Wave Gotik Treffen 2024: voltar sempre onde se é feliz
Wave Gotik Treffen 2024: voltar sempre onde se é feliz
Wave Gotik Treffen 2024: voltar sempre onde se é feliz
E apenas um ano depois de ter feito a minha estreia naquele que é o maior festival gótico do mundo, voltei a meter-me num avião em direção a Leipzig para viver mais uma edição do Wave Gotik Treffen (WGT). Não tinha previsto regressar tão cedo a esta cidade, pois o rombo nas finanças que a deslocação do ano passado provocou ainda não está sanado. Mas o convite, entretanto surgido, por parte da organização das Gothic Identity Lectures, um dos eventos que integram o programa oficial do WGT, convenceu-me a fazer mais este esforço e aproveitar esta oportunidade única para garantir, ainda que de forma muito humilde, alguma representação nacional no programa do festival (além da minha prestação, apenas tomei conhecimento de uma outra participação portuguesa no programa do WGT, nomeadamente a do Manuel Almada, que foi DJ de serviço numa das noites do Täubchenthal).
Leipzig não é uma cidade barata, pelo menos para os nossos bolsos. E o WGT constitui-se, de há anos a esta parte, como um dos principais eventos culturais da cidade, atraindo anualmente cerca de 20.000 festivaleiros que pagam bilhete para assistir aos inúmeros eventos que o programa oferece, e muitas mais pessoas que, não comprando bilhete, aproveitam, ainda assim, os quatro dias do festival para deambularem pela cidade e viverem o ambiente inconfundível que Leipzig oferece a todos quantos a visitam nesta altura. O setor hoteleiro já percebeu que encontra no festival uma forma de compensar o menor turismo com que lida durante outras épocas do ano, e aproveita esta semana do Pentecostes (o festival realiza-se sempre na semana desta celebração, que assume, na Alemanha, uma importância que desconhecemos por cá) para escalar os preços do alojamento para valores muito acima do razoável. No entanto, continua a haver procura e enquanto assim for os hoteleiros agradecem e continuarão a explorar esta possibilidade. Ainda assim, é uma pena que isto aconteça, pois verifica-se de ano para ano que cada vez mais gente opta por não ir a Leipzig nesta altura, pois não tem folga financeira para o fazer.
Mas concentremo-nos no que interessa, o festival, e deixemos os lamentos para outro dia.
17 de maio, sexta-feira
Ao contrário do ano passado, este ano cheguei a Leipzig já a tarde de sexta-feira ia bastante adiantada. Entre apanhar a ligação do aeroporto para a cidade, depois o transporte para o alojamento, outro para o Agra, centro nevrálgico do evento, para levantar a acreditação de imprensa, que daria acesso aos concertos e demais atividades, não sobrou tempo para ir até ao Clara-Zetkin Park, o magnífico jardim onde se realiza o famoso piquenique vitoriano. Este piquenique começou por ser uma atividade que se encontrava fora do programa oficial do festival. Contudo, o protagonismo que foi assumindo de ano para ano tornam-no atualmente num dos mais importantes momentos do WGT. O piquenique consiste na reunião de largos milhares de góticos que passam o ano inteiro a imaginar as mais extravagantes indumentárias para levarem para este evento. A par com os participantes da subcultura, muitas centenas, se não mesmo milhares, de curiosos deslocam-se igualmente até ao parque para assistirem àquele inigualável espetáculo de criatividade e beleza. É certo que muitos “puristas” olham de forma muito crítica para este evento, pois entendem que desvirtua completamente o que é a subcultura, carnavalizando-a. Apontam igualmente o dedo aos milhares de pessoas cuja participação no festival se limita a tomar parte do piquenique, sem que depois adquiram a milagrosa pulseira que lhes dará acesso aos concertos do WGT. Verifica-se aqui aquela velha disputa em torno da autenticidade do gótico, com uns, os mais comprometidos, que se sentem os verdadeiros góticos, a acusarem outros, os que apenas procuram atrair a atenção para algumas fotografias, como sendo os falsos góticos, os posers. Conflitos à parte, goste-se ou não se goste, este piquenique é algo de espetacular e tem dado um contributo importante para envolver toda a cidade em torno do festival e da subcultura gótica, contribuindo para que os góticos encontrem em Leipzig uma cidade que os acolhe impecavelmente, que gosta deles, que não os julga, que aprendeu, ao longo destes anos, a desfazer os estereótipos e preconceitos em relação a esta subcultura.
Foi pena não ter conseguido ir até ao piquenique vitoriano, mas uma simples pesquisa pelo evento nos motores de busca da internet devolverá centenas de vídeos sobre o que lá aconteceu. Fica o desafio: procurem os muitos registos que se fizeram do piquenique e ficarão com uma ideia do que lá se pôde encontrar.
