Downfall of Gaia + Syberia: nesta era distópica, a jarda catártica é o calor que nos une

Downfall of Gaia + Syberia: nesta era distópica, a jarda catártica é o calor que nos une

| Maio 10, 2024 12:52 am

Downfall of Gaia + Syberia: nesta era distópica, a jarda catártica é o calor que nos une

| Maio 10, 2024 12:52 am

O primeiro grande evento da Amplificasom em 2024 fez-se na sala do Maus Hábitos com o regresso dos alemães Downfall of Gaia, onze anos depois de terem passado pelo Amplifest e agora com o mais recente Silhouettes of Disgust na bagagem.

Era efetivamente notório o sentimento de entusiasmo no ar – até pela sala muitíssimo bem composta que os acolheu -, e o que se seguiu foi uma atuação portentosa, veemente na descarga emotiva que esculpiu com fervor. Ali entre a devastação do sludge/doom e o “rasgo” visceral do hardcore (pensem nuns Amenra precisamente mais virados para o universo do HC), ao qual se junta ainda um piscar de olho aos ambientes típicos do post-rock, o quarteto proporcionou a mais revigorante das catarses sonoras num ambiente onde a violência quase poética da sua arte, tão animalesca quanto vulnerável, ecoou com uma garra fulminante. Intensidade de leve sabor contemplativo que penetrou a alma como uma saraivada de balas perfura a pele – dizer que isto foi poderoso seria um eufemismo.

Downfall of Gaia

E se é certo que faltou um som realmente cristalino (as vozes, sobretudo, podiam ter usado mais definição), a verdade é que não trocávamos a intimidade deste espaço por outro maior, pois é em locais assim que a pureza da entrega realmente sobressai, onde conseguimos sentir tudo com aquela envolvência crua e sem barreiras que as salas de grandes dimensões raramente conseguem recriar. Sem dúvida que os Downfall of Gaia se encontram em ótima forma – afinal, debitaram quase 60 minutos de uma implacável transcendência sonora -, mas a atmosfera de proximidade, de apreciação melómana comunitária com a Amplifamília onde escolhemos pertencer, também contribuiu para tornar este serão numa experiência bem mais genuína. Após as despedidas e os agradecimentos, tocaram a última música e provaram definitivamente que permanecem tão impetuosos e emocionalmente ferozes como quando por cá os vimos em 2013… agora é não demorar mais de uma década a regressar, pois ainda há muito para dar e absorver.

Antes, na primeira parte, os catalães Syberia ofereceram uma dose de post-rock bem musculado e enérgico, por vezes quase a abraçar o post-metal de uns Russian Circles. Entre a força selvagem e a delicadeza luminosa, entre as atmosferas sonhadoras e a descarga imponente, assinaram uma prestação cativante, cinemática nas paisagens que evocava, e que ainda por cima beneficiou de um excelente som – claro mas ao mesmo tempo vigoroso e vibrante, exatamente o que se pedia para este tipo de concerto. Uma maneira perfeita de começar a noite na companhia de uma banda que, mesmo não inovando, mostrou ser claramente mais do que um mero opening act.

Syberia

Numa nota final, espécie de reflexão pós-concerto numa tentativa de sintetizar tudo o que se viveu, há que dizer que esta foi uma bela maneira de começar verdadeiramente o ano de eventos para a Amplificasom (depois de uma noite em parceria com o Rivoli, em fevereiro): em regime de familiaridade, com uma banda que já tinha antes trazido – opção simbólica numa altura em que a promotora comemora dezoito anos e celebra essa efeméride recordando o passado sem esquecer o presente -, mas, acima de tudo, num tocante clima de paz e harmonia, em que aquilo que importava era, simplesmente, cultivar a celebração musical desprovida de preconceitos. Numa época de conservadorismos bafientos em que o ódio é normalizado nas ruas e a nível parlamentar, e onde comentadores políticos se autopromovem sem pudor, ainda há quem consiga fazer da música um momento de partilha, criando um santuário utópico que a sociedade se recusa a instalar. Esperemos que daqui se aprenda algo para um futuro melhor, porque a música pode – e deve – ser uma arma de mudança. Basta querer, basta agir; sempre em sintonia, uns para os outros.

Texto: Jorge Alves
Fotografia: Daniel Sampaio

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