MIL ’23: uma vastidão de descobertas

MIL ’23: uma vastidão de descobertas

| Outubro 8, 2023 10:15 pm

MIL ’23: uma vastidão de descobertas

| Outubro 8, 2023 10:15 pm

O festival MIL Lisboa regressou às salas do Cais do Sodré nos dias 28 e 29 de setembro, com atuações de mais de 50 músicos portugueses e internacionais. O foco foi dirigido a artistas de pequena e média dimensão, na sua maioria talentos emergentes e promissores. Durante a semana decorreu também uma convenção que juntou vários profissionais da área cultural, desde programadores a jornalistas, em conversas e workshops sobre uma multiplicidade de temas (descentralização, redução de riscos, crítica cultural, sustentabilidade, entre outros).

A vertente musical do festival estendeu-se por 7 espaços: B.Leza, Mercado Time Out, Lisa, Lounge, Musicbox, Roterdão e Titanic Sur Mer. Infelizmente, a vastidão do cartaz implica sobreposições e, portanto, escolhas difíceis da nossa parte – não foi possível assistir a todos os concertos, mas os que assistimos cumpriram (e alguns até ultrapassaram!) as expectativas.

 

28 SETEMBRO

Os Hetta abriram o festival na quinta-feira dia 28, logo pelas 19:30h, quando encheram o Musicbox. A banda portuguesa que tem dado que falar nos últimos tempos (recentemente destacada no Bandcamp Daily por Miguel Rocha), iniciou o seu set em suspense, com um apelo para que o público se aproximasse do palco. Pouco tempo depois, já os Hetta tinham conquistado os espetadores do MIL, que aguardaram pacientemente o momento em que abriu o primeiro (mas não único) mosh do festival. As músicas curtas cativaram até quem não é do hardcore, e em poucos minutos já se via crowdsurfing, com o vocalista Alex Domingos a assegurar que ninguém se iria magoar.

MIL

Hetta © Francisco Cabrita

A meio deste primeiro gig, do outro lado do Cais, entrava em palco o madeirense João Borsch e a sua banda, levando-nos do hardcore de garagem para um baile pop. A “competição” entre horários de Hetta e Borsch não se manifestou significativamente – o B.Leza encontrava-se tão cheio como o Musicbox – lembrando-nos que há sempre público para tudo. Desde a primeira música, “Nunca Consigo Recusar”, ouvimos inúmeras vozes do público a cantar com Borsch, que apesar de dizer estar sem voz deu-nos uma performance admirável. Com trocas entre bateria acústica e backing track, surgiram alguns problemas de som, mas a energia contagiante da banda de João Borsch e do seu carinhoso público ajudaram a esquecer as falhas técnicas. Na reta final do concerto, o B.Leza foi transformado numa autêntica discoteca com o single “Pólvora!”, que nos fez dançar sem pensar duas vezes. Borsch revestiu-se na sua esfera de pop eclético construída pelo próprio, onde há espaço para teatralidade, desafiar normas, amar, cantar e dançar.

Entretanto, de volta à Rua Cor de Rosa, April Marmara espalhou as suas melodias suaves pelo Roterdão, um espaço tão íntimo como as canções da artista. Em palco encontramos também Jasmim a acompanhar April, que troca entre guitarra elétrica, teclado ou timbalão de chão, acrescentando pequenos detalhes e ornamentos num frágil equilíbrio com o registo acústico, sempre a deixar espaço para a voz. April Marmara tocou algumas faixas de New Home (LP de estreia), mas principalmente do mais recente Still Life, editado pela recém-nascida Lay Down Recordings.

Na porta ao lado, com uma sonoridade extremamente contrastante, toca a banda nortenha Cobrafuma. Durante este primeiro dia, o Musicbox acolhe artistas mais pesados, entre hardcore, thrash-metal e mais tarde o queer punk de bbb hairdryer. Cobrafuma, editados pela Lovers & Lollypops, cantam em português por cima de baterias constantes e cíclicas características do metal, incitando novamente um mosh com o público que já tinha sido aquecido por Hetta. Desta vez, no crowdsurfing, vemos pessoas quase de pernas para o ar.

