Amplifest 2023 – dia 1: a familiaridade segura dos Amenra em confronto com a frescura do futuro

Amplifest 2023 – dia 1: a familiaridade segura dos Amenra em confronto com a frescura do futuro

| Outubro 5, 2023 10:44 pm

Amplifest 2023 – dia 1: a familiaridade segura dos Amenra em confronto com a frescura do futuro

| Outubro 5, 2023 10:44 pm

Depois de uma épica edição em 2022, num total de seis dias divididos por dois fins de semana, o Amplifest regressou este ano num formato mais reduzido mas não necessariamente empobrecido a nível musical, optando por uma programação igualmente coesa e escolhida a dedo que, como já é apanágio da organização, se focou nas tendências mais “transcendentes” do universo musical alternativo.

E transcendente é, desde já, o adjetivo perfeito para descrever a passagem dos canadianos Big ‡ Brave, que por cá já tinham estado no ano passado em nome próprio. Gozando de um claro destaque na programação (o guitarrista Mat Ball marcou presença no Ferro no dia anterior), o coletivo de Montreal, aqui a promover o mais recente nature morte, destilou uma suprema descarga de peso monolítico que se revelou tão esmagadora quanto imensamente catártica. Entre uma batalha frenética de guitarras ferozmente ruidosas, uma bateria surrealmente opulenta e a voz de Robin Wattie a desabafar suplícios emotivos de uma urgência quase primal, o grupo libertou um rugido sonoro extraordinariamente arrepiante, cuja visceralidade chegou quase a ser física. Um daqueles concertos que mal conseguimos descrever com palavras porque a intensidade da experiência requer que a aborvamos presencialmente, mas acreditem que se erigiu aqui um muro de emoções descomunal, quase como uma escultura de metal experimental que gradualmente se ia tornando mais imponente. Formidável.

Amplifest

Big ‡ Brave

E se houve concerto, neste dia, que soube rivalizar com este nível de vitalidade pujante, foi o dos “nossos” Hetta. O quarteto do Montijo é já uma das maiores pérolas do underground nacional, e este concerto provou porquê: uma entrega incrivelmente apaixonada de uma inacreditável veemência sonora, num post-hardcore a fazer lembrar os The Blood Brothers que ao vivo ganha toda uma nova força e impetuosidade, como uma faísca que rapidamente origina uma enorme explosão. Com o vocalista Alex Domingos a ser um verdadeiro animal de palco – isto quando está efetivamente lá e não a fazer crowd surfing pela sala – e uma plateia decidida a bater o recorde de mosh desta edição, os Hetta ofereceram a mais satisfatória e pura dose de adrenalina deste dia num concerto que – desculpem-nos a linguagem – foi absolutamente do caralho. Dedicação genuína, muito suor e uma emoção maior que o mundo. (Post) hardcore é isto, malta.

A verdade é que, para nós, estas foram as grandes revelações do dia, autênticos vislumbres do futuro da música pesada. Categoria ao qual pertencem também, já agora, os Ashenspire, escoceses que na bagagem trouxeram o muito aplaudido Hostile Architecture e que nos brindaram com uma dose esplêndida de um peso simultaneamente selvagem e avant-garde, ali entre uma ideia prog de sensibilidades black metal e claras texturas jazzísticas. Entre vozes que muitas vezes surgiam como declamações alucinantes, guitarras acutilantes e um saxofone maníaco a dar ainda mais cor a uma música que mesmo sem ele jamais soaria monocromática, os Ashenspire vociferaram apaixonados protestos anticapitalistas e contra a decadência urbana, o que em plena cidade do Porto, numa altura em que as manifestações de apoio ao STOP tentam desesperadamente salvar um indispensável centro de criação musical, soaram tristemente relevantes e assumidamente urgentes. Espantosamente arrojados e incendiários, os Ashenspire só não foram uma revelação porque a sua grandeza já era maioritariamente conhecida; foram, isso sim, a confirmação que se esperava – autores de um dos mais entusiasmantes e arrasadores concertos do Amplifest.

Numa toada claramente mais melódica, mas não menos soberba, Sir Richard Bishop, que tocou nos míticos Sun City Girls com o seu irmão Alan, passou pela Sala 2 onde se lançou numa deslumbrante e detalhada exploração minimalista das possibilidades sonoras da sua guitarra. Ora mais vigoroso, ora mais delicado, mas sempre intrigante, Richard Bishop assinou uma masterclass de refinado experimentalismo cheio de alma e uma mestria invejável, provando como, por vezes, a simplicidade faz-se de receitas complexas. Um senhor, sem dúvida.

