Xavalo Fest com Reia Cibele, Divã, Sadhäna e ORUM

Xavalo Fest com Reia Cibele, Divã, Sadhäna e ORUM

| Junho 24, 2024 9:17 pm

Xavalo Fest com Reia Cibele, Divã, Sadhäna e ORUM

| Junho 24, 2024 9:17 pm

O Xavalo Fest, que ocorreu no passado dia 15 de junho na Socorro, é um festival independente de bandas jovens do Porto. Nesta edição do festival estiveram presentes as bandas Reia Cibele, Divã, Sadhäna, e Orum. Apesar de terem estilos muito diferentes, todas elas têm duas coisas em comum: a sua intensidade e extenso catálogo de emoções, que certamente não são para todos.

Reia Cibele é uma banda pós-hardcore e screamo, que entra em palco mal se fazendo anunciar e sem dar qualquer contexto ao público: começam a tocar a pés juntos, furiosos, imersos numa verdade que não é fácil de revelar em concerto se não estivermos por dentro do seu trabalho. No entanto, nos momentos entre músicas, à semelhança do que já tinham vindo a fazer noutras atuações, pronunciam-se contra nazis, transfóbicos e homofóbicos, pondo em palavras a mensagem do seu trabalho. Têm, também, alguns momentos de humor entre as músicas que tornam a experiência mais agradável para quem não é apreciador do género. Ainda assim, tendo apenas em conta a música, é praticamente impossível compreender a posição que a banda se esforça por assumir, ainda que os seus membros tenham claramente muito à vontade com o público. As próprias melodias também não são claras, sendo mascaradas tanto pelos ritmos muito rápidos como pelos gritos da voz. Isto é, sente-se um distanciamento entre o público e a banda ao nível do significado musical (caso exista). Porém, talvez seja precisamente esse o objetivo: a mensagem principal é a de inclusão, mas forma como ela é passada é dura, difícil, crua e cortante, tal como a vida também pode ser.

Reia Cibele

Certamente sentida e apreciada por uns (muitos), a mensagem de Reia Cibele pode também confundir-nos. A emoção principal que passam é a raiva, mas também a dúvida, que pode levar às seguintes perguntas que talvez façam sentido quando analisamos a música atual: se a ideia é ser pro-inclusão, porque é que a mensagem é tão difusa? A inclusão não significaria que a mensagem pode ser entendida por todos, ou poderá isto querer dizer que temos sempre de nos esforçar por ser incluídos neste universo? Porque é que é necessário explicar por palavras a posição política da banda? Não devia a música falar por si? Até que ponto é que a música tem de conter em si todas as mensagens, ou melhor, quão subentendidas podem estar para que consigam na mesma ser entendidas? Não existem propriamente regras ou respostas simples a estas questões, mas uma coisa é certa: se estivermos à procura do prazer provocado pela dor, esta será sem dúvida uma banda para descobrir.

A segunda banda a entrar no palco da Socorro foi os Divã, uma banda de pós-punk da Amadora, constituída por membros de origens diversas. Como os próprios dizem, contam com “dois gajos de Matosinhos, um de Almada, um rapaz de Carcavelos e uma rapariga de Mafamude”. No baixo, temos Mafalda Andrade, nas guitarras temos João Milho e Francisco Nunes, na bateria Salvador Lobo Xavier, e Gabriel Nery na voz e no saxofone. Os Divã destacam-se pela sua presença em palco, simultaneamente política e misteriosa. No entanto, as suas posições políticas preferem ações às palavras: antes de começar a tocar, um dos guitarristas começa logo por pendurar no braço da guitarra uma bandeira da Palestina, e isto enquanto usa uma t-shirt de Che Guevara com boné a condizer (claramente, tudo fora pensado ao pormenor). Por outro lado, o baterista escolhe tocar de meias e vestido, tal como já tem vindo a acontecer em concertos anteriores (como foi o caso da edição do dia 8 de dezembro de 2023 do festival APUROS, um festival de música independente que ocorre periodicamente no Porto). As suas roupas desafiam convenções, construções sociais e estereótipos de género, enquanto referenciam o estilo de Mark Bowen, o guitarrista dos ingleses IDLES.

