Entre a sorte e os azares de um Primavera em transformação

Entre a sorte e os azares de um Primavera em transformação

| Junho 13, 2024 9:00 am

Entre a sorte e os azares de um Primavera em transformação

| Junho 13, 2024 9:00 am

Foi algures na cidade de Tóquio, num beco iluminado por neons coloridos, que Kazu Makino se esbarrou pela primeira vez com um estranho artista de rua. Era John Lurie, de saxofone pendurado ao peito, quem a abordava nesse dia. “Vem viver comigo para Nova Iorque, vamos ser melhores amigos”, disse o músico, ator e pintor norte-americano, mentor dos Lounge Lizard e protagonista da série “Painting with John”. O momento, digno de um romance de ficção, acabaria por mudar para sempre a vida (real) da japonesa.

Foi ele que a introduziu a um “mundo diferente”, um pautado pelas tentações do dinheiro, da fama e do sucesso, mas também por uma enorme criatividade e que a levaria a cantar standards com Bill Frisell, Arto Lindsay e outras figuras importantes do jazz. Foi nesse caldeirão multidisciplinar que conheceu os gémeos Simone e Amedeo Pace, com quem fundaria, no início da década de 1990, os Blonde Redhead.

Discípulos dessa Nova Iorque desalinhada (Blonde Redhead é, afinal, o título de um dos temas dos DNA, grupo seminal do movimento no-wave), a banda assinou um dos primeiros grandes momentos da edição de 2024 do Primavera Sound, que regressou ao Parque da Cidade do Porto entre os dias 6 e 8 de junho. Sit Down for Dinner, editado em setembro do ano passado, foi o mote para o regresso da banda a Portugal, depois de uma última atuação em 2011 no festival Paredes de Coura.

Dez anos depois de Barragán, e vinte de Misery Is A Butterfly, os Blonde Redhead continuam iguais a si mesmo, isto é, agarrados às aflições dos primeiros dias. De rostos voltados para o chão, Kazu Makino e Amedeo Pace debruçam-se sobre a parafernália de pedais de efeitos que forram as tábuas do palco Super Bock, evocando sonhos, paixões e fantasmas com recurso a melodias de guitarra sinuosas e vozes que mais parecem suspiros, dissolvendo-se no ar antes de chegarem à sua forma final.

Minutos depois, no palco Plenitude, onde atuaram alguns dos valores emergentes desta edição, os compatriotas Water From Your Eyes trocavam as voltas das muitas centenas de pessoas que por ali passavam. “Qual é a diferença entre um bit, uma mentira e uma piada?”, questionava a vocalista Rachel Brown a dado momento. “Não sei responder a essas questões”, disse logo de seguida. “Na verdade, estou aqui para fazer questões”. É uma constatação curiosa, e que define na perfeição o caracter idiossincrático do duo que em palco ganha a forma de um quarteto, com a adição de baixo, bateria e alguns teclados. 

Dono de um som volátil, herdeiro da melhor escola dos Broadcast, o grupo intersecta, por vezes na mesma canção, guitarras angulares, sintetizadores bojudos e linhas de baixo tão subterrâneas que se embrenham nas nossas peles, lembrando a espaços o caos frenético dos Big Black, do desaparecido Steve Albini, ainda que sob uma matriz pop assumidamente mais lúdica; porque é na desordem que os Water Form Your Eyes habitam.

© American Football

Mais ordeiro foi o espetáculo que Polly Jean Harvey apresentou no palco Porto, o maior do festival, oito anos depois da passagem por este mesmo festival em 2016.  Não a vimos com a mesma urgência que nesse ano, é certo, quando subiu ao palco com um impressionante ensemble, munida de um saxofone e à boleia do politizado The Hope Six Demolition Project, gravado entre viagens pelo Kosovo e Washington D.C.. 

I Inside the Old Year Dying, a mais recente entrada na discografia da britânica, não deixa de ser igualmente político, mas é mais subtil nas suas intenções. “Um espaço de repouso, um consolo, um conforto, um bálsamo – o que parece oportuno para os tempos em que vivemos”, escrevia nas notas que acompanhavam esse disco, lançado em 2023, e que musicou os primeiros momentos do concerto de quinta-feira – marcha marcial, repetição de tambores,  cordas ameaçadoras.

