Wave Gotik Treffen 2023: a materialização de um sonho gótico
Wave Gotik Treffen 2023: a materialização de um sonho gótico
Wave Gotik Treffen 2023: a materialização de um sonho gótico
Realizou-se entre 26 e 29 de maio a 30ª edição do maior evento gótico mundial, o Wave Gotik Treffen, em Leipzig, na Alemanha. Ainda a tentar recuperar da emoção de ter tido o privilégio de assistir a este festival, vou procurar relatar aqui aquilo que foram quatro dias de sonho. Recorde-se que o WGT é uma celebração de uma subcultura, a gótica, que, por definição, devia tornar este num evento de nicho. Contudo, no caso do WGT, o festival mobiliza bem mais de 20.000 participantes e toda a cidade se pinta, literalmente, de negro para acolher o festival e os seus participantes. Dir-se-ia que se a cultura gótica fosse uma religião, esta seria a peregrinação obrigatória que todos os seus “crentes” teriam de fazer pelo menos uma vez na vida. No que a mim me diz respeito, já cumpri a minha “peregrinação” obrigatória, mas com gosto voltarei a fazê-la muitas mais vezes.
Leipzig e o WGT
Leipzig é uma cidade que se situa num território que até 1990 pertenceu à extinta República Democrática Alemã (RDA). Cidade com história e bastante cultural (Johann Sebastian Bach é um dos mais ilustres filhos da terra), encontra-se repleta de imensas igrejas e edifícios imponentes que se espalham por toda a cidade, oferece uma mistura de blocos residenciais e edifícios de arquitetura de inspiração soviética, herdada da antiga RDA, com vários edifícios de traço bastante moderno. É uma cidade plana e com largas avenidas e ruas e que dá gosto calcorrear. A sua toponímia torna-se muito importante para quem planeia ali deslocar-se para o WGT, pois o participante pode contar, desde já, em percorrer dezenas de quilómetros durante os dias do evento.
Embora esta tenha sido a comemoração da 30ª edição oficial do Wave Gotik Treffen, o festival começou um pouco antes de 1991, ainda no final dos anos 80. Na altura, tanto a primeira como a segunda edições (se é que de edições se pode falar aqui) reuniram poucas dezenas de espetadores, num dos casos, e escassas centenas, no outro. Mas recorde-se que isso aconteceu ainda durante o tempo da RDA, e eventos de música inspiradas pela cultura que se vivia e fazia do outro lado do muro não eram muito bem visto do lado de cá, e não era nada fácil ser gótico, waver ou outra coisa qualquer, especialmente se a assunção dessa condição demonstrasse alguma admiração pela cultura que vinha do lado de lá do muro. Até por essa razão, a persistência dos seus organizadores e a longevidade do festival são merecedores de grande admiração por parte de todos aqueles que hoje podem usufruir de tão importante acontecimento anual.
O festival em 2023
Esta foi, portanto, a 30ª edição, um número redondo, apenas comemorado este ano devido às interrupções forçadas pelo COVID nos últimos anos, e que mereceu uma festa especial. Um dos acontecimentos marcantes foi a decisão da direção convidar três das bandas que atuaram na primeira edição oficial em 1992. Tratou-se de Das Ich (que já contam com mais de uma dezena de atuações nas 30 edições do festival), Goethes Erben (com cerca de meia dúzia de presenças no WGT) e os extintos Ghosting, banda darkwave/gothic de Koblenz que existiu entre 1989 e 2003 e que, como foi informado pela organização, se voltou a reunir para participar nesta edição comemorativa do evento.
O programa do festival, que vai muito para além dos concertos e da música, obriga a uma programação atempada, pois a probabilidade de se verificarem sobreposições de concertos ou eventos à mesma hora e em sítios diferentes da cidade coloca grandes desafios para todos aqueles que, como eu, não têm o dom da ubiquidade. Por isso, importa ir acompanhando o lançamento de novos nomes que vão surgindo regularmente, especialmente nas últimas semanas que precedem a realização do festival, altura em que novos nomes confirmados entram em carteira. Este ano foram 210 as bandas que atuaram, e, pelo menos num dos casos (Qntal), com mais do que um concerto. Assim, e para o caso de algum dos leitores no final desta prosa se sentir tentado a marcar presença na edição do próximo ano, um primeiro conselho que fica é o seguinte: não coloquem a expectativa muito alta; meia dúzia de concertos por dia é muito boa média, mais do que isso é loucura. Por isso, convém ir preparado para saber que só se vai conseguir ver uma ínfima parte daquilo que se gostaria. E se aos concertos acrescentarmos as muitas outras atividades que o festival oferece (convém não esquecer que isto não é apenas um festival de música, mas um festival da cultura gótica), então a coisa complica-se e o programa torna-se ainda mais difícil de fazer. Se pegarmos em todas as atividades (oficiais e não oficiais) que o WGT disponibilizou para este ano, a contagem chega a 598 (quinhentos e noventa e oito!) eventos, entre concertos, leituras, apresentação de livros, debates, visitas guiadas, etc., etc., etc. Só em Leipzig, só mesmo no WGT!
Dia 1
Como fiz a viagem para Leipzig na sexta-feira, dia 26 de maio, só cheguei à cidade pela hora do almoço. A prioridade foi ir diretamente ao AGRA, centro de exposições de Leipzig e que funciona como o centro nevrálgico do festival, para fazer a acreditação e levantar a credencial que me daria acesso aos espaços onde se realizariam os muitos eventos do WGT. A viagem para o AGRA desde a estação central de comboios (Hauptbahnhof) durou cerca de 40 minutos no elétrico que faz a linha 15 até lá. A viagem deu, desde logo, para perceber duas coisas: a dimensão da cidade (muito maior do que imaginava) e a quantidade de gente que ali estava por causa do festival. Em cada paragem, em cada rua, em cada esplanada de café ou restaurante eram dezenas e dezenas de pessoas totalmente vestidas de negro de acordo com os mais diversos estilos da subcultura, fossem eles o trad goth, o vitoriano, deathrock, romantic goth, medieval goth e o que mais se possa imaginar. O AGRA então é uma gigantesca passerelle por onde desfilam milhares de góticos nas mais diversas apresentações. Só por isto já vale a pena ir ao WGT.