Com mais uma corrida pelo Cais, chegamos ao Titanic Sur Mer a tempo de ver o trio francês Société Etrange, que tocou entre as 21:15h e as 22h. O espaço parecia um pouco vazio, mas a dimensão do Titanic também não ajuda essa sensação. Com sintetizadores a servir de baixo e baterias elaboradas, o grupo de música instrumental hipnótica veio bem equipado, mas infelizmente tiveram azar no que toca a horários.

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Júlia Mestre © José Britto

Seguindo para o Mercado Time Out, a banda de Júlia Mestre toca com o groove que nos traz os ares tropicais do Brasil. A vocalista, que atuou em Portugal este ano com os seus Bala Desejo, encantou-nos com o seu charme, entre melodias mágicas que deixaram o público a vibrar. De voz e energia serena, Júlia Mestre emana uma paz contagiante, conseguindo manter na sala espaçosa uma certa intimidade. Pena, mais uma vez, que os desafios da programação constante de concertos nos tenham obrigado a sair a meio do seu espetáculo para irmos ao encontro do punk cru português de bbb hairdryer, no Musicbox.

Com uma vertente de performance a acompanhar a música descendente da herança DIY, bbb hairdryer fascinaram os espetadores do MIL. Anteriormente num formato trio, apresentam-se agora como quarteto – Elisa na voz e guitarra, HIFA no baixo, Chica na guitarra e Chinaskee na bateria. Virados de costas para o público, apresentam canções emo destemidas, apoderando-se do espaço físico e emocional da sala (a certo ponto, Elisa subiu a uma das colunas). Ofereceram-nos camadas de feedback sem fim, e uma performance de louvar, num registo grunge que reforçou o ambiente de “garagem” do Musicbox neste primeiro dia de festival.

MIL

bbb hairdryer © Francisco Cabrita

No final deste set dirigimo-nos mais uma vez ao Titanic, onde Ana Lua Caiano esticou o espaço à sua lotação máxima. Sozinha em palco, acompanhou-se de teclados e percussões (entre elas o adufe), auxiliados por pedais que formaram os loops de cada música. Até o próprio público serviu como instrumento, sendo transformado pela artista num coro para repetir a frase “ando, ando em círculos”. O destaque foi, facilmente, a voz ornamentada de Ana Lua Caiano, reminiscente do repertório de música popular portuguesa.

Para terminar os concertos do dia 28, dirigimo-nos ao Lounge, onde encontramos o holandês badtime com a sua guitarra, pedaleira e backing tracks, recheadas de drum machines mecânicas, sintetizadores escuros e linhas de baixo viciantes. Envolta numa atmosfera de pós-punk, escutamos uma voz suja e potente, encharcada em delay, intercalada por riffs repetitivos que perfuram o restante instrumental. As músicas tomam um formato direto e energético, com suor a escorrer pela sala. Curiosamente, não se sente muito a falta de outros músicos em palco.

A noite teve ainda DJ sets, entre estes um de King Kami, na sala Lisa, que abriu recentemente na Rua das Gaivotas, e no Musicbox um set b2b de Anna Prior (baterista dos Metronomy) com a portuguesa Sheri Vari.