Divã © Diana Paiva

O mistério dos Divã reside sobretudo na voz de Gabriel Nery, sobretudo em músicas já conhecidas do público, como “Morte em Abrantes” e “Barracuda“. “Morte em Abrantes” foi a última música tocada em concerto e talvez a mais aguardada pelo público. À semelhança de outras músicas também tocadas em concerto e que figurarão no EP de estreia da banda, que sairá brevemente, conta com fortes influências de spoken word. O facto de se recorrer ao spoken word em grande parte dos versos confere maior liberdade ao cantor para dar maior ênfase às palavras e ideias que pretende transmitir, transpondo as fronteiras entre poesia e música e incorporando uma personagem, que não tem de todo medo do palco. “Morte em Abrantes” é, por isso, uma canção teatral, em que a voz, irradiando energia masculina e até dominadora, dialoga com a sua “querida amiga”, num misto entre interesse, distância, provocação, e partilha de experiências. A personagem incorporada por Gabriel Nery é reflexiva, existencialista, provocatória, mas também demasiado confiante quando se afirma como personificação do “gótico português” e quando desrespeita a amiga para a fazer “perder esse seu ar”. A vivência da personagem é cinematográfica e prende-nos, mesmo contra a nossa vontade. A voz não quer atenuar a realidade nem tão pouco que gostemos dela, sendo talvez até com alguma raiva que acabamos por a aceitar. Talvez porque, indiretamente, nos apercebamos da sua força, da sua razão (em certos pontos) e da expressividade com que “pede desculpa inconveniências” sem realmente pedir desculpa:

“Este meu sentido de humor é um bocado kamikaze
Mas é por isso que não consigo pensar e ser feliz ao mesmo tempo
Porque para fazer rir é preciso ter tomates
E mesmo que me tentes controlar
Eu peço desculpa pelas inconveniências”

Talvez isto nos faça refletir sobre o quanto estamos dispostos a esconder só pela conveniência de ser aceite, e sobre quanta cultura é cancelada só por ser desconfortável. Desconforto não é um erro por si só: a beleza está nas reações que provoca e o público não parece de todo incomodado pela presença dos Divã. Pelo contrário, parece hipnotizado, tanto pela voz, pelo saxofone, pela bateria e pelas notas cirúrgicas do baixo, embora as verdades que são ditas e pela forma como são ditas sejam difíceis de engolir. Mas, dado que “Morte em Abrantes” conta com a repetição da frase “Quem correu já não tem pernas para andar/Como posso aqui estar?”, talvez o sujeito poético não seja tão forte e imponente como parece ao início. Como o próprio afirma, é ele quem acaba por perder o seu ar e não a sua “querida amiga”(o que é irónico, pois esta personagem é interpretada pelo saxofonista/vocalista, o membro da banda que mais vive do ar). É ele quem “debaixo da terra vai poder crescer” e quem embarcará na viagem sem rumo até Abrantes, deixando-nos sem saber onde nos posicionar, mas certamente com vontade de ver mais dos Divã. Em breve, sairá o seu EP de estreia com as músicas novas que nos foram apresentadas durante o Xavalo Fest. O EP chamar-se-á Cova Funda, sendo constituído pelas faixas “Ponto Morto”, “1001 Noites”, “Sangue”, “Joelhos” e “Mãe”.

