os acordes certeiros de Kauê Gindri, o duo alternou entre o formato acústico e a distorção, a tempestade e a bonança, a tranquilidade etérea e o “rasgo” impetuoso . Sim, faltaram aqui  determinados sons e, sobretudo, alguns dos ambientes presentes no disco, mas não deixamos de sentir – bem na pele,  em regime de deslumbramento gradual e palpável – a emoção majestosa desta exploração graciosa, a sedução de um concerto intrigante e misterioso, que se mostrou intenso de  um modo estranhamente subtil, como um grito de libertação proferido de forma abafada. 

 E foi assim, neste final de tarde, que os Montes reescreveram o seu ADN;  para a próxima, tal como os Los Sara Fontán, a reinvenção em nada será idêntica, a não ser na beleza estonteante da sua genuinidade. Que estamos perante um dos mais fascinantes e ambiciosos grupos no panorama nacional, bem, disso já não restam dúvidas…

Texto: Jorge Alves

 

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