Saliva Diva foi à Socorro celebrar o seu aniversário e a festa foi bonita
Saliva Diva foi à Socorro celebrar o seu aniversário e a festa foi bonita
Saliva Diva foi à Socorro celebrar o seu aniversário e a festa foi bonita
7 de Janeiro: os Palmiers foram o sol que nos deu janeiro
Parece que não, mas já passaram quatro anos desde que esta pequena aventura chamada Saliva Diva – uma editora que é também promotora e comunidade de melómanos , e que até se define como uma anarquia – foi criada com o objetivo de dinamizar o circuito alternativo nacional. Que o diga a Socorro, que teve precisamente num evento da Saliva a grande estreia da sala de concertos que complementa a loja de discos e livraria, e que desde aí colabora com a mesma para oferecer matinés de segunda-feira que animam dias desesperadamente banais.
Desta vez, também de forma a compensar aqueles dois anos em que os aniversários não foram comemorados devido a restrições pandémicas, a celebração foi em dose dupla e teve um arranque domingueiro que, ao contrário do tempo lá fora, se mostrou particularmente soalheiro. E como não, com o psicadelismo colorido dos Palmiers – uma das primeiras bandas a editar pela Saliva, logo em Junho de 2020 – a espalhar ondas de descontração que renovavam a alma? Entre a jam exploratória típica do kraut, as atmosferas quentes da tropicália e um aroma de jazz inebriante, os Palmiers proporcionaram a banda sonora de uma utopia de verão com um conjunto de melodias que evocaram a nostalgia de dias inocentes.
Num concerto inspirado e que gradualmente foi ganhando força, recuperaram as “Good Vibrations” que os Beach Boys imortalizaram na década de 60, adaptando-as a um formato instrumental à base de texturas vibrantes e composições aliciantes. O aquecimento perfeito -acreditem que não podia ter sido melhor.
Seguiram-se os Lucifer Pool Party, que no ano passado editaram o seu disco de estreia pela Coração de Boi. Apostando num noise caótico abraçado ao free jazz, assinaram um concerto verdadeiramente ensurdecedor onde a devastação do instrumental, ainda que impressionante quando analisada isoladamente, acabou por “engolir “ a voz de Inês Malheiro, mais confortável (ou natural, se preferirem) quando navega pelos territórios “alienígenas” da eletrónica experimental. Até poderá ser essa a ideia – fazer da voz uma espécie de sussurro que luta por se fazer ouvir no meio da gritaria instrumental -, mas acaba por originar um contraste que, na prática, não resulta muito bem. Não deixa de ser um projeto bastante promissor, até por várias vezes recordar o experimentalismo desenfreado do mítico John Zorn (sobretudo pela presença de um saxofone extremamente ruidoso, de uma dissonância brutalíssima), mas necessita de resolver melhor a questão vocal para que se torne mais coeso e eficaz. O potencial já se vislumbra, agora urge concretizá-lo.
8 de janeiro: as aventuras sonoras de um Manipulador na era dos Marquise
No dia seguinte a veia experimental manteve-se fortíssima com a mais simbólica das atuações deste aniversário – a d’ O Manipulador, aqui a comemorar quatro anos do lançamento de Doppler, obra estupenda infelizmente lançada dois meses antes da pandemia. Contudo, numa prova da autêntica tela em branco que o projeto a solo de Manuel Molarinho constitui, só no final é que ouvimos duas faixas desse registo, pois o resto foi exploração em tempo real, improvisação espontânea sem rumo definido numa busca incessante por novas possibilidades sonoras e o simples prazer de tocar.
Sozinho em palco, com o rosto tapado por uma máscara como se quisesse dizer que a identidade do artista não é tão importante quanto a arte que produz, recorreu ao baixo, à sua loop station e a uma parafernália de pedais para gradualmente construir imponentes camadas de som numa jam session que soou emotiva e possante, quase esotérica. Foi, aliás, das prestações mais poderosas e cruas que já vimos dele, e talvez por isso uma das mais entusiasmantes. Além disso, se o formato canção faz obviamente sentido em Baleia Baleia Baleia (a banda onde toca com Ricardo Cabral), com o Manipulador o futuro deverá ser este – o da viagem catártica, com cada atuação a representar um momento único de reinvenção e partilha.
Para o fim ficou guardado o fenómeno Marquise. Dizemos “fenómeno” porque só assim se descreve a popularidade surreal do quarteto portuense, que no ano passado esgotou o Maus Hábitos e que aqui voltou a ter uma casa muitíssimo bem composta. E curiosamente nem fazem nada de novo, mas fazem-no com uma transparência espantosa e uma honestidade refrescante. Caminhando firmemente pelos territórios do rock alternativo, numa doçura pop aliada a um espírito totalmente 90s que por vezes soa aos Ornatos Violeta do Cão a fazer covers de Nirvana, espalham uma certa onda de high school band (apesar de serem já maiores de idade), e muito do charme reside aí – na jovialidade de malta bastante jovem, na garra da entrega e no sentimento reconfortante de que isto é só o começo de uma história duradoura. Olhamos à nossa volta, para a estrondosa ligação entre banda e seguidores, e sentimos mesmo uma magia palpável no ar – o hype é inegável e a energia contagiante.
Na verdade, arriscamos mesmo dizer que os Marquise podem muito bem ser os próximos Ornatos, não só pelas referidas influências no som do grupo, com a diferença de contarem com uma voz feminina (a de Mafalda Rodrigues, ali entre a sedução melódica e o rasgo emotivo luminoso, num timbre que curiosamente nos faz pensar um pouco na Shirley Manson dos Garbage), mas também pelo amor incondicional do qual são alvo. E se hoje os estamos a ver em palcos como os da Socorro, quem diz que amanhã não os veremos nos grandes festivais e coliseus? Só o tempo dirá, mas o céu parece ser o limite para estes miúdos. No que foi um concerto de uma força magistral houve saltos, houve mosh e caramba, até uma cover dos Baleia (apropriada quando se pensa que os seus elementos são fundadores da Saliva) para “Quero Ser um Ecrã”. Foi bom, foi bonito… E tal como a Saliva, os Marquise estão de parabéns.
Texto: Jorge Alves
Fotografia: Inês Leal