Para o primeiro dia tínhamos (eu e o fotógrafo deste artigo) programado ir ao piquenique vitoriano, aos concertos no Täubchenthal e ainda ao Stadbad. A primeira paragem foi, portanto, no Clara-Zetkin Park, o lindíssimo jardim público da cidade. Se dúvidas houvesse que o investimento feito para a ida ao festival iria valer a pena elas ficaram imediatamente desfeitas assim que entrámos no parque de Clara-Zetkin: o piquenique vitoriano, um dos momentos icónicos do festival, atrai largos milhares de pessoas que ali se juntam para viver uma autêntica viagem ao passado, com centenas de pessoas a vestirem os seus melhores fatos e acessórios para realizar um piquenique vitoriano, onde não falta comida e bebida, copos e garrafas estilizadas, candelabros e o que mais se possa imaginar que sirva para conferir um toque de história ao momento. A par com estes “saudosistas” da era vitoriana convivem cybergoths de visão futurista, adeptos do estilo medieval e milhares de pessoas que nada têm que ver com a subcultura gótica, mas que ali vão por saberem que aquele é um momento especial e que não deve ser perdido. Para quem vai com a intenção de registar o momento com a máquina fotográfica fica um conselho: mais do que um cartão de memória e mais do que uma bateria talvez não seja má ideia, pois certamente vão fazer falta.
Outro dos episódios memoráveis deste piquenique sucedeu quando nos deparamos com uma família impecavelmente trajada com as suas vestes vitorianas. Pedimos para fazer uma fotografia e depois foi-nos pedido para sermos nós a registar uma fotografia no telefone de um dos elementos da família, para que ficassem com um registo do evento. Na conversa que, entretanto, surgiu, deu para perceber que se tratava de uma família de Leipzig que adora este festival e este piquenique em especial. Perguntei-lhes a razão de participarem no piquenique com aquelas vestes e a resposta foi elucidativa: Se vem gente de todo o mundo para Leipzig para participar neste piquenique, nós, que somos de cá, temos a obrigação de também participar. O mais espetacular é que a matriarca desta família conta já com uns respeitáveis 90 anos, e não falta a um WGT.
Só pudemos ficar um par de horas no piquenique, pois, entretanto, os concertos iriam começar e tínhamos de nos deslocar para o Täubchenthal. Este equipamento é constituído por um edifício que parece resultar da readaptação de uma antiga unidade fabril em local de eventos. Sítio bonito, conta com uma sala polivalente, que permite acolher concertos, teatro e eventos de caráter social ou comercial. Tem uma varanda com lugar para relaxar e um grande pátio com mesas e cadeiras onde as pessoas também podem descansar. Embora este fosse ainda o primeiro dia e o primeiro concerto que íamos ver, os muitos quilómetros palmilhados no piquenique vitoriano já pesavam nas pernas. Felizmente, havia os transportes públicos de Leipzig para nos transportar para os diversos locais. Desde já é importante destacar que Leipzig é servida de um conjunto de transportes públicos (especialmente o elétrico de superfície) de excelente qualidade e comodidade que permitem transitar facilmente pela cidade e que nunca nos fazem ter de aguardar muito tempo pelo próximo transporte. Atraso é palavra que parece não existir no dicionário alemão, o que é muito bom. Esqueçam os táxis, Uber e afins; em Leipzig nada disso é necessário.
Voltemos ao concerto. O nosso programa previa ver Rosegarden Funeral Party e Aeon Sable antes de irmos para o Stadtbad, onde outras bandas de interesse iriam tocar. Rosegarden Funeral Party foi a primeira banda que vimos nesta edição. Os americanos capitaneados por Leah Lane iniciaram a sua atuação às 17:50, tal como estava previsto. Esta é outra das particularidades do festival: os horários são para cumprir e, salvo raras exceções, a hora a que uma banda está marcada é a hora a que ela começa a atuar.
A sala onde estes americanos tocaram é lindíssima. Não sendo muito grande, não é de estranhar que estivesse praticamente cheia, mas muitas mais pessoas circulavam lá fora por entre as barracas de comida e os expositores de merchandise das bandas, pelo que se todos decidissem entrar para o concerto, talvez o espaço fosse pequeno para acomodar tanta gente, mesmo considerando a varanda da parte de cima da sala, que permite uma vista privilegiada dos concertos. Tocando um som que, nas palavras da própria banda, coloca a voz da vocalista algures entre Morrissey e Siouxsie Sioux, o baixo a lembrar o de Peter Hook e o sintetizador a remeter para os sons obscuros dos anos 80, a banda deu um concerto que colocou toda a gente a mexer e a acompanhar a energia de Leah, que, endiabrada, sacava acordes enfurecidos da sua guitarra enquanto viajava por todo o palco no cimo das suas botas de saltos altos. De referir que neste concerto tivemos Leah na guitarra e os seus companheiros de banda na bateria e no sintetizador. O tal baixo à la Peter Hook esteve ausente, pelo menos fisicamente. O público reagiu muito bem ao espetáculo e à terceira música a sala de baixo estava já cheia ao mesmo tempo que o piso de cima se ia enchendo com as muitas dezenas de pessoas que iam chegando. Foi um ótimo concerto.
A seguir entraram em ação os Aeon Sable, banda alemã de Essen que conta com a particularidade de ter um português na sua formação. Na realidade, Nino Sable, é este o nosso compatriota, um dos fundadores da banda, que faz uma música, na sua própria descrição, influenciada pelo esoterismo e pelas visões, pesadelos e sonhos dos seus integrantes e que a colocam nos campos do Gothic Rock, Dark Rock, Doom e Metal. Já agora, aproveito para dizer que além do Nino houve outra participação lusa nesta edição do WGT, a de Nuno Francisco de She Pleasures Herself (aka DJ Exploding boy) que aqui encontrámos e que no dia seguinte iria atuar como DJ neste mesmo espaço.
O público vibrou com os primeiros acordes de Aeon Sable e reagiu muito bem ao som profundo e ritmado da banda. Infelizmente, só pudemos assistir às primeiras três músicas, pois havia ainda mais concertos para ver noutra parte da cidade.