Na viagem para o Agra, com o intuito de levantar a acreditação, tive a oportunidade de imergir no fantástico ambiente que o festival proporciona. Os transportes públicos, que por estes dias são tomados de assalto pelos milhares de festivaleiros, funcionam como meio de transporte de um evento para outro, visto que a pulseira do festival permite viajar gratuitamente por toda a zona central da cidade, quer seja de TRAM, quer seja de autocarro. A linha 11, que conduz até ao Agra, obriga a um reforço dos veículos durante estes dias para poder acomodar os muitos milhares de utilizadores. E foi precisamente neste TRAM que me deparei com carruagens completamente cheias de góticos, uns numa forma dir-se-ia mais discreta, com umas simples calças e t-shirt pretas, mas muitos deles com indumentárias absolutamente espetaculares e difíceis de descrever apenas em palavras. Além das roupas, existe igualmente um cuidado extremos com a maquilhagem que muitos góticos exibem. De igual forma, também os cabelos são estilizados de forma espetacular, mais no caso delas do que no caso deles, visto que eles, em resultado da idade, por norma já não têm muito cabelo para apresentar. Esta é uma das realidades com que a subcultura gótica se debate: os góticos apresentam uma média de idades já bastante madura, tendo a maior parte deles entrado na subcultura durante a sua adolescência, que aconteceu algures ali nos anos 80 ou 90. Não significa que não haja sangue novo a entrar, mas o facto é que esta cultura alternativa é composta maioritariamente por gente já com uma idade bem madura. Outra coisa que fica na memória, neste caso olfativa, destas viagens de elétrico é o perfume gótico. Sim, os góticos têm um perfume, chama-se Patshouli e tem várias variantes, mas que apontam todas mais ou menos para o mesmo aroma. E o facto é que muitos góticos se encharcam generosamente neste perfume, deixando um rasto inconfundível por onde passam. Nesse sentido, toda a cidade de Leipzig cheira a gótico durante estes dias.
De credencial ao pescoço, dirigi-me de imediato para o Felsenkeller, onde iriam atuar bandas pertencentes ao catálogo da Young and Cold, uma das mais interessantes editoras do momento. Interessava-me particularmente ver a estreia europeia da banda mexicano-americana Haunt Me, uma das que mais me têm marcado nos últimos meses. Cheguei com o concerto de Kontravoid já bem avançado, mas ainda tive oportunidade de assistir a algumas músicas. O ambiente estava espetacular. O Felsenkeller é um espaço muito bonito e a sala estava muito bem composta. O WGT conta anualmente com cerca de 200 bandas no seu cartaz e a organização procura colocar géneros musicais diferentes em diferentes espaços. Desta forma, quem é dado ao medieval e folk sabe que tem de ir à Vila Pagã, quem quiser ver os grandes nomes da cena sabe que os encontrará no Agra e quem quer explorar os outros géneros faz uma busca no programa e identifica os espaços que servem os seus interesses. No caso deste dia, o Felsenkeller esteve reservado para as sonoridades Post-Punk, Darkwave e Synthpop. No caso de Kontravoid, o Synthpop deste canadiano a virar ali para o EBM descarregou uma energia que se afigurou bastante contagiante para as largas centenas de pessoas que se encontravam no Felsenkeller. Como disse, não consegui ver todo o concerto, mas aquilo a que tive oportunidade de assistir convenceu-me completamente.
Enquanto a banda seguinte, Haunt Me, preparava a sua atuação, houve tempo para retemperar forças no bar e ver, entre as muitas t-shirts alusivas a diferentes festivais góticos, uma camisola com um logo bem meu conhecido: um dos presentes tinha uma t-shirt da edição 2022 do Extramuralhas, por sinal com o mesmo logo que eu tinha no meu casaco. Claro está que foi o suficiente para que começássemos a conversar. Percebi que se tratava de um alemão que é absolutamente fã do Entre/Extramuralhas. Desde 2015 que não perde uma edição e este ano também não faltará. É por isso que acho que as t-shirts de festivais são sempre uma boa opção para levar a estes eventos, dão sempre origem a boas conversas.
O concerto de Haunt Me começou à hora marcada, uma das imagens de marca do WGT; aqui não há atrasos. Os muitos presentes rapidamente abandonaram os balcões do bar para se dirigirem até perto do palco. Haunt Me, já o disse, é um dos mais interessantes projetos que vou ouvindo nos últimos tempos. Representam o muito de bom que a América do Sul, especialmente o México, vai oferecendo ao mundo gótico de há algum tempo a esta parte, embora esta banda tivesse sido apresentada como sendo norte-americana, país onde, efetivamente, estão radicados.