Combativa foi a sequência de “This Glorious Land”, “Let England Shake” e “Words That Maketh Murder” (”what if I take my problem to the United Nations”, cantava nessa canção), trilogia de uma Inglaterra pré-Brexit embrenhada na guerra do Afeganistão. Canções prescientes, como têm sido todas desde Let England Shake, premiado com um Mercury Prize em 2011, e que marcam um antes e um depois na história da rainha do rock alternativo. 

“50ft Queenie” e “Man-Size”, do álbum Rid of Me, um dos muitos abençoados pelo toque de midas de Albini, conferiram eletricidade a um alinhamento que alternou entre a subversão dos primórdios e a folk pastoral de hoje. “Dress”, do álbum de estreia de 1992, foi mais um dos destaques, tal como foi “Black Hearted Love”, um dueto com John Parish. Já na reta final, antes de a ginja de “Too Bring You My Love” encerrar o alinhamento, “Down By The Water” soltou as amarras do público mais resistente.

Na noite em que as mulheres dominaram (Harvey, Mitski e SZA foram as cabeças de cartaz do primeiro dia), a história de Alexandra Drewchin, ou seja, Eartheater dificilmente será recordada como um evento sísmico: calhou à cantora, compositora e multi-instrumentista norte-americana a ingrata tarefa de “assegurar” a primeira parte da compatriota Mitski, que atuaria momentos depois no Palco Vodafone. “Vocês dão-me vida e eu dou-vos vida de volta, é uma troca harmoniosa”, dizia à pequena legião de devotos que tinha à sua frente, ciosos de escutar a pop ora melífera, ora líquida e vulcânica (e sempre salvífica) de “Volcano”, “Tidal Wave” e outros temas que não escaparam ao curto alinhamento.

SZA até podia ser o grande nome do primeiro dia, mas o número de pessoas que acorreram às primeiras fileiras do Palco Vodafone, horas antes do começo do espetáculo, colocaram a nipo-americana Mitski em pé de igualdade com a nova estrela da R&B norte-americana. A artista, que já havia atuado nesse festival em 2017, perante alguma indiferença da plateia, trouxe consigo um novo álbum – The Land Is Inhospitable and So Are We – e um par de êxitos que lhe granjearam um inesperado culto em plataformas como o Instagram e o Tik Tok (“My Love Mine All Mine”, um dos temas que não faltaram no alinhamento, totaliza perto de mil milhões de audições só no Spotify). Multiplicaram-se os números e com elas os punhos erguidos no ar diante do palco, segurando sempre telemóveis. O espetáculo que apresenta agora é caprichosamente estudado, meio performance, meio concerto intimista (algo que já havia acontecido em 2019, quando atuou em Paredes de Coura), com uma plataforma circular a elevar a artista enquanto esta opera um jogo conceptual de cadeiras em que a música, tal como a banda que a rodeia, mais parece acessória. 

Melhor estiveram os American Football, banda que durou até ao virar do milénio e que regressou em 2014 para alguns espetáculos, colecionando à data três álbuns de estúdio – o primeiro, homónimo, de 1999, e outros dois, igualmente homónimos, lançados em 2015 e 2018. Na estreia dos norte-americanos em Portugal, a banda de Mike Kinsella – verdadeira instituição do indie e do emo do midwest americano, tendo operado, também, como baterista dos igualmente importantes Cap’n Jazz – apresentou um espetáculo exímio, mesmo sem esconder as fragilidades da passagem do tempo, com uma iluminação acolhedora e um alinhamento generoso, centrado inteiramente no álbum de estreia (exceção feita para a introdutória “Five Silent Miles”, a primeira amostra de um novo disco por vir). 

 

Depois da tempestade, a bonança

 

Milagre. Foi talvez a palavra mais proferida no segundo dia do Primavera Sound Porto. Depois do dilúvio da edição de 2023, antevia-se mais um dia de intensa tempestade, com chuva, trovoada e temperaturas elevadas. “Portugal, prepara-te para a tempestade que está para vir”, dizia Lana Del Rey num post publicado nas redes sociais, horas antes do espetáculo que granjearia a maior enchente do festival (foram 40000 pessoas que se deslocaram até ao Parque da Cidade de Porto na sexta-feira, o único dia esgotado desta edição).