 

29 SETEMBRO

No segundo dia de festival, as corridas pelo Cais do Sodré intensificaram-se, ao longo de uma noite quente que rondou os 25ºC.
Começamos o itinerário do dia com um pôr-do-sol junto ao Tejo, no Titanic Sur Mer. O coletivo lisboeta Meia/Fé, formado este ano, sobe ao palco num formato de banda (apesar da ausência de um dos membros) para apresentar as suas canções diretas e energéticas. Influenciados pelo ethos de editoras-coletivo independentes como a Cafetra, cantam e por vezes berram sobre temas mundanos. Odeiam dates e a cidade de Lisboa, mas gostam de fazer música com os amigos, e não querem “passar a vida a anhar”. Já conquistaram alguns fãs, que se manifestaram a cantar algumas das músicas já lançadas, como “superstar .I.” de 80 TU E EU e “404” de casaxangai. Seguimos rumo ao Musicbox com altas expectativas para Glockenwise, a banda de Barcelos que, em maio deste ano, encheu a Culturgest na apresentação do seu recém-editado Gótico Português. A sala de espetáculos do Cais encontrava-se igualmente cheia, com um público ansioso para que começasse o que seria um dos mais bonitos concertos deste festival. Sem grande tempo para pausas entre músicas, os Glockenwise tocaram meia dúzia de faixas novas, assim como algumas do seu aclamado Plástico (2018), recebidas calorosamente. “Corpo” fez surgir uma necessidade de catarse que resultou em mosh e crowdsurfing (algo raro para um concerto desta banda nortenha face a outros tempos). Foi um momento inegavelmente mágico, com vozes tão diferentes mas unidas a cantar, com tudo o que têm, músicas como “Besta”, “Corpo” e “Calor”, na qual o vocalista Nuno Rodrigues desceu do palco para se imergir no público.

Glockenwise © Catarina Cardoso

Após uma pausa para repor o fôlego, dirigimo-nos ao mercado Time Out para mais um gig de músicos do Norte, os interdimensionais Unsafe Space Garden. O grupo, que tem apresentado o disco WHERE IS THE GROUND?, trouxe a sua característica estética divertida e até infantil, com roupas caseiras coloridas a combinar com os gráficos dos seus vídeos e álbuns. Com “infantil” referimo-nos à possibilidade que o grupo nos oferece de viajarmos para um tempo quando era tudo mais simples, deixando as preocupações à entrada, numa espécie de versão musical da série Adventure Time. A boa disposição da banda contagiou rapidamente os espetadores, que se mostraram dispostos a participar nas músicas mais interativas, auxiliando a banda a procurar o seu chão enquanto nos elevavam às nuvens, para o seu mundo fantasioso.

MIL

Unsafe Space Garden © Francisco Cabrita

Numa rua vizinha, no não tão espaçoso e bem preenchido Lounge, esprememo-nos pelo meio das pessoas para poder ouvir um pouco do indie pop espanhol de Paco Moreno. “Indie pop” é um termo redutor para o conjunto de canções de Paco, onde encontramos uma mistela de influências que resultam num set definitivamente intrigante. Sozinho, com guitarra e uma backing track para percussões, Paco Moreno cativou o público com a sua genuinidade e talento, fomentando uma tranquilidade perfeita para uma noite tão quente.

Como não há tempo para tudo, saímos do Lounge para poder assistir ao fim de Eurowitch no Roterdão. A única semelhança entre estes atos é a sua origem espanhola, porque em termos de género musical, Eurowitch optou por nos divertir com o seu reggaeton queer que deixa toda a gente a mexer, incapazes de não dançar. Também sozinho em palco, Eurowitch encheu a sala com uma energia única, eventualmente juntando-se ao público para dançar. Houve calor e houve contacto físico, numa verdadeira festa à qual é impossível ficar-se indiferente. Assim vale a pena.

Entre tantas escolhas diferentes de artistas, o MIL ofereceu-nos, mais uma vez, uma programação variada e de elevada qualidade. A duração dos sets por vezes sabe a pouco, mas também é isso o que permite assistir a um leque tão vasto de atuações, e garantir a igualdade entre todos os artistas. Dos concertos que tivemos o privilégio de assistir, houve uma intimidade transversal, possivelmente devido à dimensão dos músicos e também à das salas escolhidas. O festival MIL Lisboa é, definitivamente, um segredo a não perder.

 

Texto: Afonso Mateus

Fotografia: Francisco Cabrita

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