Haunt Me produzem um Post-Punk de toada muito darkwave. Apenas dois elementos são suficientes para construir um bom projeto, como fica provado com esta banda. Julgo que o seu álbum This Sadness Never Ends terá sido tocado na íntegra. Acho que vale a pena ficar atento a este projeto e estou certo que a partir desta estreia europeia andarão mais vezes pelo nosso continente. Espero que, a acontecer, possam vir acompanhados de outras bandas igualmente interessantes. Assim, de repente, vêm à memória bandas como Hoffen ou Vacios Cuerpos, por exemplo. Fica a dica.
A última banda a pisar o palco nesta noite foi Rendez-Vous, projeto francês de Post-Punk ali a puxar quase para o punk nalguns momentos. Gostei, mas confesso que estava mais confortável com as sonoridades das bandas anteriores. O jogo de luzes utilizado, embora esteticamente interessante, tornou difícil obter imagens decentes deste concerto. Não foi o meu concerto do dia, mas não desiludiu. Pelo menos os muitos fãs pareceram ter ficado rendidos a estes franceses.
18 de maio, sábado
Após uma noite bem dormida, que permitiu recuperar do desgaste da viagem da véspera (o avião é um meio de transporte fantástico, mas o tempo que se perde entre esperas no aeroporto, controlos e ligações é um absurdo), saí do alojamento em direção ao centro da cidade. Este dia teria a agenda mais pesada de todo o festival. Apenas a manhã estaria um pouco mais folgada, pelo que aproveitei para ver como estava o ambiente na cidade. Assim que saí do TRAM no Augustusplataz, dei uma pequena volta, explorando a principal rua do centro. Um pouco à frente, já se concentravam alguns atletas totalmente vestidos de preto e envergando as t-shirts da corrida gótica. Para quem julga que o WGT é apenas um festival musical desengane-se; este evento é composto por dezenas de atividades diferentes, e uma delas é uma corrida de atletismo de góticos, que sai do centro da cidade e vai até ao Südfriedhof, o maior e mais conhecido cemitério, que fica junto à principal construção de Leipzig, o impressionante monumento da memória da chacina dos povos, uma construção com uns impressionantes 92 metros de altura, o maior memorial da Europa.
Durante a minha exploração das principais ruas da cidade, apercebi-me da ligação que os lojistas mantêm com o WGT. Independentemente do negócio que gerem, os responsáveis pelas lojas fazem questão de colocar placas de boas-vindas à porta das suas lojas ou nas próprias montras. Há também quem opte por decorar as montras com motivos góticos e quem adapte os produtos ao evento. Desta forma, é interessante poder observar como lojas de roupa vendem indumentária e acessórios góticos durante estes dias, como restaurantes oferecem ementas góticas, como a principal pastelaria da cidade pega no doce tradicional de Leipzig e confeciona uma edição especial em forma de caixão. É o comércio a aproveitar-se, dirão uns. Certo, mas não deixa de ser uma prova que o festival marca e envolve toda a cidade. E basta conversar com alguns destes lojistas, como eu fiz, e percebe-se que não é apenas a vertente comercial que os motiva a entrar no espírito do festival; as pessoas de Leipzig gostam genuinamente do WGT.
Por volta das 11:00, interrompi a minha deambulação urbana para voltar ao Augustusplatz, local de encontro de umas dezenas de carros funerários que ali se juntam anualmente para depois fazerem um desfile em direção ao Südfriedhof. Este é outro dos eventos que começou há alguns anos de forma paralela ao programa oficial, mas que se vem tornando cada vez mais um dos momentos mais chamativos do festival. A criatividade aqui não tem limites, e os carros funerários não despertam a repulsa e condenação que se poderia esperar em países mais conservadores e onde o tema da morte constitui ainda um tabu. Vale a pena ver pelo menos uma vez.
Entretanto, deparei-me com o final da manhã e decidi comer rapidamente qualquer coisa, pois aproximava-se a hora de ir para a outra ponta da cidade, mais precisamente em direção ao Ballsaal, o salão de baile da cidade de Leipzig, um edifício antigo muito bonito e bem preservado e onde iriam acontecer as palestras das Gothic Identity Lectures. Organizadas por Jennifer Karas, norte-americana radicada há vários anos em Leipzig, estas palestras procuram, desde 2019, trazer algum debate e discussão em torno de temas da cultura gótica. Até à edição do ano passado, elas realizavam-se em pleno centro da cidade, no esplendoroso edifício antigo da bolsa. No entanto, a capacidade da sala ficava muito aquém dos muitos interessados em assistir a estas sessões, mas que não o conseguiam fazer por a lotação esgotar rapidamente. Nesse sentido, a organização do WGT decidiu optar por este espaço este ano, maior, mas mais afastado do centro da cidade, embora nas imediações da Vila Pagã e do Agra, o que o torna igualmente uma boa localização. E a opção revelou-se correta, pois a sala conseguiu ter uma assistência próxima da capacidade máxima, pelo menos até por volta das 16:00, pouco antes de se iniciarem os concertos nos vários palcos espalhados pela cidade.