Milagre porque, contra todos os avisos meteorológicos, e num dia em que um dos maiores palcos do festival ficou sem programação (a montagem de uma estrutura de 13,5 toneladas no Palco Vodafone acabaria por levar ao cancelamento dos concertos de Classe Crua, Legendary Tigerman e Justice, um dos cabeças de cartaz do segundo dia), Lizzy Grant fez parar, literalmente, as águas.

Depois da emotiva estreia no festival Super Bock Super Rock, em 2012, e da consagração, também nesse festival, em 2019, a autora de “Video Games” regressou a Portugal para um dos espetáculos mais antecipados do ano (e foram muitos os que pernoitaram junto às imediações do recinto, procurando garantir uma vista privilegiada).

© Lana del Rey

O alinhamento passou a carreira da artista em retrospectiva – imaginem uma “Eras Tour” em formato redux, com direito a mudas de roupa, bailarinos e um holograma –, percorrendo a melhor parte dos álbuns da norte-americana (Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd é o mais recente). O imponente aparato cénico (a recriação de uma mansão com escadaria, janelas e motivos neoclássicos) e o bucólico conjunto de projeções que preenchiam a tela pintavam a imagem de uma América defunta, corporizada no ideal saudosista da norte-americana, perdida algures entre a fantasia de Hollywood e um qualquer road movie.

Mais perto de começar uma tempestade estiveram os australianos Tropical Fuck Storm, grupo que nada nas mesmas águas dos Bad Seeds e dos Birthday Party e que não esconde a influência de Cave, até pela aproximação tímbrica do vocalista Gareth Liddiard, também ele um animal de palco. Na estreia do grupo em Portugal, a banda que nasceu das cinzas dos extintos Drones (estiveram na edição de 2013 do Primavera Sound) trouxe a descarga elétrica necessária para um dia pautado por percalços, contagiando o público com um impressionante repertório de baladas assassinas, força telúrica e entrega total.

Já a britânica Tirzah encerrou o certame do segundo dia com uma performance labiríntica feita de fumo e vapor, povoada pela voz fantasmática da cantora e compositora Londrina. Sem Mica Levi, mas com o cúmplice Coby Sey à retaguarda, tal como já havia acontecido na edição de 2019, Tirzah deambulou entre as guitarras dissonantes e os pianos fraturados do seu terceiro disco de originais, trip9love…???, exercício conceptual de produção que desafia noções de tempo e estrutura, explorando a mesma base rítmica em todas as suas canções. Assombrosa (e assombrada) forma de fechar o dia.

 

Punk de alta-costura

 

Os fatos à medida reinaram no terceiro e último dia de Primavera Sound Porto. De um lado, a elegância de Jarvis Cocker, cara dos Pulp e uma das vozes incontornáveis do movimento britpop. Do outro, um elétrico Matt Berninger, na sua 22ª segunda passagem pelo país à frente dos The National. Sete anos é o período que separa a idade entre um e outro (Jarvis tem 60, Berninger 53). Dois lados de uma mesma moeda.

Há mais de uma década que os Pulp não pisavam terras lusas, e o acontecimento fez-se com pompa e circunstância: banda grande, iluminação variada, projeções que foram verdadeiros saltos no tempo, uma bola de espelhos no embalo da magnífica “Sorted for E’s & Wizz”. Jarvis, que regressou ao festival que o acolheu pela última vez em 2019, na altura em digressão com a banda JARV IS, foi triunfal na sua prestação à frente da banda que fez dele um ícone da pop-rock britânica dos anos 90.

“Estão prestes a ver o 546º concerto de Pulp”, lia-se nos ecrãs do Palco Vodafone, quando os primeiros sons se fizeram ouvir, ainda antes de Jarvis surgir no topo de uma escadaria com a lua cheia como pano de fundo. Indícios de uma noite longa e memorável que foi muito além do saudosismo.