Dirigimo-nos, então, ao Stadtbad. Se o Täubchenthal já tinha impressionado, então este Stadtbad deslumbrou. Inaugurada em 1916, esta antiga piscina, a primeira piscina de ondas na Europa, ensinou ao longo da sua existência milhares de moradores de Leipzig a nadar, tornado a cultura do banho uma tradição na cidade. Atualmente acolhe eventos culturais e a sua sala principal é de uma dimensão respeitável, oferecendo um cenário maravilhoso quer para o público quer para quem lá vai atuar.
Já não foi possível ver Minuit Machine como tínhamos previsto, pois já não chegámos a tempo. WGT é ter de fazer escolhas, e optar por ir a um concerto faz com que se chegue tarde ou já não se chegue ao próximo. Foi o que nos aconteceu.
Ao chegarmos ao Stadtbad deparamo-nos com uma fila enorme, o que nos levou a pensar que as portas ainda não tivessem aberto. Pelo contrário, as portas já estavam abertas há muito tempo, aquelas largas dezenas de pessoas estavam apenas a aguardar para conseguir entrar, o que, de momento, não era possível pois a lotação do espaço estava já alcançada. Para todo aquele interesse estariam, certamente, os nomes das bandas que ali iriam atuar naquele dia: além dos já referidos Minuit Machine a noite contaria ainda com as islandesas Kaelan Mikla e com o autraliano Buzz Kull, que deu aqui um concerto exclusivo para a Europa este ano. Esta é outra das virtudes do WGT, a de conseguir que artistas se reúnam de propósito ou se desloquem de propósito a Leipzig apenas para dar um concerto neste festival. Isto é algo que nem todos os eventos conseguem.
O concerto, agendado para as 20:40, começou com apenas 7 minutos de atraso, se é que 7 minutos se pode considerar um atraso. A sala estava cheia de pessoas que aguardavam com ansiedade pelas 3 bruxas islandesas. O concerto seguiu a linha da tournée de apresentação do último álbum Undir Köldum Norðurljósum, de 2021. Em 2022 tive a oportunidade de assistir a um desses concertos no Extramuralhas, em Leiria, e, tirando o alinhamento das músicas, diria que não existiram grandes diferenças: três miúdas com talento que têm uma legião de fãs considerável, que as brindam com carinho e admiração, algo a que elas respondem com boa música e boa atitude em palco. O concerto começou de forma calma com o tema “Stormurinn” retirado do último álbum. Mas à terceira música já as colunas deixavam escapar o potente “Nornalagið”, este do álbum de 2018 Nótt eftir nótt. A partir daqui, foi uma viagem sem regresso possível que arrancou toda a gente do chão. Não deixa de surpreender que uma banda que faz questão de cantar todas as músicas na sua língua natal, o islandês, consiga ter tão devota massa de admiradores.
A última atuação da noite era a mais esperada por todos os presentes. Isso mesmo se viu pelo facto de ninguém ter arredado pé do Satdtbad após o concerto de Kaelan Mikla, e, mesmo faltando cerca de uma hora para o concerto, o número de interessados em entrar no recinto era bem maior do que aquele que correspondia aos que queriam sair.
Kaelan Mikla
Buzz Kull parece, de facto, ter uma legião de fãs na Europa, especialmente na Alemanha. Compensou essa lealdade disponibilizando-se para dar o único concerto em solo europeu este ano em Leipzig. Dir-se-ia que foi uma decisão que beneficiou as duas partes: da parte do público, o chão tremeu durante a hora e pouco que durou o concerto. Da parte de Buzz Kull, permitiu levar certamente uma memória que recordará durante muito tempo: a de um público completamente extasiado com tamanha energia e dedicação do artista. Um primeiro aviso para o que aí viria foi dado logo à segunda ou terceira música quando se ouviram as primeiras notas do muito dançável “Last in the club”. Mas foi lá mais à frente que a máquina mais próxima de Leipzig que mede a atividade sísmica deve ter tremido quando nas colunas começou a ecoar “Into the Void”. Que momento memorável!
Finalizado o concerto, era hora de ir para o hotel. Ainda era cedo, mas o dia tinha começado muitas horas antes e parte considerável dele tinha sido passado em aviões. Havia que descansar. E foi no regresso ao hotel que nos deparamos com outro espetáculo digno de registo. O primeiro dia do WGT coincidiu com o concerto de Depeche Mode também em Leipzig. Se o WGT mobilizou cerca de duas dezenas de milhar de pessoas, já o concerto de DM juntou na cidade 70 mil. E foi quando nos aproximávamos do nosso hotel que vimos vir em sentido contrário milhares e milhares de pessoas acabadas de sair do concerto de DM. Impressionante ver aquela massa humana vir em nossa direção. Impressionante também pensar que numa cidade que acolheu no mesmo dia quase 100.000 pessoas para eventos não se ter registado um único problema. A polícia, serviços de emergência e assistência médica não tiveram qualquer problema com os festivaleiros ou depechomodemaníacos. Afinal, isto é malta que veste de preto, ouve música melancólica, mas não dá chatices. Por isso é que a cidade gosta tanto dela.
Dia 2
Após uma noite bem dormida, fomos até ao centro da cidade para tomar o pequeno-almoço. Para sábado de manhã a cidade parecia muito calma. Estamos a falar de uma cidade com cerca de 600.000 habitantes e que, fruto do WGT e do concerto de DM da véspera, tinha recebido mais umas dezenas de milhares de pessoas. Bastaram alguns minutos para perceber que as ruas não estavam tão desertas quanto isso; o que fazia a cidade parecer deserta era o silêncio, pois os alemães falam baixinho, não gritam na rua e não fazem do espaço público uma feira.
A parte da manhã foi reservada para conhecer um pouco o centro de Leipzig e observar o cortejo de carros funerários, um dos eventos que vai ganhando protagonismo de há algumas edições para cá. Antes disso, pelas 10:00, deparamo-nos com uma concentração de pessoas com roupa desportiva a fazer aquecimento para aquilo que depois constatámos ser o WGT-Gothic-Run, mais um dos eventos paralelos ao festival. No WGT encontra-se de tudo um pouco, até uma corrida.