As Gothic Identity Lectures procuram discutir temas relacionados com a identidade gótica que são apresentadas por especialistas. Este ano, o cardápio contou com uma discussão em termo do circuito underground no tempo da RDA, especialmente o que era baseado na gravação e circulação de cassetes áudio, feita por Alexander Pehlmann, e que depois teria importante contributo na formação da cena gótica na Alemanha de Leste e mais tarde na sua amálgama com a Alemanha Federal aquando da reunificação das duas Alemanhas. No caso de Xavier Kruth, o tema foi semelhante, mas desta feita relativamente ao circuito underground da Checoslováquia no tempo da ditadura, que atravessou toda a segunda metade do século XX e que só conheceria o seu fim em finais dos anos 80. Uma das sessões mais interessantes foi protagonizada por Dan Von Hoyel, excêntrico gótico cinquentão, que veio explicar a ciência por trás da scary music. Acompanhado de um estranho teclado de sopro, esta sessão viveu muito da demonstração prática de como os sons, e a sua conjugação em situações específicas, permitem transformar notas inocentes em acordes de música assustadora que depois podemos encontrar, por exemplo, nas bandas sonoras de filmes de terror. Excelente!
De seguida, a mesa dos palestrantes foi tomada de assalto por várias personagens, nas quais se incluía a organizadora, Jennifer Karas, que procuraram partilhar a sua experiência enquanto participantes da subcultura gótica. Com uma mesa composta por nacionalidades diversas, mas com preponderância para os Estados Unidos e Canadá, passando também pela Suécia, a assistência pôde perceber como é que cada um daqueles palestrantes fez a sua inserção na subcultura gótica. Interessante, sobretudo para perceber que também nos EUA e Canadá, não obstante serem países enormes e bastante desenvolvidos, nos centros de menor dimensão a dificuldade em formar uma comunidade gótica foi semelhante à que muitos experienciaram nas pequenas cidades e vilas da Europa.
De Inglaterra chegou depois Mark Booth, astrónomo que veio procurar explicar como o Sistema Solar também pode ser tomado como base para explicar a cultura gótica. Interessante, sem dúvida, mas exigente para o momento pós-prandial e depois de um dia desgastante como o da véspera. Gostaria de ter tido maior conhecimento para poder acompanhar toda a muita informação que este académico ali partilhou com a audiência.
Entrou de seguida este vosso escriba para falar da estereotipização dos góticos em filmes e séries de televisão. Exige a humildade que não me alongue demasiado no relato da minha apresentação, mas posso dizer que, embora afetado por problemas técnicos imprevistos (o computador decidiu bloquear e teve de entrar um outro portátil de recurso, que decidiu que não iria ler os vídeos que levava preparados), a apresentação correu bem e as muitas perguntas que o público presente colocou no final deram prova disso mesmo. Um agradecimento especial ao casal de portugueses que aceitaram o repto que deixei nas redes sociais e que se disponibilizou a perder algum do seu tempo para assistir à minha apresentação. Senti-me confortado por ter aquela embaixada lusa ali presente.
Houve ainda tempo para a apresentação de Jana Komaritsa, artista plástica e mentora do projeto de Dark Ambient Darkrad, que trouxe uma apresentação sobre o eroticismo dark, misticismo e o macabro na arte visual, uma apresentação que viveu muito da performance e da estética e que agradou bastante aos presentes. Menos sorte teve Alexander Nym, um nome importante na cena gótica alemã (são dele os livros comemorativos das 20ª, 25ª e 30ª edições do WGT). O tema que este estudioso abordou foi a das referências da Cabala na cultura pop atual, um tema bastante interessante e bem ilustrado, mas que contou com escassa audiência, não porque a apresentação ou o apresentador não fossem interessantes, mas porque, entretanto, os vários concertos do dia tinham já iniciado nos diversos palcos espalhados pela cidade.
Em suma, este evento revelou-se um sucesso, as melhores expectativas em relação à afluência de público foram superadas e acredito que irá continuar a integrar o programa oficial do WGT nas próximas edições.
