Festival Ponte D’Lima: a celebração de verão é uma utopia comunitária
Festival Ponte D’Lima: a celebração de verão é uma utopia comunitária
Festival Ponte D’Lima: a celebração de verão é uma utopia comunitária
Na sua segunda edição, o Festival Ponte D’Lima afirmou-se verdadeiramente como um evento de referência no panorama festivaleiro nacional, proporcionando três dias de pura descontração e celebração jovial. Com um cartaz que tanto navegava pelas águas do rock – as bandas de “guitarradas”, portanto -, como se entregava às sonoridades mais exóticas e dançáveis, e tendo como base um cenário belo, quase bucólico no seu contato com a natureza, ofereceu um fim de semana de uma diversão memorável, daquelas que nos renova a alma e nos faz sentir, de forma bem palpável, o irresistível sabor do verão.
Dia 1 – Uma festa que se fez de diferentes cores, num arco-íris aconchegante
Isso foi visível logo no primeiro dia, que arrancou muitíssimo bem com a atuação dos Baleia Baleia Baleia, duo formado por Manuel Molarinho e Ricardo“ Riscos” Cabral que personifica totalmente o espírito do festival na sua entrega cheia de energia, amor e suor – é rock direto e dinâmico, de leve influência punk, sem merdas e com a maior das honestidades e transparências. Um rock de “malhas” (“Interdependência” bate sempre, com aquele riff bem catchy tocado em loop) tão aliciantes quanto orelhudas, feito para a festa mas que ao mesmo tempo se mostra ativamente político no seu desejo de integração comunitária – são uma banda do povo, para o povo, porque a verdade é que precisamos todos uns dos outros. Para viver e sobreviver, para curtir, para tocar e sentir a música que os outros tocam. Com um concerto assim, sabíamos bem que isto ia ser especial.
E foi nessa atmosfera de inspiração mútua que o festival continuou, agora com a melhor atuação que alguma vez já vimos por parte de Ana Lua Caiano. Cantautora super talentosa, mestra absoluta da combinação do cancioneiro português com camadas de eletrónica para assim reinventar o tradicional, assinou uma prestação verdadeiramente envolvente, em parte graças ao ambiente de maior intimidade que aqui se viveu, e que lhe permitiu criar uma ligação bastante genuína com uma audiência que retribuiu com palmas – ora entre as músicas, ora no final, sempre com o mesmo nível de sinceridade. Verdadeiramente prodigiosa a nível musical, Ana Lua brindou-nos com um concerto claramente mais poderoso que aquele deu, por exemplo, no Primavera, e que acima de tudo serviu para nos mostrar como esta aventura está simplesmente a começar… É que o futuro, acreditamos nós, tem tudo para fazer dela uma lenda da sua geração.
E que dizer de Pongo? Talvez que é uma autêntica força da natureza, e alguém que protagonizou um dos mais incendiários momentos de todo o festival. Caminhando pelas ruas do kuduro e do afro house – em certos momentos dando um toque refrescante de sensibilidade pop -, a artista angolana chegou com dançarinas e dançarinos ao palco, e toda uma energia explosiva que libertou ao longo de uma fortíssima atuação. Mais do que um concerto, isto foi uma esplêndida celebração – musical, feminina (fez dedicatórias às mulheres) e, porque não, da vida enquanto plataforma de conexão, de união entre povos para juntos criar recordações eternas. Foi isso, aliás, que aconteceu aqui nos momentos em que se ultrapassaram as barreiras entre artista e audiência, e pudemos ver alguns membros do público a dançar em palco, ou a própria Pongo a circular pelo meio da plateia. Uma festa vibrante, super ritmada ao ponto de por vezes nos sentirmos numa aula de aeróbica, e que nos deixou fisicamente exaustos, mas emocionalmente preenchidos.
Dia 2 – Experimentalismos transcendentes e rockalhadas fulminantes: ou como os contrastes podem coexistir harmoniosamente
O segundo dia do festival voltou a ter momentos inesquecíveis, e começamos mesmo por destacar o fim como o maior deles todos, pois foi aqui que assistimos à atuação dos KOKOKO!, grupo oriundo de República Democrática do Congo que nos presenteou com uma dose de afrofuturismo musical inebriante. Uma eletrónica tão experimental e vanguardista quanto profundamente espiritual, e que parece servir-se da inovação – sonora e estética, já que usam instrumentos por eles construídos – para comunicar uma espécie de chamamento ancestral. Brutalmente dançável, mas também fortemente evocativo, todo este concerto foi uma estupenda “viagem”, possante e hipnótica, que rejuvenesceu o corpo e a nossa alma melómana. Entre o passado e o futuro, houve um legado a ser explorado.