A premissa era simples: “o que tentamos fazer nestes concertos é fazer com que estas canções regressem à vida”, dizia antes de “Disco 2000”, um dos temas de Different Class, abrir a pista de dança. Estava iniciada a festa, e com ela um salto ao passado em modo “best of”. Porque é isso que os Pulp melhor sabem fazer: celebrar o passado como se de um encore se tratasse. Foi isso que nos disseram no começo do espetáculo, e foi isso que aconteceu quando, já no dito encore, levaram o público ao delírio com a sequência de “Like a Friend”, “Underwear” e a apoteótica “Common People”, hino à superficialidade, à ironia e ao sarcasmo, comentário social sobre a glamorização da pobreza e epílogo de um concerto perfeito.

© Pulp

Os fãs pediram e eles devolveram: ao 22º concerto em Portugal, os The National treparam palco e público e voltaram a chamar-lhe de casa. Na noite de sábado, no palco maior do Primavera Sound Porto, assistimos uma banda que insiste em não arredar pé, ainda que já não se distinga pela inventividade. Durante a melhor parte de duas horas, a formação de Ohio foi igual a si mesma, repetindo a fórmula que fez do grupo um dos mais acarinhados pelo público português: a bateria sempre irrequieta de Bryan Devendorf, as guitarras que alternam entre o histrionismo de Aaron Dessner e o nervo miudinho do irmão Bryce Dessner e as letras confessionais de Berninger, capazes de provocar arrepios até aos fãs mais incautos. 

E se Jarvis é o verso excessivo e extravagante da moeda, Matt Berninger é o seu reverso. Reivindicou a legalização do aborto, endereçou insultos a Donald Trump e prestou uma mensagem de apoio a Joe Biden, antes de pedir um cessar-fogo imediato. 

Mas não foi só de corte e costura que se fez o último dia deste festival. Durante a tarde, o punk fez-se ouvir alto e bom som com a música dos GEL, formação oriunda da Nova Jérsia que opera entre as franjas do punk de três acordes e o músculo do hardcore. Já os compatriotas Mannequin Pussy, mais versáteis no som que praticam, ainda nos enganaram com o som redondo de “Sometimes”, punk em ponto de caramelo que apresenta o novíssimo I Got Heaven, apontado já como um dos grandes sismos indie do ano. Mas as coisas mudaram de figura com o urdir ruidoso de guitarras, pratos e gritos da faixa titular. “Não respeito qualquer religião que não deixe as pessoas viver à sua maneira”, dizia a vocalista Marisa Dabice momentos antes, num concerto onde foram também endereçadas duras críticas ao governo norte-americano, “pelas atrocidades cometidas contra o povo palestiniano”.

Já a estreia em Portugal dos bascos Lisabö representou, por si só, um acontecimento. Donos de um pós-hardcore denso, feito de acordes emocionais e progressões em forma de crescendos intermináveis, o sexteto gémeo em bateria, baixo e guitarra apresentou, diante de uma tela preenchida pela bandeira da Palestina, uma autêntica sessão de expiação, de tensão e libertação, embrenhados por um forte sentido da comunhão. Pelo meio – e depois de uma falha no sistema de som que levou à interrupção do espetáculo durante alguns minutos –, a banda prestou uma pequena homenagem a Steve Albini, homem dos Shellac que todos os anos atuava naquele festival (horas antes, foi homenageado com uma listening party).

Uma última nota para o Palco Plenitude, estrategicamente situado entre os palcos Porto e Vodafone, e que acolheu os melhores fechos do festival. Foi lá que decorreu a estreia nacional dos Mandy, Indianna, que só não colheram mais fãs porque, à mesma hora, atuava no Vodafone um furacão chamado Arca. Vêm da mesma Manchester que nos deus Ian Curtis, Mark E. Smith e Vini Reilly, e que nos últimos anos tem dado cartas com uma nova geração de valores igualmente desafiantes, de Blackhaine a Rainy Miller e Space Afrika. Tal como os últimos, a música dos ingleses apoia-se numa base virulenta de texturas e ritmos industriais, eletrónicas apocalípticas e guitarras indomesticáveis, com a vocalista Valentine Caulfield a alternar entre o inglês e o francês, debruçando-se sobre as mesmas questões existenciais dos seus antecessores espirituais.

O Primavera Sound regressa ao Parque da Cidade do Porto no próximo ano, entre os dias 12 e 14 de junho.

Fotografia: Hugo Lima / Primavera Sound Porto 2024

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