Findas as palestras, foi momento de rumar rapidamente até outro dos palcos emblemáticos da cidade de Leipzig e do WGT: o Haus Leipzig. Sala bastante espaçosa e com belíssimas condições, aqui se reuniram neste sábado à tarde-noite vários projetos de Synthpop e Cold e Darkwave. Cheguei a tempo de assistir à apresentação dos franceses Position Paralèlle, que deram um concerto muito competente e que pôs toda a gente a dançar os ritmos acelerados produzidos pelos sintetizadores e restante maquinaria que se encontrava em cima do palco. Esta era uma das bandas que tinha assinalado como essencial para ser vista durante este festival e não me arrependi nada da aposta.
De seguida, foi a vez de entrar em palco Automelodi, projeto de um homem só que voou do outro lado do atlântico, desde o Canadá, até Leipzig para pôr toda a gente a dançar ao ritmo da sua música que mistura Synthpop com uma toada Post-Punk muito interessante. Grande momento. Mas se Automelodi convenceu, que dizer dos seus vizinhos norte-americanos Xeno & Oaklander, duo também de Synthpop que levou ao êxtase a sala, entretanto mais cheia neste princípio de noite do que os concertos precedentes do final da tarde. Não conhecia muito bem este projeto, mas fiquei sinceramente fã.
A última banda a entrar em ação foram os franceses Martin Dupont, um piscar de olho ao público mais veterano, e que trouxe uma boa amostra da Coldwave francesa e do Post-Punk destes gauleses que já por aqui andam há muitos anos. Já agora, e para quem é fã desta banda, os que não puderam ir a Leipzig para os ver terão oportunidade de se redimirem em breve em Coimbra, visto que eles estão agendados para atuar no Luna Fest que se vai realizar na cidade dos estudantes.
Foi um dia longo, mas bastante produtivo. Houve muita coisa para ver, para ouvir e para aprender. Esta também é a beleza do WGT; a oferta é tão grande e diversificada que nunca existe monotonia, há sempre algo de diferente para fazer durante os dias do evento.
19 de maio, domingo
O domingo, à semelhança do dia anterior, também teria agenda bem preenchida. A parte da manhã estava destinada para uma visita ao Südfriedhof, até ao momento o mais deslumbrante cemitério que tive oportunidade de visitar. Os dias do WGT são sempre profícuos em sessões fotográficas que ocorrem neste cemitério, com centenas de góticos a dirigirem-se para lá e a aproveitarem a oportunidade de servir de modelo para muitos fotógrafos que esperam conseguir fazer ali imagens preciosas para os seus portefólios. Nas semanas que antecederam o festival, era ver um corrupio de fotógrafos a tentarem agendar sessões fotográficas com interessados. O domingo, por norma, parece ser um dos dias preferidos para estas sessões. Mas este ano houve qualquer coisa que fez com que a afluência de góticos não se tivesse verificado. Fosse por causa da ameaça da chuva, que se fazia sentir nesse dia, fosse pelo dia não muito agradável que se vivia naquele domingo, o facto é que notei de forma clara a ausência de góticos. Apenas aqui e ali tive a oportunidade de observar a chegada de um ou outro grupinho, mas nada que se assemelhasse ao que, por exemplo, tive oportunidade de ver o ano passado. Uma das imagens mais curiosas que me ficou desta visita ao cemitério foi a grande concentração de fotógrafos que ia conversando enquanto aguardava pela chegada das suas “presas”. Quanto a mim, aproveitei a acalmia para fotografar os muitos espaços do cemitério, especialmente a estatuária, que é de uma beleza ímpar. Vale mesmo a pena ir a este cemitério!
A tarde estava destinada para concertos em vários locais na cidade. O início foi no Volkspalast, o palácio dos eventos, construção que nos pareceu ser do tempo da RDA, provavelmente uma oferta da União Soviética, pois a sua arquitetura em tudo se assemelha aos palácios da cultura que as forças soviéticas teimavam em plantar nos países onde iam exercendo a sua influência ali para o leste da Europa. Os dois enormes pilares com cruzes vermelhas na ponta que sobrevivem nas proximidades reforçam a probabilidade de estar correto na minha suposição.
A primeira banda que tive a oportunidade de ver foram os suecos The Secret French Postcards. A minha opção por este espaço para este dia tinha sido determinada precisamente por esta banda, que há muito acompanho. E que fantástico concerto deu! E não fui o único a ter esta opinião, pois o muito público presente estava totalmente rendido perante tanta competência e profissionalismo. Quem ainda não conhece, aconselho a retificar essa falha rapidamente, se faz favor.