Voltando um pouco atrás, testemunhamos um concerto verdadeiramente formidável dos Unsafe Space Garden. Já os tínhamos visto anteriormente, é certo, mas esta foi claramente uma das mais extraordinárias e irrepreensíveis prestações na história do grupo. Ali entre o math rock, o space rock e o psych marado (há efetivamente uma onda Frank Zappa que parecem cuidadosamente evocar), acrescentam toda uma componente teatral de forte sentimento dadaísta – especialmente a vocalista Alexandra, que realmente brilhou naquele registo encantadoramente excêntrico, dotada que é de um carisma muito próprio -, o que complementa significativamente uma sonoridade já bem mirabolante, inventiva, e recheada de uma imprevisibilidade vital. Enfim, que concerto lindo… Por favor, não deixem de os apoiar, eles são uma pérola do panorama nacional.
Curiosamente, esse é um termo que também podemos – e, na verdade, devemos – aplicar aos Mão Morta, autêntica referência indispensável na história da música portuguesa. Contudo, por muito que nos custe admitir, a verdade é que, pelo menos em palco, o grupo bracarense já viveu melhores dias. Não que o concerto tenha sido mau – até porque os Mão Morta são demasiado experientes para deixar que isso aconteça -, mas Adolfo Luxúria Canibal, o seu inigualável e excecional frontman, está mais velho e não possui necessariamente aquela força quase endiabrada e deliciosamente visceral dos tempos áureos em que assumia – com um requinte sublime, diga-se – o papel de vocalista que era, no fundo, poeta abraçado à declamação rockeira.
Tudo isto é absolutamente normal – e a verdade é que o nosso respeito e carinho pela lenda que é Adolfo não nos permite “crucificá-lo”, ele é o veterano que todos os músicos deviam um dia querer ser -, mas quando o vemos frequentemente sentado num banco porque, como ele próprio disse, “hoje estou pouco saltitante”, aí sabemos que a idade já pesa – e muito. No fim, assinaram um concerto que não deixou de ser bem competente, mas onde a maior atração foi, claro está, escutar aqueles clássicos intemporais, como “Cão da Morte”, “Anarquista Duval”, “Vamos Fugir” ,“Oub’ Lá” ou “Budapeste (Sempre a Rock & Rollar)” – temas que são hinos e que nunca perdem a validade. Afinal, é de um pedaço de história que aqui falamos.
Muito bem estiveram, algumas horas antes, os Marquise, um dos nomes mais populares e emergentes no atual cenário da música alternativa portuguesa, que a meio da tarde estrearam o Palco Náutico, junto ao Rio Lima. E sobre isto podemos dizer duas coisas: por um lado, que este palco é super apelativo, bem no coração da vila (a mais antiga em Portugal, aliás), num cenário que chega mesmo a ser paradisíaco; por outro, que os Marquise já serão, talvez, um pouco populares demais para estar aqui e não no recinto principal. Sobretudo se fosse antes de Mão Morta, para assim se estabelecer um interessante contraste entre o passado glorioso e o futuro promissor representado por estes jovens portuenses. Seja como for, quem se deslocou a este espaço assistiu a um concerto bem potente, com o rock 90s à la Nirvana com toques de Ornatos antigo dos Marquise a soar particularmente vibrante e soalheiro, como um rasgo de energia luminosa que se juntou ao cenário de fundo para pintar um retrato de verão. No fim, entre “malhas” do EP de estreia e novidades a serem futuramente editadas, os Marquise provaram que continuam a ser uma das propostas mais revigorantes da cena nacional.
Pelo meio passaram ainda os grandes destaques do dia, a começar com os britânicos shame, iguais a si mesmos na descarga de um post-punk vigoroso que conscientemente alterna entre a riffalhada pujante e momentos mais melódicos (por vezes quase “orelhudos”) que permanecem possantes. Com o vocalista Charlie Steen a “navegar” pela audiência enquanto a elogiava noutras alturas, tivemos aqui uma boa rockalhada de uma banda que hoje sabe ser “grande” (ainda nos lembramos de os ver na piscina do Milhões de Festa, quem é que lá esteve?) sem perder a garra autêntica que deles se quer. Um concerto com energia e classe – agora é vê-los em nome próprio para aumentar a intimidade suada.
Muito bem estiveram, logo a seguir, os Chk Chk Chk, grupo californiano que foi banda sonora para muitos jovens que cresceram nos anos 2000 a ouvir discos que são hoje clássicos incontornáveis, como Louden Up Now ou Myth Takes. E se era válido questionar se a postura do coletivo ainda exibiria a adrenalina que aquela sonoridade pede – falamos então do inconfundível cruzamento entre a música de dança e a veemência do punk -, este concerto provou que a idade é apenas um número quando o espírito ainda se mantém jovem. Com o vocalista Nic Offer, sempre frenético e imparável, a caminhar um pouco por todo o lado no meio da audiência, fomos brindados com uma prestação dançável e enérgica em doses iguais de intensidade, numa sessão sonora bem divertida e saudavelmente louca. Sabe bem ver veteranos a dar tudo.
