Aniversário Lovers & Lollypops: viagens ao passado e vislumbres do futuro num palco de utopias melómanas
Aniversário Lovers & Lollypops: viagens ao passado e vislumbres do futuro num palco de utopias melómanas
Aniversário Lovers & Lollypops: viagens ao passado e vislumbres do futuro num palco de utopias melómanas
Pode não parecer, mas foi já há dezanove anos que a Lovers & Lollypops iniciou uma aventura que nem eles, muito provavelmente, achavam que ia ser tão duradoura. Mas assim aconteceu, e no domingo passado (7 de julho) foi dia de irmos ao RCA (Radioclube Agramonte) cantar os parabéns – literalmente, pois tivemos direito a bolo e tudo. Pelo meio, claro, assistimos a concertos em clima de convívio, numa mistura de artistas e bandas que ajudaram a escrever a história da Lovers com propostas sugeridas naquele espírito de partilha eclética que sempre os caracterizou.
Contudo, a tarde começou (depois das introduções, sempre entre a palavra e o bailado, de Turbo Joía, mestre de cerimónias também nos intervalos) com o folk de sabor ancestral praticado pela dupla Arianna Casellas y Kauê, que se serve inclusive de instrumentos tradicionais da América Latina – como o cuatro, por exemplo -, para criar “contos sonoros” temperados pelo tempo. Composições bucólicas mas também grandiosas e emotivas, que parecem ser quase abençoadas pela terra para se tornarem imortais. Entre a doçura e a impetuosidade (sobretudo na voz de Arianna, dotada de uma força pura e indomável que chegou mesmo a arrepiar), tivemos aqui um aquecimento bem luminoso que esperamos brevemente poder rever num espaço fechado, já que aí a experiência será certamente ainda mais poderosa.
Arianna Casellas y Kauê
Perfeita para o ambiente de recinto ao ar livre foi a atuação dos Kilimanjaro – uma rockalhada feroz e incendiária que celebrou não só os dez anos do álbum Hook, lançado precisamente pela Lovers, como o legado da banda propriamente dito. Todavia, conseguiram a proeza de tornar um exercício de nostalgia numa experiência extraordinariamente refrescante ao recriar o mesmo espírito de outrora – por outras palavras, paixão a transbordar de irreverência jovial, agora com uma renovada dose de sabedoria. Efetivamente, mais do que uma recordação, isto foi uma prova de vitalidade e um claro sinal de que um regresso a tempo inteiro revela-se urgente, especialmente quando a voz do Zé Roberto nunca soou melhor… Enfim, os anos passam, mas estas malhas permanecem irresistíveis, naquele cruzamento feliz entre riffs à Zeppelin ou Sabbath e muita (mas mesmo muita) atitude Motörhead. Um concerto do caraças – acreditem que é mesmo assim que deve ser descrito.
De volta ao palco Piscina Seca (o concerto dos Kilimanjaro, assim como as últimas três performances, tiveram lugar no palco Jardim, tudo ao ar livre para a comemoração ser também uma comunhão com a natureza ao estilo Milhões de Festa), foi altura de nos reencontrarmos com João Pais Filipe e o seu tribalismo hipnótico que nos conduz sempre a uma viagem de transcendência percussiva – possante e etérea em doses iguais de encanto sonoro. Nada de novo para quem acompanha o seu percurso, é certo, mas uma presença que faz todo o sentido como reconhecimento do seu contributo para o catálogo da Lovers – e que ainda hoje se mantém, na verdade, com o recente lançamento do split de CZN com Serpente. Envolvente e meditativo, João Pais Filipe mostrou-se igual a si mesmo numa familiaridade que nunca deixa de ser aprazível.
Logo a seguir, uma das revelações deste aniversário subiu ao palco. O seu nome? El Khat, trio liderado por Eyal El Wahab, que recupera o legado da música judaica iemenita para criar uma sonoridade belíssima, profundamente espiritual mas ao mesmo tempo aliciante no modo como desperta a vontade de dançar. Aliás, houve mesmo demonstrações de danças tradicionais por parte de um dos elementos da banda que desceu do palco para as ensinar, numa das partilhas culturais mais extraordinárias e comoventes que alguma vez testemunhamos num evento da Lovers, já que todo o conceito de utopia através do som esteve aqui ilustrado com uma harmonia coletivamente festejada.
Resumindo, uma prestação de uma riqueza musical contagiante, poeticamente evocativa, e que se traduziu numa festa mágica a todos os níveis… É que se a música une as pessoas, o multiculturalismo é a chave que nos permite compreender a grandeza de cada povo.
El Khat
E o mesmo podemos dizer sobre a performance de Saya, DJ-ativista espanhola de origem palestiniana para quem cada set é um manifesto de resistência e a música um ato inevitavelmente político. Apresentando uma seleção bem pujante, enérgica e eclética, que foi do Kuduro a referências orientais como o Dabke (dança extremamente popular não só na Palestina, como também na Jordânia, Síria e Líbano), fez o povo dançar como se cada batida fosse uma purga sonora. E é mesmo isso que retiramos das suas performances, essa sensação de que a eletrónica não é só uma plataforma de escapismo, mas acima de tudo um enorme, e até doloroso, grito de libertação visceral, lançado na esperança de contribuir para um mundo mais equitativo e menos sangrento. A julgar pela atmosfera pacífica de euforia dançável – linda e vigorosa – que se instalou, foi já criado um pedaço de mudança. Resta ver se o mundo real segue o exemplo.
A finalizar, e literalmente sem pausas entre os dois sets, Hibotep assinou o final apoteótico que esta festa pedia. A DJ/produtora de ascendência somali, que cresceu na Etiópia e que agora reside no Uganda (onde é, aliás, uma presença regular no festival Nyege Nyege), proporcionou uma hora de batidas tão febris quanto assombrosas, ali entre o trap, o techno ou sonoridades mais “exóticas” e de origens africanas – como o gqom ou mesmo taarab – num set igualmente festivo e intenso, honestamente por vezes bem mais ensurdecedor que muitos concertos de música pesada, que os fiéis resistentes que lá se mantiveram até à derradeira batida absorveram sem cansaço. Um final demolidor, comemorado com adrenalina, e que nos fez abandonar o recinto plenamente satisfeitos. Após estes dois sets de duas grandes mulheres para pôr um belo ponto final nas festividades, resta-nos felicitar a Lovers e esperar pela celebração dos vinte anos.
Texto: Jorge Alves
Fotografia: David Madeira