O concerto seguinte foi noutro palco no mesmo edifício. O palácio dos eventos tem mais de um palco, pelo que é possível ir rodando entre palcos para assistir aos concertos que acontecem de forma intercalada, para que não haja concertos sobrepostos. Depois dos americanos entraram ao serviço os dinamarqueses The Foreign Resort. Que dizer deste concerto? Houve muita gente que gostou, é certo, mas confesso que não foi para mim o momento alto do dia. Tendo em conta que estava na primeira fila e nunca consegui ver a banda, dado o complicado jogo de luzes utilizado, duvido muito que quem se encontrava lá mais para trás tivesse conseguido vislumbrar o que quer que fosse. Enfim, os gostos são pessoais, já se sabe. Certamente houve quem achasse o máximo, mas, sinceramente, para mim, foi o concerto menos conseguido de todos os que vi nesta edição. Mas isso foi para mim, repito. Em momento algum pretendo com isto a desvalorizar a qualidade deste projeto.
Era chegado o momento de ir para outro lado da cidade, mais concretamente para outra das salas emblemáticas de Leipzig, o Stadtbad, um edifício que foi durante muitos anos a piscina pública e dos banhos públicos da cidade. O edifício é magnífico. Cheguei mesmo a tempo de ver Years of Denial. Depois do memorável concerto que deram em outubro em Leiria no Monitor, chegara a vez de confirmar se aquilo que eu vira em Portugal tinha sido um acaso ou se era sempre assim. Resposta fácil: é sempre assim. Os YoD são simplesmente fantásticos. Talvez seja isso que explique que, menos de um ano depois da última atuação, os possamos ver em breve novamente em Leiria, desta feita no Extramuralhas. E todos sabemos que não é política da Fade In repetir bandas, pelo que só a imensa qualidade deste projeto pode justificar esta exceção. A não perder!
A seguir entraram os espanhóis SDH, que não se deixaram minimamente intimidar pelo sucesso da banda que os antecedeu. Para o público presente, estas duas atuações ofereceram dois momentos inesquecíveis de boa música e de uma vontade imensa de agradecer a quem um dia decidiu inventar a música eletrónica. Muito bom.
Ao terceiro dia de festival, o corpo já ia dando mostras de alguma quebra, principalmente as pernas que já se iam recusando a acompanhar a vontade do dono em palmilhar quilómetros a pé um pouco por toda a cidade. Afinal, sempre foram cerca de 15km diários os que caminhei durante estes dias, com o recorde a ser batido precisamente neste domingo com 18km. Nada melhor, portanto, do que optar por um espaço mais calmo e confortável para os concertos da noite. E esse espaço foi, naturalmente, o magnífico Schauspielhaus, o teatro da cidade, uma sala muito bonita e bem confortável.
A primeira artista a entrar em ação foi Karin Park. Há muito tempo que ansiava por ver esta norueguesa ao vivo e o concerto superou as minhas melhores expectativas. Dominando com mestria a parafernália de sintetizadores e fios que tinha em palco, Karin Park teve a competência de encantar uma sala praticamente cheia que ali estava para a ver. As suas músicas de uma pop eletrónica muito agradável e com aquele toque nórdico difícil de explicar, mas que confere aos projetos provenientes daquelas bandas uma sonoridade inconfundível, permitiram que a artista fosse abrindo o seu cardápio musical, e difícil mesmo foi conseguir manter todas aquelas pessoas agarradas às cadeiras, resistindo à vontade de se levantarem e dançarem ao som bastante ritmado que emanava dos sintetizadores. Falando em sintetizadores, a certa altura um deles resolveu pregar uma partida à dona e ganhar vida própria, produzindo som quando tal não lhe era pedido e recusando-se a fazê-lo quando para tal lhe era solicitado. Nada que um ralhete da norueguesa não resolvesse, pois, como ela própria partilhou com o público, aqueles são sintetizadores e teclados analógicos um pouco rebeldes e por vezes difíceis de domar. Não foi o caso, e bastou uma reprimenda para que a maquineta não mais desobedecesse até ao final do espetáculo.
Depois de um intervalo para jantar, chegou o concerto maior da noite no Schauspielhaus. Spiritual Front andavam há semanas a publicitar este concerto nas redes sociais e, diga-se, ninguém mais do que eles fizeram um tão grande trabalho de divulgação. O programa do espetáculo estava bem definido, em linha com o que a banda anda há fazer já há alguns meses, e que fará em junho em Beja: na primeira parte do concerto um tributo aos Smiths, banda que encontra nestes músicos admiradores dedicados; e uma segunda parte dedicada a uma viagem pela carreira desta banda italiana.