Logo a seguir ao mestre Bishop, regressamos à Sala 1 para testemunhar a força do retorno dos Celeste. Os franceses, que até já tinham actuado no Hard Club em 2014, forjaram uma impressionante teia de escuridão sonora e fustigaram os ouvidos da audiência com um cruel assalto de black metal tingido de hardcore. A componente visual, com os seus elementos a usarem faróis que espalhavam pequenas luzinhas vermelhas em união com os strobes, contribuiu para que a atmosfera fosse ficando cada vez mais estranha e até sinistra; no final, o coletivo assinou uma passagem tão devastadora e obscura que nos sentimos sugados para um buraco negro. Simplesmente colossal.

Curiosamente, poucas horas antes do “pesadelo” intimidante dos Celeste, tivemos precisamente o oposto nessa mesma sala com a passagem dos Mutoid Man. O supergrupo formado por Stephen Brodsky (dos Cave In, que no ano passado estiveram no Amplifest), Ben Koller (baterista dos Converge, headliners no Amplifest de 2015) e, desde 2021, Jeff Matz (dos High on Fire) trouxe não a escuridão, mas antes a luz da boa disposição através de um stoner rock bem apunkalhado – é de riffs tocados com bom humor e muita garra que aqui falamos. Esse bom humor manteve-se intato, aliás, mesmo quando por breves segundos houve uma quebra no som, que felizmente não abrandou o ritmo da atuação. Com um alinhamento focado na novidade “Mutants”, sem esquecer malhas de um passado ainda curto, ofereceram uma atuação simples e eficaz… No final, depois desta descontração soalheira, só nos apetecia exclamar: They are Mutoid Man, and they play rock ‘n’ roll.

Amplifest

Amenra

Todavia, se havia hype em torno dos Mutoid Man, a atração principal eram claramente os Amenra, que depois de terem sido forçados a alterar a atuação do ano passado para um formato acústico devido à ausência do baixista Tim, regressaram para darem o concerto prometido, de promoção ao mais recente De Doorn. E o que aqui tivemos por parte do coletivo belga, que já faz parte da “Amplifamilia” há vários anos, foi uma prestação bastante competente, sempre guiada pelo confronto entre escuridão e luz, entre agressividade cortante e melodias ternas, como uma libertação de traumas para saborear a paz interna. Por outras palavras, Amenra iguais a si próprios, o que é reconfortante, sim, mas também começa a soar exageradamente repetitivo no Amplifest (foi a quinta passagem deles pelo festival em onze anos). Claro, compreende-se aqui a repetição, mas algum do impacto inicial já se perdeu, por muito que ainda vejamos várias pessoas com t-shirts da banda. Permanecem populares e continuam em excelente forma, mas ver Amenra no Amplifest já não soa tão especial como antigamente, quando ainda devia. Sendo eles uma entidade única, parece-nos que uma pequena pausa, pelo menos neste evento, seria benéfica.

De resto, destacamos ainda a estreia em Portugal de Ellereve, alter ego de Elisa Giulia Teschner, cantora e compositora alemã que passeia pelas ruas da dark folk (cultivando alguns elementos de eletrónica pelo caminho), num universo nada distante daquele que habita Emma Ruth Rundle. Autora de um concerto algo “tímido” mas bastante agradável, Ellereve mostrou ser uma promissora esperança com potencial para fazer (ainda) mais e melhor. Que é precisamente o que se esperava de Hexvessel, projeto liderado por Mat “Khvost” Mcnerney, artista britânico radicado na Finlândia. Com projeções a ilustrar imagens poéticas da natureza finlandesa, o grupo exibiu a evolução musical presente no novo álbum Polar Veil, em que estruturas visivelmente folk adquirem contornos mais próximos tanto de algum black metal como de atmosferas doom, ali entre o pastoral psicadélico de outrora e a lentidão densa e gélida de hoje. O que musicalmente foi bastante interessante e mesmo inebriante, mas faltou um som mais cristalino, ou até a tranquilidade que num festival nem sempre se consegue obter, para realmente se instalar aquele ambiente mágico de apreciação profunda. Ainda assim, não deixou de cativar a nível de composição, e um regresso em nome próprio revela-se obrigatório.

 

 

Texto: Jorge Alves

Fotografia: David Madeira

Amplifest

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