A concentração dos carros funerários deu-se pelas 11:00 na Augustusplatz e partiu posteriormente em direção ao Südfriedhof, o cemitério mais emblemático da cidade. Este evento juntou largas dezenas de curiosos que vieram apreciar as viaturas, especialmente as suas decorações, havendo algumas repletas de pormenores que indicam o extremo cuidado que houve para que aqueles carros estivessem em consonância com o espírito do festival. Imperdível!
Da parte da manhã ainda houve tempo para aceitar o convite que nos foi endereçado através da oferta de um flyer para visitar o Dark Affair no Wilhelm-Leuschner-Platz, uma feira de moda e acessórios góticos que, soubemos depois, se realizava habitualmente no espaço dedicado ao comércio do AGRA, mas que este ano aconteceu neste local. Aí, alguns expositores tiveram a oportunidade de apresentar e vender as suas roupas, arte, jóias e acessórios fetichistas. Embora a entrada para esta tenda fosse paga (5€), havia bastante gente a visitar, ver e comprar. Já fora da tenda, na pequena praça, estava montado um palco onde, julgávamos, estava a decorrer um concerto, o que desde logo estranhei, pois a música que estava a passar era de Ordo Roasarius Equilibrio, que este ano não estavam escalados para o WGT. Ao aproximarmo-nos do palco, percebemos que não se tratava de um concerto, mas sim de uma performance de um par: ela ia sendo amarrada por ele com várias cordas até, finalmente, ser içada e ficar suspensa durante algum tempo. Difícil compreender como conseguiu estar ali toda retorcida e não partir qualquer osso. O WGT também é isto: em cada canto uma surpresa.
Antes de nos dirigirmos aos concertos da tarde, ainda houve tempo para ir ao Deutsches Kleingartenmuseum, um pequeno mas muito bonito jardim perto do centro e onde se realizou o outro piquenique, desta vez não vitoriano, mas sim dedicado ao Steampunk. De entre as variantes que integram a subcultura gótica, o steampunk é, sem dúvida, a que vai ganhando mais adeptos nos últimos anos. O facto de já merecer um evento específico no WGT prova a importância que vai tendo. E eram muitos os adeptos deste estilo que, com muita originalidade e criatividade, transportaram os presentes para uma qualquer aventura de um dos livros de Júlio Verne, mostrando as suas maquinetas retro-futuristas e exibindo as suas cuidadas roupas e acessórios espetaculares. Também se pode ser gótico vestindo castanho, pelos vistos.
Os concertos do dia dividiram-se entre a sala do Westbad, outra antiga piscina pública da cidade agora convertida em lugar para eventos, AGRA e a vila pagã. Começando pelo Westbad, a ideia era ver os italianos Talk to Her. Esta banda de electro-wave-rock reuniu um público que, estilisticamente, era bastante homogéneo, mais fiel ao gótico tradicional e sem a presença de grandes elementos vitorianos ou de steampunk. Dir-se-ia que quem ali estava era por causa da música e não para a passerelle. Aqui, infelizmente, o concerto começou com bastante atraso. Em vez das previstas 17:30, o espetáculo começou já passavam bastantes minutos das 18:00, o suficiente para nos ter feito perder o início do concerto de Hocico, que tocavam pelas 19:15 no AGRA, na outra ponta da cidade. Em relação ao concerto em si, não há grande coisa a dizer: cumpriram com o esperado, a qualidade do som não nos pareceu tão bom como nos outros espaços (talvez tenha sido isso a causa do atraso do início do concerto). Enfim, uma boa experiência, mas definitivamente não a mais marcante deste WGT.
Cientes de que íamos perder o início de Hocico no AGRA, apanhamos o elétrico para uma viagem de cerca de 40 minutos que nos iria levar até à outra ponta da cidade. Ao passar junto ao estádio do RB Leipzig, deparamo-nos com largas dezenas de adeptos do clube da casa e do Schalke 04, equipas que tinham acabado de jogar a última partida do campeonato alemão. Pelos vistos, o Bayern de Munique conseguiu ser campeão no último jogo, o Dortmund perdeu a hipótese de o ser com um penálti falhado nos últimos minutos e os restantes jogos não tinham história, pois tudo estava já mais do que resolvido. Ainda assim, o RB Leipzig conseguiu encher o seu estádio com 70.000 adeptos, algo que parece ser habitual quando joga em casa. Um dado curioso que aqui podemos destacar é o seguinte: na véspera a cidade tinha acolhido mais de 20.000 góticos para o seu festival anual e 70.000 fãs de Depeche Mode. Não vi um polícia na rua, não assisti a qualquer altercação pública, nada. Tudo decorreu na maior tranquilidade. No sábado, dia do jogo, logo pela manhã comecei a observar grupos de adeptos de Schalke e do Leipzig na rua. E polícia, muita polícia. Pela hora do almoço, junto à estação central, estavam dezenas de polícias, daqueles que andam com capacete, escudo e cassetete, à espera que chegasse um grupo de adeptos do Schalke. Segundo alguns comentários de participantes do festival que fui ouvindo, para guardar 2000 adeptos da equipa visitante foram mobilizados 300 polícias. Para vigiar os 20.000 góticos presentes no WGT não foi necessário mobilizar ninguém. Acho que isto ilustra bem a diferença entre um evento como o WGT e um simples encontro de futebol.
A caminho do AGRA, talvez para ajudar a passar o tempo, fomos contemplados com um simpático grupo de adeptos do Leipzig, que decidiram meter conversa connosco. Visivelmente satisfeitos (ganharam 4-2 ao Schalke) ficaram muito curiosos por saberem que vínhamos de Portugal de propósito para o festival e encetaram longa conversa sobre Leipzig, o WGT, Portugal e pastéis de nata. Foi agradável o encontro, ajudou a passar o tempo e foi divertido. Esta é outra das particularidades do festival: as viagens de elétrico propiciam sempre alguns contactos, seja porque se ouve uma língua familiar, seja porque alguém traja uma camisola de um festival ao qual também assistimos, tudo é argumento válido para conhecer pessoas novas.
