Um dia no Sonic Blast 2024
Um dia no Sonic Blast 2024
Um dia no Sonic Blast 2024
Entre os dias 8 e 10 de agosto, a Praia da Duna do Caldeirão, na pacífica Vila Praia de Âncora, acolheu um dos festivais mais aguardados do ano: a edição de 2024 do Sonic Blast. A escolha do lugar é perfeita para a realização deste festival, pois a proximidade ao mar e à natureza cria um ambiente mais imersivo, como se estivéssemos efetivamente fora do mundo e apenas dentro da música. Festivaleiros de norte a sul do país (e até mesmo de outros países) vieram de propósito para ver nomes como Maruja, Earth Tongue, Enola Gay, Margarita Witch Cult, Black Mountain, Máquina e Viagra Boys. O testemunho de Margarida Pereira do primeiro dia de festival para ler de seguida.
Maruja
Os Maruja, banda de Manchester que dá uma nova vida ao rock ao adicionar-lhe influências de spiritual jazz, foram os primeiros a atuar. Abriram o concerto com o seu tema mais conhecido e marcado por influências da poesia confessional, “The Invisible Man“. Logo de início, o público começou a refletir e a acordar para o que realmente importa, ouvindo versos como “The truth, it hides“.
Além de contar com temas dos dois EPs da banda, Connla’s Well e Knocknarea, o concerto incluiu também momentos de improvisação. Apesar da grande qualidade da performance de Harry Wilkinson (vocalista e guitarrista), do baixista Matt Buonaccorsi e do baterista Jacob Hayes, o público sentiu muito a falta do saxofone de Joe Carroll. Estas circunstâncias provaram tanto a resiliência da banda, como também a influência positiva dos saxofones nas bandas de rock de hoje. Inclusive, como dizem os próprios Maruja em entrevista à Stat Magazine, “já tinham um saxofonista na banda antes de ter um saxofonista na banda ser moda”.
Earth Tongue
A seguir à atuação dos Maruja, ouvimos os Earth Tongue, uma banda underground da Nova Zelândia, formada apenas por Gussie Larkin, guitarrista-vocalista, e Ezra Simons, baterista. Gussie Larkin destaca-se imediatamente não só pela sua voz forte e única (que começa por se fazer ouvir nos vários soundchecks que faz em palco), mas também pela originalidade na forma como se veste. Ao contrário do que seria de esperar num festival como o Sonic Blast, Gussie Larkin opta por um vestido verde e por óculos de sol brancos, à moda dos anos 70 e 80. Assim, tanto a sua imagem como a sua música nos transporta para o passado.
Apesar do ar simpático de Gussie Larkin e das suas roupas coloridas e alegres, um ouvido atento apercebe-se de que, na verdade, ela procura colocar-se na pele de um espírito do inferno e falar sobre morte, destruição e sobre ser-se uma alma condenada. São estes os principais pontos do último álbum dos Earth Tongue, Great Haunting. No entanto, há qualquer coisa nele que não convence inteiramente o ouvinte, nomeadamente o facto de os temas serem muito semelhantes entre si. Embora possuam sem dúvida um estilo próprio, o concerto não foi particularmente memorável devido a alguns problemas de som.
Margarita Witch Cult
Uma banda que conseguiu sem dúvida convencer o público, tanto com a sua música e postura em palco, foi Margarita Witch Cult. Apesar dos seus poucos anos de atividade, são conhecidos por deixarem audiências a implorar por mais. Formados por Screamin’ Scott Vincent (voz e guitarra), George Casual (bateria), e por Jim Thing (baixo), lançaram o seu primeiro álbum em 2023 pela Heavy Psych Sounds, editora de prestígio conhecida principalmente por lançamentos nos géneros stoner e doom. O álbum Margarita Witch Cult é caracterizado pelos refrões épicos (como é visível no tema “Diabolical Influence” e em “Be My Witch“) e pelo fuzz dos riffs que oferecem um contraste interessante com a voz (algo presente, por exemplo, em “Death Lurks At Every Turn“).
Os membros da banda revelaram uma excelente coordenação em palco, evidente na harmonização entre as vozes do baixista e do vocalista e na consistência do baterista. Mostraram-se tão confortáveis em palco ao ponto de se terem posicionado politicamente através de statements como “Fuck the Fascists!” e de terem pedido a ajuda do público para cantar o refrão da última canção que tocaram – “Sacrifice“. Além disso, foi evidente o seu sentido de humor quando questionados acerca da história por trás do nome da banda: as suas origens remontam à pandemia de COVID-19, durante a qual faziam sessões de preparação de margaritas por Zoom. Scott Vincent afirmou ter bebido tantas que, hoje em dia, já não as suporta. Dessa fase, ficou o título e, claro, a boa música.
Enola Gay
Imediatamente a seguir à performance dos Margarita Witch Cult, pudemos assistir à performance dos Enola Gay, que conquistaram igualmente o público do Sonic Blast. Enola Gay é também o nome da aeronave que lançou a bomba atómica que destruiu Hiroshima, a 6 de agosto de 1945. Enola Gay são uma banda de noise punk de Belfast, Irlanda do Norte, formada em 2019. As suas músicas são caracterizadas por uma secção rítmica fortemente influenciada pela música techno e eletrónica, pelas guitarras e uma voz com influências de hip-hop (como se vê, por exemplo, no tema “The Birth of a Nation“). Em 2023 lançaram o seu novo EP Casement, que conta com as letras acutilantes do vocalista Fionn Riley. Em palco a sua postura expõe claramente a raiva dos seus poemas – por exemplo, como diz em “Leeches“, “Fool me once, shame on you/Fool me twice, can’t get fooled again“.