A sala estava repleta, pelo que a insistência em divulgar o concerto parece ter resultado. E aos primeiros acordes da primeira música o público pôde perceber o que ali estava para acontecer: não se tratava de um simples tributo aos Smiths, com especial destaque para o emblemático álbum The Queen is Dead. Era mesmo uma reencarnação da banda inglesa feita por estes devotos fãs. Curioso observar que em vários momentos observei a forma como Simone Salvatori, vocalista e mentor da banda italiana, parecia uma cópia fiel de Morrissey, quer na forma como interpretava as músicas, quer na forma como se movimentava e nas expressões que fazia. Perante nós, tivemos, sem qualquer dúvida, uma cópia perfeita de Morrissey, com o mesmo talento e mestria, mas melhor feitio. De registar ainda que o vasto público gótico ali presente cantou todas as músicas do princípio ao fim, o que prova que, apesar de os Smiths não pertencerem ao cânone da música gótica, sempre ocuparam um lugar especial nas preferências deste público e, embora musicalmente talvez um pouco afastado do gótico como ele é percebido, as letras dos Smiths são plenamente compatíveis com aquela tristeza boa que os góticos tanto apreciam. Muito bom momento!
Findo o tributo aos Smiths, a banda mudou de registo e começou a desfilar as músicas de Spititual Front. E foi interessante verificar que a forma de estar em palco mudou, especialmente do Simone, que rapidamente abandonou aquela encarnação morriseyniana para voltar a ser ele próprio. Belo concerto que estes italianos deram nesta noite bastante primaveril neste canto da antiga Alemanha de Leste. Não podia ter terminado o dia de melhor forma.
20 de maio, segunda-feira
E eis que o último dia do festival chegou num ápice. Para este dia tinha uma agenda de concertos um pouco mais aliviada, mas muita coisa prevista ainda para fazer na cidade. De facto, o grande concerto que esperava ver era o de Mila Mar ao início da tarde na Vila Pagã. Mila Mar é uma fixação minha já com mais de 20 anos. Não consta que alguma vez tenha dado concertos em Portugal, e mesmo fora da Alemanha poucos terá dado. Ainda por cima, esta alemã esteve vários anos fora de atividade, tendo regressado há pouco tempo para alguns concertos. É difícil rotular a música que Anke Hachfeld (assim e chama a senhora) faz. Dir-se-ia que é uma mistura de folk com música do mundo temperada com muita eletrónica e às vezes uma pitada de rock. É ouvir.
Na verdade, a minha grande deceção veio na véspera quando me apercebi do comunicado oficial da organização do WGT informando que o concerto de Mila Mar não se iria realizar por motivos de doença da artista. Uma gripe, que avançou rapidamente para complicações relacionadas com febres altas e bronquite, impediam-na de atuar, pelo que teria de ser substituída por Eric Fish, que brindaria a audiência com o seu folk rock. Ainda fui espreitar, mas nem de longe nem de perto conseguiu desfazer a tristeza e desilusão que senti em não conseguir, finalmente, cumprir o desejo de ver Mila Mar pela primeira vez ao vivo. Que pena!
A manhã foi passada no centro da cidade, com uma incursão até ao mercado medieval de Moritzbastei, paragem obrigatória para todos os festivaleiros. A experiência deste ano não diferiu muito da do ano anterior; várias tendas (pareceram-me essencialmente as mesmas do ano passado) com espadas, facas, fios e pendentes, licores das mais diversas espécies e o que mais se possa imaginar que nos pudesse levar a uma viagem até ao passado, até uns séculos atrás quando a Idade Média vigorava na Europa. Junto a um palco, uma luta de cavaleiros atraía a atenção dos muitos presentes, que aproveitavam para registar com os seus telemóveis aquele momento. Um momento bem passado, mas que, sinceramente, não traz nada de muito diferente daquilo que se pode encontrar numa das inúmeras feiras medievais que podemos encontrar no nosso país.
Depois do almoço, foi altura de rumar em direção ao Agra, com uma paragem na Vila Pagã. A fila de pessoas que esperava para entrar indicava que aquele continua a ser dos espaços que mais gente atrai durante o WGT. Não sendo muito grande, há sempre mais interessados do que a lotação pode comportar, pelo que muitos candidatos têm de aguardar à porta que alguém saia para poder entrar.
A Vila Pagã é dos espaços que oferece mais e melhores oportunidades fotográficas. Começado nas tendas do comércio, onde de tudo se pode encontrar, desde um ferreiro forjando espadas ao vivo, até artesãos que trabalham o couro ou constroem acessórios para os góticos, até lojas de roupa, umas mais artesanais, outras puxando ali um pouco mais para a produção industrial. E comida. Há muita comida por ali. Desde os famosíssimos crepes com Nutella, que, como toda a gente sabe, eram muito consumidos na Idade Média, até ao porco no espeto, mais próximo do que é suposto encontrar num espaço como aquele. E de referir ainda a Sixtina, absintaria que existiu durante anos em Leipzig, mas que foi obrigada a encerrar há alguns anos. No entanto, continua a ser presença na Vila Pagã, e a aposta justifica-se, como a longa fila de cientes junto dela, ávidos por um absinto, pareceu provar.