Entrámos no AGRA já com Hocico bem avançado no seu espetáculo. O recinto estava bastante composto. Apenas nas laterais (sem acesso visual ao palco) havia algumas clareiras, de resto acomodavam-se no espaço (que juLgo ter capacidade para cerca de 7000 pessoas) certamente mais de 6000 pessoas. Tentar circular com o concerto a decorrer era tarefa para largos minutos. Aqui, e diferentemente do que sucedera antes no Westbad, já se voltou a ver uma grande mistura de estilos: alguns cybergoths (embora muito poucos para aquilo que esperávamos encontrar neste festival), batcavers, steampunks, vitorianos, românticos e o que mais a imaginação permita idealizar, tudo isso se encontrava ali. Este duo mexicano, verdadeira referência do campo do electro mais dark, deixou tudo em palco, colocando uma energia impressionante na sua atuação e contagiando os milhares de espetadores, que dançaram até que o pó de cimento, que se levantava do chão, formasse uma gigantesca nuvem que conferia um ambiente quase mágico em conjugação com as luzes vindas do palco. Os Hocico são já presença habitual no WGT (esta foi a sexta participação), mas a reação do público permitiu perceber que cada atuação é sempre um momento único e inesquecível. Grande concerto!
Pelas 20:40, sempre em cumprimento estrito do horário, foi a vez de os suecos Covenant entrarem em ação. Estes escandinavos, também eles presença habitual no WGT (sexta atuação, embora a última já datasse de 2011) brindaram o muito público que os aguardava com o seu característico synthpop a puxar para o EBM. Logo às primeiras notas saídas das colunas, os pés daqueles milhares de presentes começaram a marcar o ritmo das batidas para rapidamente levantarem voo, para só voltarem a aterrar no final do concerto. Muita energia, muita entrega da banda e pronta resposta do público. Uma ótima hora de exercício para queimar as calorias da boa cerveja alemã e da comida rápida vendida nas roulottes, que foram constituindo a nossa dieta durante os dias do festival.
Covenant
Findo o concerto de Covenant fomos a correr (não literalmente) até à bem próxima vila pagã (Heidnisches Dorf), que dista meros 10 minutos a pé do AGRA. A vila pagã é um dos mais emblemáticos espaços do festival. Passando uma pequena ponte entra-se num pequeno parque que, por aqueles dias, permite ingressar numa máquina do tempo que nos transporta diretamente para a Idade Média. Várias tendas vendem artesanato, uma artífice trabalha o metal, transformando-o em utensílios à boa moda dos ferreiros de antanho, ao mesmo tempo que noutras tendas se pode comprar uma caneca de hidromel ou vinho aromatizado. Feiras medievais há muitas por essa Europa fora, e Portugal não é exceção, sendo as feiras medievais de Santa Maria da Feira e a de Óbidos porventura as mais conhecidas. Mas aqui sente-se algo diferente. Embora não se realize num castelo medieval nem nada que se pareça, tudo ali faz sentido, não nos sentimos no século XXI a visitar uma encenação histórica, mas sim a viver a perpetuação de uma época (medieval) que, para muitos, não terminou ainda e que norteia as suas vidas e a sua essência.
O público maioritariamente traja vestes medievais. Não se veem tantos cybers, trad goths e afins, pois a música escolhida para este espaço é mais dedicada aos apreciadores da vertente medieval. Nesse sentido, a banda que queremos ver é das mais significativas no meio gótico medieval. São os Faun, banda de Munique que já conta com mais de 20 anos e que mistura música folclórica pagã com música medieval. Um dos elementos de maior interesse, e que confere um toque especial à música que fazem, é o recurso a instrumentos antigos, o que faz com que a viagem no tempo se torne ainda mais real. Percebe-se que são a grande atração da noite, pois o recinto está cheio como um ovo. Esta é outra das particularidades do festival: os públicos são todos diferentes e os diversos espaços procuram ir ao encontro de cada um deles, o que permite sempre salas e espaços ao ar livre cheias. Não há bandas a tocar para as moscas. Que melhor forma de nos despedirmos do dia do que a ouvir a música relaxante de Faun, enquadrada por um cenário de sonho. Mais parece que aquelas músicas foram escritas ali. Para se perceber o interesse que esta banda desperta, importa referir que esta foi já a 10ª participação no WGT. A vila pagã sem Faun não é a mesma coisa.
A noite entra, entretanto, de rompante e com ela uma brisa fresquinha que lembra a boa ideia que foi ter trazido um casaco, até porque ainda é muito cedo para pensar em regressar ao alojamento. Voltamos a apanhar o elétrico em direção ao centro. Decidimos ir beber um copo a outros dos lugares icónicos da cena gótica em Leipzig: a discoteca Darkflower. Este clube acompanha há mais de 20 anos a história da cena gótica em Leipzig e tem, por isso, direito a acolher eventos do programa oficial do WGT. Entramos no espaço com fortes expectativas, pois é daqueles casos que já se ouviu falar muito, mas falta conhecer. Descemos as escadas e deparamo-nos com a sala principal, onde largas dezenas de festivaleiros dançam ao som de algo que não consigo descrever muito bem. O espaço é fantástico, mas a música não nos convence e vamos até à outra sala, mais pequena, mas mais interessante. Outro DJ passa uma música eletrónica mais do nosso agrado, mas ainda assim sem nos convencer totalmente. Clientes exigentes, é o que é! Decidimos regressar à sala principal para ver se a música, entretanto, mudou. E realmente mudou, mas não foi para melhor. Quando ouvimos sair das colunas “Hit the Road, Jack” percebemos que é hora de zarpar em direção a outro local. O gótico é muito abrangente, sim, mas há limites para tudo, e aquele tipo de música não é o que esperamos ouvir num clube como aquele, numa semana como aquela, incluído num festival como aquele. Mas isso é a nossa opinião, claro.