Os terceiros a atuar no Xavalo Fest foram os Sadhäna, constituídos por Lourenço Valdez (guitarra e voz), Tiago Vaz (bateria) e João Valente (baixo). O nome da banda vem do termo Sädh, que, em sânscrito, significa atingir objetivos. Sadhäna é, assim, “perseverança e um compromisso para atingir a excelência”. De facto, o nome diz tudo, pois a banda gravou sozinha o seu primeiro EP, You Won’t Believe What Happened Last Night, em casa do tio do baterista e com material limitado. Os Sadhäna defendem que, para produzir som, não é necessariamente preciso ter material muito bom, mas sim conhecimento e força de vontade. Embora a produção do EP não tenha ficado perfeita ao nível da mistura e o som possa soar demasiado datado para quem esteja à procura de algo novo, podemos ser contagiados pela sua energia e trabalho.

Sadhäna

Assim, os Sadhäna optam sistematicamente por um do it yourself approach, visível tanto nas músicas do EP e em Die Alive, o seu mais recente trabalho, que se encontra disponível no Spotify desde 26 de janeiro de 2024. Esta música possui já um videoclip, sendo de notar a estética nele utilizada, assim como a mensagem da música: “Die Alive” é sobre estar vivo e morto por dentro, sobre, por exemplo, ter uma profissão que não nos faz felizes e nos deixa demasiado presos à rotina. Tanto “Die Alive” como as músicas do EP possuem uma sonoridade característica do rock dos anos 70, que é visível especialmente em “Nightclub Romance”, onde é inegável a influência dos The Beach Boys. “Nightclub Romance” estreou-se a 12 de novembro de 2022 num concerto dado na Casa Comum da Universidade do Porto. Um ano depois, valeu-lhes a vitória na final do concurso de bandas do XII FMUP MUSIC FEST, que se realizou no Hard Club, também no Porto, no dia 9 de novembro de 2023. E, agora, em 2024, estrearam-se no palco da Socorro, onde encantam sobretudo quem procura o passado sem sair do presente.

O Xavalo Fest terminou com o trio de doom/post-metal ORUM. São uma banda de Lisboa composta por Rodrigo Santos (guitarra), Mike Olivares (baixo), e Duarte Dias (bateria). Os ORUM (um anagrama da palavra muro) foram uma agradável surpresa, pois fizeram o público ver um lado da música em tudo diferente do que tinha sido apresentado pelas três bandas anteriores: o de fazer música pela música. Ao contrário do que vimos nas mensagens políticas e gritos furiosos dos Reia Cibele, nos statements teatrais dos Divã, e na apresentação das influências estudadas dos Sadhäna, os ORUM procuraram cultivar o desapego e romper com a necessidade de extrair mensagens. O significado de ouvir a música dos ORUM está na própria experiência, que nos deixa num estado de contemplação. Assim, a sua música dá-nos a liberdade de imaginar e sentir sem recorrer a palavras nem a vozes, como que dizendo que o som basta para nos guiar. Efetivamente, quando ouvimos as músicas do EP Kosmosnão é preciso grandes palavras ou explicações para percebermos que é assim que os ORUM representam uma galáxia. A sua música é descritiva, metafísica e imersiva, funcionando como um descanso da cabeça num mundo demasiado acelerado, onde há demasiada informação e demasiado com que lidar ao mesmo tempo. Ouvi-los, numa palavra, funciona como um aliviar da pressão quotidiana: é especialmente relaxante porque não impõe nem exige nada da parte do ouvinte, a não ser um par de ouvidos e uma mente disposta a viajar. Os tempos longos das músicas e os elementos repetidos dão-nos uma ideia de um espaço vasto, eterno e ilimitado como o universo: a música torna-se, literalmente, num muro que se ergue entre nós e o resto. Às vezes, é preciso.

É possível dizer que o Xavalo Fest da Socorro tem de tudo para todos os gostos, tendo funcionado como uma experiência bastante intensa, repleta de mensagens, significados políticos e musicais, mosh pits, e várias emoções em conflito. Despedimo-nos a refletir sobre os muitos elementos reveladores do estado da cena underground portuguesa e do seu potencial criativo, na esperança de ver a continuidade destes projetos e o começo dos que estarão para vir. Despedimo-nos com a sensação de que isto foi apenas o início de qualquer coisa diferente.

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