A Vila Pagã é ainda um espaço ideal para fazer boas fotografias, pois as pessoas, à semelhança do que costuma acontecer no piquenique vitoriano, estão muito disponíveis para serem fotografadas. Foi na sequência de uma dessas fotografias que tive a oportunidade de fotografar dois góticos que depois me informaram serem membros de uma banda alemã Totentanz Strumpfsockig, projeto de música com inspiração medieval ali com umas incursões também no ethereal. Tendo em conta o tipo de banda, parece-me haver grande probabilidade de ser ela mesma uma das próximas bandas a atuar ali no palco da Vila Pagã. O tempo dirá se estou certo ou não.
Não havendo Mila Mar para ver e ouvir, rumei até ao Agra, poucos metros ao lado da Vila Pagã. Para o último dia tinha ainda três concertos para ver, um deles que esperava há muito, pois já o tinha falhado em Portugal: Vive la Fete. Pois, mas ainda não seria desta. À semelhança do que sucedeu com Mila Mar, também estes belgas foram acometidos de doença repentina que os impediu de ir até Leipzig. Substitutos: Welle:Erdball.
Gothminister foram os primeiros a entrar em ação. E que dizer deste concerto? Que gostei. Habitués no WGT (esta foi já a sua sexta atuação), deram aqui um bom espetáculo, uma missa negra muito bem conseguida com um grande cuidado estético. Caveiras com fartura e caras lívidas com olhos da morte. O público gostou, deu para ver.
Enquanto aguardava pela banda seguinte, aproveitei para dar um salto até ao pavilhão ao lado e visitar aquilo que alguém uma vez, com muita graça, disse ser o “Gothinente”, certamente o maior centro comercial gótico do mundo. Ali só é preciso ter duas coisas: tempo e dinheiro. Tempo para explorar a imensa oferta de calçado, roupa, acessórios, livros, CDs, merchandise, etc, etc, etc que ali é disponibilizado. E dinheiro para comprar tudo o que vamos querer adquirir. Ah, já agora, convém também ter ainda bastante espaço na mala para o avião, pois, caso contrário, conte-se com uma taxa suplementar pelo excesso de peso.
Depois da “missa” de Gothminister, entraram em campo as irmãs misericordiosas, isto é, Merciful Nuns. Com nome já firmado na cena gótica internacional, estes alemães ainda assim fizeram este ano apenas a sua terceira atuação no WGT. Não sei se tão escassas atuações em Leipzig se deveram a incompatibilidades de agenda ou se havia alguma relutância em trazê-los para junto da comunidade gótica. Se era o segundo o caso a ditar as suas escassas atuações no WGT, estou certo que foram desfeitos, pois o concerto foi muito bom. Com grande presença em palco e uma mistura muito interessante de Post-Goth com Goth Rock, gostei imenso do que pude ver e ouvir. Via outra vez, sem hesitação.
E eis que chegou o concerto que encerrou o meu WGT 2024. É sempre ingrato uma banda ser contratada à última hora para substituir outra, e, no caso desta, foi mesmo literalmente à última hora, pois tudo foi tratado durante este dia de segunda-feira, depois do anúncio de cancelamento de Vive la Fete. Mas Welle:Erdball conseguiu estar à altura dos acontecimentos. A reação do público ao Eletropop destes alemães levam-me a acreditar que eles competentemente conseguiram fazer esquecer a ausência de Vive la Fete. Mas não com toda a gente, pois para mim ficou a mágoa de não ter conseguido ver aquela excelente banda. Mas essa haverei de a agarrar um dia.
E, pronto, assim terminou mais um WGT. Cansativo? Sem dúvida. Caro? Indubitavelmente. E o balanço é positivo? O mais possível. Leipzig é uma cidade que é fácil gostar. As pessoas são simpáticas, principalmente se formos visitantes do festival. À terça-feira, quando os palcos se desmontam e a festa acaba, fica aquela sensação que tão bem conhecemos que vai muito para além do simples fim de festa; é aquela saudade de algo que ainda nem acabou e que já nos faz ansiar pelo próximo. Como alguém dizia, faltam 12 meses para o próximo WGT. É isto que este festival desperta nos seus participantes, mal acaba uma edição já nos estamos a preparar para a próxima. Por isso é que, ano após ano, as pessoas voltam lá. No meu caso, provavelmente o “até já” será um pouco mais longo. Não dá para ir lá todos os anos, porque a carteira não aguenta. Mas isso foi o que eu disse o ano passado, e o facto é que aqui estou eu a terminar o relato deste ano. Assim sendo, fica uma até qualquer dia, quem sabe se não já para o ano.
Texto e fotografia: Manuel Soares