Depois de sairmos da Darkflower vamos até ao Moritzbastei, espaço muito interessante bem no centro de Leipzig. O Moritzbastei é a parte sobrevivente das antigas fortificações de Leipzig e está, há muito, transformado em centro cultural. O espaço é magnífico. Neste dia atuaram lá Piston Damp, Wingtips, Undertheskin e Ultra Sunn, um cartaz de luxo, portanto. Não conseguimos ver um único concerto, mas ainda fomos a tempo de encontrar os Ultra Sunn na sua banca de merch a vender discos, t-shirts e afins. Foi a oportunidade para corrigir um acidente ocorrido meses antes no Extramuralhas: depois do excelente concerto que deram em Leiria, encontrámo-los à noite e fizemos uma fotografia juntos, fotografia essa que, tragicamente, se perdeu devido às partidas que a tecnologia às vezes prega. Ao vê-los ali, vislumbrámos uma oportunidade de compor o mal e pedimos nova foto, pedido ao qual naturalmente acederam com a mesma simpatia com que já nos tinham brindado em agosto. Este duo é fabuloso, vai trilhar um futuro fantástico, não temos dúvidas. Pena não ter dado para ver o concerto.
Mas voltemos ao Moritzbastei. Numa das salas um DJ da YoungandCold ia passando música, e que música, meus amigos! Grande set! Podemos ter falhado os concertos, mas tivemos o privilégio de participar neste momento after show. Fabuloso! Só por isto, valeu muito a pena.
Dia 3
Ao terceiro dia começa a ficar cada vez mais difícil sair da cama cedo, pois o cansaço vai-se acumulando. A dificuldade não está em acordar cedo, pois a luz do sol faz questão de entrar em força no quarto logo pelas 5 da manhã (como amanhece cedo aqui, caramba!). Mas os muitos quilómetros andados nos últimos dois dias reclamam por um pouco mais de repouso antes de, finalmente, decidirmos sair em direção ao Südfriedhof, o cemitério sul da cidade. Este espaço se não existisse teria de ser inventado! São 78 hectares de arte ao ar livre, com túmulos, jazigos, campas, estátuas fúnebres e tudo o mais que possam imaginar. Já tinha lido e visto muito sobre este cemitério, mas esta não é uma experiência que se conta ou que se lê, é algo que tem de ser vivido.
Antes do cemitério ainda tivemos tempo para visitar outro marco importante da cidade de Leipzig, e que fica bem perto do cemitério. Referimo-nos ao Völkerschlachtdenkmal (o memorial da Batalha das Nações) erigido em 1913 para celebrar os 100 anos da batalha que opôs napoleónicos a prussianos, suecos e austríacos e que resultou na morte de cerca de 100.000 soldados, a maior carnificina militar antes da primeira guerra mundial na Europa. O monumento tem mais de 90 metros de altura (equivalente a um prédio com mais ou menos 30 andares) e é incrível. É o maior memorial da Europa. Vale a pena visitar.
Mas voltemos ao cemitério. Logo à entrada encontrámos uma igreja com umas arcadas muito bonitas. Para um domingo de manhã notava-se ali um movimento invulgar. A explicação era simples: este cemitério é dos mais fotografados e a semana do WGT atrai milhares de pessoas até ele. Nas semanas que antecederam o festival apercebi-me, em vários grupos de Facebook que sigo sobre o festival, de fotógrafos (uns profissionais outros nem tanto) a convidarem modelos para serem fotografados no cemitério durante estes dias. E pelos vistos conseguiram atrair interessados, pois as sessões fotográficas espalhavam-se um pouco por todo o recinto, que não é nada pequeno. Descrever o que ali vi não é fácil. Um dos mais fascinantes e mágicos lugares que já tive a oportunidade de visitar, sem dúvida. Só aquele cemitério justificava uma ida a Leipzig. Para quem gosta de fotografia, aquele espaço dá ocupação para mais de uma semana. Fabuloso! Mas não se pense que só de góticos e fotografia vive aquele cemitério. Durante o tempo que ali estivemos vimos muitas pessoas que apenas ali se deslocaram para fruir o local. Para muitos pode ser difícil perceber a ideia de alguém desfrutar um cemitério, mas ali era isso que acontecia: apreciar a calma, tranquilidade, paz, beleza e maravilha do local. Para quem possa ter interesse em ir ao WGT ou a Leipzig um dia destes, não percam uma visita a este maravilhoso espaço. Só em jeito de conclusão, mais uma pequena nota: quando estávamos de saída vimos entrar um grupo considerável de góticos. Estariam de visita? Iam fazer fotografia? Não, nada disso. O objetivo era outro. Estavam ali para a assistir a um casamento. Um casamento no Südfriedhof na semana do WGT. Há lá coisa mais gótica do que isto?
Para os concertos do dia agendámos mais um espaço novo para nós: o Volkspalast (o palácio dos eventos de Leipzig). Bem, e quando achávamos que melhor do que o Stadtbad ou o Täubchenthal seria difícil de conseguir, eis que nos surge este maravilhoso espaço com duas salas de espetáculos e um cenário fascinante. O WGT reserva-nos surpresa atrás de surpresa.
O cartaz da tarde prometia. Traitrs para começar, Je t’aime logo a seguir, Stranger and Lovers, Vlure (que já tínhamos visto no Extramuralhas 2022), e Antipole. Ainda haveria lugar para Bootblacks e The KVB, mas esses já não foi possível ver. Só estas bandas já permitiam fazer um minifestival de luxo. Traitrs foram fiéis a si mesmo e deram um concerto na sala maior, a Kuppelhalle, num espaço onde não cabia mais ninguém. Je t’aime, por sua vez, atuaram na sala mais pequena, apropriadamente chamada de Kantine, pois era de uma cantina que se tratava no tempo em que aquele edifício assumia outras funções. E que concertaço deram estes franceses com o seu electro-clash a arrancar toda a gente do chão.
Os mexicanos Stranger and Lovers deram aquele que foi, porventura, o mais discreto de todos os concertos. Com menos gente a assistir, tiveram alguma dificuldade em mobilizar os presentes para a sua música. Talvez por serem uma banda ainda um pouco conhecida, não sei. Mas com Vlure as coisas foram diferentes. Estes escoceses entraram com tudo, como já tinha visto fazer em Leiria, e levaram à loucura a sala da cantina. O que foi aquilo!? O concerto não acabou sem que o vocalista Hamish Hutcheson e o guitarrista Niall Goldie saltassem para o meio do público para realizar parte da sua atuação, algo que também já tinha visto em Leiria, pelo que é um hábito. Eles envolvem-se de tal forma que o público é sempre brindado com esta proximidade. Fantástico. Infelizmente, a grande massa humana que começou por lotar o espaço foi saindo aos poucos, deixando uma sala muito despida de público no final do concerto. Não me parece que tenha sido por não gostarem da atuação de Vlure, mas antes porque outros concertos estariam prestes a começar noutro(s) espaço(s). Tenho a forte sensação que o facto de Diary of Dreams ser cabeça de cartaz naquela noite no AGRA terá tido alguma coisa que ver com aquela debandada.