Dia 3 – Com Omar dançou-se a paz; com os Osees sentiu-se o rock
O último dia do festival foi aquele que mais gente levou ao recinto, essencialmente devido à presença dos norte-americanos Osees, grupo super prolífico liderado por John Dwyer que aqui ofereceu uma jarda divina de rock frenético, ali entre o psych, o garage e a fúria punk, numa majestosa salada de riffs apoiados em estruturas imprevisíveis e insanas. Enfim, não há como resistir a uma descarga destas – seja-se fã da banda ou não – porque o sentimento, a paixão e mesmo o bom humor com que tudo é lançado (para não falar nas duas baterias sincronizadas, que produz um efeito visual bem apelativo) é totalmente admirável. Nunca os subestimem – os Osees são uma máquina explosiva de rock desenfreado que espalha energia como poucos, e nesta noite não precisaram de muito para cativar o público e assinar um dos melhores concertos do festival e, quiçá, do ano todo. Além disso, depois de terem comentado que não sabem porque é que não atuam cá com mais frequência, a mensagem torna-se simples: tragam-nos cá novamente, o mais rapidamente possível.
E logo a seguir, assistimos a um dos momentos mais inspiradores de todo o festival, com a chegada de Omar Souleyman para um concerto que foi uma lindíssima celebração de união entre povos. Olhávamos à nossa volta e víamos o público a vibrar com estes inebriantes sons orientais – adaptações da tradição do Dabke que Omar começou a tocar em casamentos na Síria – no mais comovente clima de paz que observamos nesta edição. No fundo, dançou-se como forma de espalhar a harmonia que um mundo infectado com ódio já perdeu a capacidade de erguer, e a atmosfera foi tão contagiante que mil palavras não conseguem descrever o seu encanto. Uma utopia que pode ter sido efémera, mas que viverá nos corações de quem a experienciou, porque foi mesmo surrealmente bela. Mais do que uma despedida apoteótica, Omar escreveu uma sentida carta de amor à inclusão, à tolerância e ao amor que todos devemos cultivar. Musicalmente irresistível, emocionalmente arrebatador.
E por falar em inclusão, este festival esteve cheio dela, incluindo no campo das mulheres. E aqui referimo-nos não só às que já foram mencionadas anteriormente na reportagem, mas também a outras que passaram pelo festival no dia de sábado. A começar logo por Surma, alter ego de Débora Umbelino que proporcionou um arranque altamente fofo logo ao final da tarde, mesmo depois de uns problemas técnicos ameaçarem como uma nuvem negra a sua atuação. Contudo, Surma/ Débora não deixou que isso a desmotivasse e lá prosseguiu com um sorriso capaz de iluminar a maior das almas angustiadas, enquanto nos conduzia por um universo sonoro cada vez mais abrangente, inegavelmente mais expansivo do que a pop/eletrónica etérea com a qual começou. E residiu precisamente aí parte da beleza deste concerto, na observação do desabrochar artístico de Surma, hoje a alimentar-se então de diversas influências para criar uma colagem que é orgulhosamente sua – e a fazê-lo com uma confiança exemplar. Uma evolução que nos deixa de coração cheio, acreditem.
Destaque também para a passagem dos The Last Internationale, autores de um grande concerto de blues rock onde foi impossível não ficarmos arrepiados com a magnífica voz de Delila Paz – poderosa, bem “soulful” e verdadeiramente reconfortante, mais um exemplo de como as mulheres brilharam neste festival e triunfaram sobre a misoginia que ainda reina na sociedade e pode, com exemplos destes, ser melhor combatida. No entanto, toda a banda esteve irrepreensível, terminando com a presença de alguns membros do público em cima do palco numa comemoração altamente intimista… Um final bem cativante para uma prestação vigorosa, sem dúvida alguma.
E num dia em que o departamento do rock esteve ainda bem representado com a “escola de Barcelos” dos Glockenwise e Gator, The Alligator (muito recomendáveis com o seu garage rock excecionalmente sólido), o balanço final é extremamente positivo: bons concertos – alguns dos melhores do ano, honestamente -, excelente ambiente, um recinto incrivelmente bonito e um cartaz não só coeso mas também bastante inclusivo. Acima de tudo, deixou-nos com imensa vontade de lá regressar para o ano, e esse é certamente o maior elogio que podemos fazer, porque mesmo sem cartaz já estamos a sonhar com o nosso retorno. Até para o ano, Ponte de Lima?
Texto: Jorge Alves
Fotografia: Shootsounds e Ivo Sousa