Antes de deixarmos este espaço houve ainda tempo para ver e ouvir Antipole, noruegueses que deram um excelente concerto, embora já com pouco público, tal como tive oportunidade de explicar anteriormente. Há muito que tinha curiosidade de ver esta banda ao vivo e não me desiludiu em nada. Gente madura, bons músicos e que se nota que gostam do que fazem. Excelente!
Antes de passar ao último espaço da noite, é importante relatar ainda um episódio que se passou no Volkspalast e que, por si só, já teria feito valer a ida ao WGT. Enquanto esperávamos pelo início do concerto de Stranger and Lovers pousamos as nossas coisas numa mesa que estava encostada à parede, de onde tínhamos uma boa vista para o palco. Eis então que alguém se aproxima de nós e se encosta também à nossa mesa. Não foi difícil perceber que conhecíamos aquela cara. Era nem mais nem menos do que o histórico Ronny Moorings de Clan of Xymox. Eu sei que há muitos anos ele se mudou da Holanda natal para Leipzig, o que significa que havia a probabilidade de o encontrar por ali. Mas uma coisa é isso ser uma probabilidade, outra é ele ter vindo colocar-se ao nosso lado. Claro que lhe pedimos para tirar uma fotografia. Mas a coisa não ficou por aí. Houve ainda tempo para conversar. Disse lembrar-se de ter atuado em Leiria e que tinha boas recordações desse momento. Quis saber como andava a cena por terras lusas e terminou dizendo que gostava muito de atuar em Portugal no próximo ano. Para quem de direito fica a dica: Clan of Xymox estão interessados em atuar em Portugal em 2024. Mexam-se, por favor!
Rosa Crux
Para a noite estava reservado aquele que considero ter sido o momento mais marcante do festival: o concerto de Rosa Crux no Schauspeilhaus de Leipzig. O concerto estava marcado para as 23:10. Antes atuava Sieben, outro dos nomes habituais do WGT, mas que já não conseguimos ver, apenas ouvir, pois a sala estava já lotada. E se lotada estava, lotada ficou com o concerto de Rosa Crux, deixando largas dezenas de pessoas numa interminável fila à porta do magnífico teatro, mas sem qualquer possibilidade de entrar. Havia que assegurar lugar, pelo que entrei cedo na sala e consegui ficar cá atrás no único lugar que encontrei livre, um lugar junto à cadeira reservada aos bombeiros. Acabou por ser bom, pois a visão para o palco era excelente. Tive a oportunidade de ver a equipa de Rosa Crux montar o cenário. A secção rítmica dos esqueletos (a B.A.M. – Batterie Acoustique Mid), quatro esqueletos robôs que asseguram a parte rítmica do concerto, e o famoso carrilhão com sinos de Rosa Crux. A completar, um órgão e uma componente visual importante para dar consistência ao espetáculo. De lado, mal disfarçadas, as caixas que serviriam para a habitual dança da terra lá mais para o final do espetáculo.
À hora marcada, Olivier Tarabo e companhia iniciaram o espetáculo, abrindo com o tema “Adorasti” do álbum In Tenbris, ao qual retornariam ainda mais três vezes para tocar outras músicas. O espetáculo, aliás, faz uma viagem pelos vários trabalhos deste projeto, com especial destaque para o já referido In Tenebris, de 2002, e o Proficere, de 1995. Embora estejamos a falar de um espetáculo que fez todo o sentido naquele espaço maravilhoso, alguns espetadores, ainda assim, tiveram alguma dificuldade em manterem-se nos seus lugares e houve uma espetadora da primeira fila que a meio do concerto se levantou do seu lugar e foi para junto da lateral do palco dançar a música que Rosa Crux tocava no momento, deixando, por breves instantes, a dúvida se se tratava de improviso ou algo previamente combinado.
Finalmente, antes de iniciar o tema “Eli-Elo (la danse de la terre)” dois assistentes trazem para a frente do palco a caixa que permitirá às duas dançarinas tomar os seus lugares, inspirar profundamente antes de mergulhar na fabulosa dança da terra. Já tinha visto dezenas de vídeos desta performance, mas, definitivamente, ao vivo é outra coisa. Ainda houve lugar para um encore, mas mesmo que não tivesse havido em nada afetaria a minha avaliação deste espetáculo. Parabéns, organização do WGT!
Dia 4
E rapidamente chegámos ao último dia do festival. Na minha ida ao centro para tomar o pequeno-almoço noto uma quebra considerável de gente na rua. Há muitos participantes que vêm apenas no fim de semana, embora naquela segunda-feira seja o feriado de Pentecostes na Alemanha. O programa da manhã passa por ir a outro cemitério, o Alter Johannisfriedhof, o mais velho da cidade e que data já do século XIII. Hoje está abandonado, embora cuidado e com direito a museu e visitas. Não tem o encanto que tem o Südfriedhof, mas vale bem a pena uma visita, especialmente para quem gosta de fotografia. De seguida, e porque nem só de música vivem os góticos, ainda fomos atá ao centro para visitar a Haus der Geschichte, a casa da história da Alemanha onde pudemos ver uma excelente exposição que faz a súmula das duas ditaduras que a Alemanha experienciou no século XX, a nazi e a comunista. A exposição contém muitos objetos originais e reproduz aquilo que era a vida na extinta RDA. Vale a pena visitar e ainda por cima é grátis. Para quem não conhece bem a história da Alemanha de Leste durante o regime comunista, é interessante perceber como as coisas funcionavam, especialmente para que se fique com uma ideia mais clara do quão desafiante e difícil era ser gótico num país onde tudo o que saía da norma era considerado suspeito. Se ainda hoje é difícil ser subcultural em muitos lados, imagine-se essa dificuldade nos anos 80 em plena ditadura comunista. Se hoje temos WGT muito o devemos àqueles que corajosa e resilientemente lutaram por uma identidade e um modo de vida num tempo em que isso compreendia riscos.
Antes dos últimos concertos do festival, ainda tivemos oportunidade de ir assistir à apresentação de Leipzig in Schwarz, um livro que nos oferece a história das 30 edições do WGT. A apresentação decorreu no espaço da antiga bolsa (Alte Börse), um edifício lindíssimo e onde largas dezenas de interessados se juntaram para ouvir a apresentação em inglês do livro acabado de sair (na véspera tinha ocorrido a apresentação para o público alemão). O WGT aposta muito neste tipo de apresentações e palestras de cunho mais académico, mas a organização parece ter calculado mal o interesse que as mesmas provocaram no público, pois a sala era manifestamente pequena para acolher todos os interessados, e muitos (talvez mais do que que aqueles que conseguiram lugar) ficaram sem possibilidade de assistir ao evento. Daquilo que consegui apurar, esta foi uma situação recorrente e que fará com que, no próximo ano, a organização procure um espaço maior que consiga acomodar todos os interessados.
A apresentação do livro esteve a cargo de Jennifer Hoffert-Karas, uma estudiosa que divide a vida entre a Alemanha e os EUA e que participa regularmente nas atividades do WGT. Este livro constitui basicamente uma reedição do há já muito esgotado livro comemorativo dos 25 anos do festival. Infelizmente, só existe a versão alemã, mas é uma bela obra, ricamente ilustrada com fotografias e reproduções de documentos originais relativos ao festival. Valeu muito a pena aquela hora.
Dirigimo-nos depois ao AGRA, onde iríamos terminar o festival. Na viagem de elétrico mais um episódio para mais tarde recordar: ao nosso lado ouvimos falar português, não aquele que se fala cá em Portugal, mas o que se fala do outro lado do Atlântico. Eram uns brasileiros de São Paulo, participantes habituais do WGT e ligados à cena dark no Brasil, especialmente a de São Paulo. Quem diria que iríamos ouvir falar português no WGT?
No nosso programa queríamos ver Front Line Assembly e The Mission. Como os concertos eram apenas à noite, aproveitámos parte da tarde para visitar o gigantesco centro comercial que está montado no edifício do AGRA. O que dizer desta zona de comércio? É o sonho tornado realidade de qualquer admirador da subcultura gótica. Desde um piercing até um fato fetichista há ali de tudo. As principais marcas de roupa e acessórios góticos marcam presença habitual neste espaço. Pode-se também comprar CDs ou vinis, t-shirts, livros e tudo o mais que se possa imaginar. O que eu não estava à espera era de encontrar alguém com uma t-shirt de Xutos&Pontapés. Muito menos estava à espera de que quem a trajava fosse um português que ali estava com a sua loja a vender roupa e acessórios para aquele público. Claro que encetei conversa com ele e vim a saber que aquele simpático cinquentão se chama João Dias, é de Lagos e está há muito radicado em Frankfurt, onde tem uma loja de roupa alternativa. Quis saber como é que foi parar a um negócio de roupa e acessórios para culturas alternativas e a resposta veio pronta: Foi através do punk. Quando era mais novo fui punk e depois foi fácil vir parar aqui.
Antes dos concertos de Frontline e Mission ainda tivemos oportunidade de assistir às atuações de Forced to Mode, banda de tributo a Depeche Mode, e Eisfabrik. Num caso deu para quem não teve oportunidade de ir ao concerto de DM ter tido uma ligeira sensação de que lá esteve, e no outro foi uma forma de aquecer o público presente para Frontline Assembly. Ainda houve tempo para dar um salto rápido até à vila pagã ali ao lado, para nos podermos despedir, o que nos permitiu assistir ao concerto de Manntra, croatas que, como eles próprios afirmaram, estavam a viver o sonho de atuar no WGT quando 10 anos antes estavam apenas a programar a sua ida ao festival. Interessante como de espetador se passou a artista convidado.
Regressados ao AGRA fomos, então, assistir a Frontline Assembly. O espaço estava significativamente menos concorrido do que no sábado, mas ainda assim com uma assinalável afluência de público, o bastante para, ao som de FA, levantar novamente o pó do chão. Esta foi a quarta vez que estes canadianos marcaram presença no WGT e, pela reação entusiástica do grupo, apostaria que não foi a última.
Frontline Assembly
E, finalmente, chegou o último concerto do festival, e logo com um nome clássico da cena: os ingleses The Mission. Esta foi a terceira vez que a banda atuou no WGT, mas certamente a primeira em que os organizadores puseram os milhares de espetadores a cantar os parabéns a Wayne Hussey ainda antes de o espetáculo começar, visto que tinha feito anos três dias antes. Há lá forma mais inspiradora de começar o concerto?
Quanto ao espetáculo de The Mission, não há muito a dizer: foi uma agradável viagem pela discografia da banda, que conta já com quase 40 anos, e que, não obstante a idade, que já vai pesando, deram um excelente concerto, com muita energia e entrega. Temos ali banda para mais 40 anos.
E, pronto, após quatro extenuantes mas maravilhosos dias terminou a nossa aventura por terras de Leipzig. O balanço não podia ser mais positivo. Esta é daquelas experiências que têm de ser vividas pelo menos uma vez na vida. Foram 4 dias intensos (andámos uma média de 15 km diários a pé, fora as dezenas de km de elétrico), conhecemos locais espetaculares e assistimos a uma cidade que se rendeu totalmente a um evento subcultural, tornando-o provavelmente no seu maior cartão de visita. Confesso que uma ida ao WGT não fica barata, pelo menos para nós, portugueses, mas valeu a pena todos os cêntimos gastos. Se é uma experiência para repetir? Com toda a certeza que sim, assim se reúnam novamente as condições.
A finalizar, gostaria de endereçar um agradecimento à organização do WGT e felicitá-los pelo excelente trabalho que fizeram e que vêm fazendo nestes mais de 30 anos. Que continuem sempre assim! Vielen Dank, Leipzig! Vielen Dank WGT!
Texto: Manuel Soares
Fotografia: Miguel Silva