Assistindo ao concerto dos Enola Gay, vemos que há, de facto, uma forte influência do punk na música irlandesa da atualidade, havendo também uma grande preocupação em retratar os underdogs, as injustiças e os marginalizados. No fundo, há uma preocupação em representar todos os que estão por baixo e são facilmente esquecidos. Durante a sua atuação, Fionn Riley não se preocupou em agradar ao público nem procurou interagir com ele diretamente entre os temas, mas essa atitude é coerente com a mensagem da sua música.
Black Mountain
Após a raiva dos Enola Gay, o Sonic Blast contou com a presença dos canadianos Black Mountain. É seguro dizer que todas as bandas deste festival são únicas e, no caso dos Black Mountain, aquilo que os coloca em destaque é a calma que transmitem, devido às suas influências de rock psicadélico e progressivo dos anos 70. Os Black Mountain são constituídos por Stephen McBean (voz e guitarra), Amber Webber (voz), Jeremy Schmidt (teclado), Colin Cowan (baixo e teclado) e por Joshua Wells (bateria). São conhecidos pelos longos solos instrumentais, que, em concerto, revelaram o grande domínio que todos os músicos do grupo têm sobre os seus instrumentos (como foi visível, por exemplo, em “Wucan“). Quando as vozes de Stephen McBean e de Amber Webber entraram em cena, ainda que de forma contida e minimalista, foi impossível ignorar a clareza com que cantaram e o modo como se complementaram. Este aspeto esteve especialmente presente em “Mothers of the Sun“, em “Angels” e, como não podia deixar de ser, no seu tema mais conhecido: “Space to Bakersfield“.
MÁQUINA
No Sonic Blast podemos encontrar de tudo para vários gostos, mas intensidade é, sem dúvida, o adjetivo que melhor caracteriza o concerto dos Máquina, um trio lisboeta que se insere no género da música techno e EBM. Este trio é composto por Tomás Brito (baixo), Halison Peres (bateria, voz, e letras) e por João (guitarra). Desde que se juntaram, ainda não pararam de fazer os portugueses dançar.
Como os temas desta banda vivem muito da repetição da mesma melodia no baixo e dos mesmos ritmos na bateria (como se se tratasse de uma verdadeira máquina de som), a sua presença veio adicionar uma grande dose de adrenalina ao festival. No seu novo álbum PRATA, os Máquina evocam uma sala escura, característica das rave parties, compondo temas que reúnem em si tanto elementos de dance music, como de punk e rock psicadélico. O concerto contou também com longas improvisações e mosh pits absorventes, ao ponto de o público afirmar que a prestação da banda melhora a cada atuação. Portanto, podemos dizer de fonte segura que os Máquina estão no seu elemento quando tocam ao vivo.
Viagra Boys
Embora todas as atuações tenham sido excecionais, a banda que mais brilhou foram os suecos Viagra Boys. Foram a maior atração da noite, não só pela sua forte personalidade, refrões intuitivos e música que convida à dança, mas também pelo seu grande profissionalismo. Fizeram um espetáculo perfeito em que nada foi deixado ao acaso, desde a qualidade do som (tendo tido toda uma equipa encarregue do soundcheck) até às imagens no palco, que acompanharam estrategicamente cada momento do concerto. E, mais importante ainda que os aspetos técnicos, foi a força da própria atuação.
Os Viagra Boys são compostos por seis membros com formação musical em jazz, que se inserem simultaneamente na cena punk e disco. Sebastian Murphy, o vocalista, destaca-se especialmente pela sua assertividade em palco, que não pede nem aceita desculpas – pelo contrário, denuncia a cultura de masculinidade tóxica, praticando, em vez disso, a autoaceitação. Como disse o próprio, “Lá por ter um pouco de excesso de peso, não significa que não possa ser tratado como um ser humano”, contrariando a pressão que a sociedade coloca constantemente na nossa imagem. Os statements e histórias de Sebastian Murphy foram aplaudidos fortemente, além de ter sido impossível não dançar ao som de temas como “Ain’t Nice“, “Slow Learner“, “Punk Rock Loser“, e “Troglodyte“. Todos eles demonstram que, por muito pouco glamorosos que sejamos aos olhos da sociedade, não deixamos de merecer viver com dignidade e de merecer ser, até, celebrados:
“I ain’t your average normal dude
It sure ain’t glamorous, I keep things loose I ain’t your average punk rock loser Yeah, I’m a savage, I’m really cool”Além de fazer considerações em relação à imagem que somos obrigados a manter perante os outros, Sebastian Murphy também contou a história do tempo em que sofria de cleptomania, que serviu de introdução para o tema “Ain’t No Thief“. O vocalista chegou, até, a questionar o público se o considerava má pessoa devido ao seu passado. De facto, esta pergunta fez-nos refletir, pois são inúmeras as ocasiões em que a sociedade prova e provou ser incapaz de reabilitar e perdoar alguém pelo mais pequeno erro cometido. Isto é, por muitos anos que passem e por muito que a pessoa se supere, o erro teimará em ser sempre relembrado como uma vergonha, um tabu. Dir-se-ia, então, que todas estas mensagens dos Viagra Boys funcionaram como um gesto terapêutico, tanto para nós como para o próprio Sebastian Murphy.
Quem vai ao Sonic Blast sai com a sensação de ter ganhado anos de vida, sendo este festival o ambiente perfeito para destacar as capacidades curativas da música, tanto para quem a ouve como para quem a cria. É também um ambiente repleto de adrenalina e intensidade, ideal para quem procura escapar à monotonia do dia-a-dia. O Sonic Blast é, assim, o lugar certo para todos os que pretendem fugir da rotina e encontrar arte de inconformados para inconformados. Além de muito talento, diversão e boa música, sabemos que podemos sempre contar com um ambiente de grande aceitação, tolerância e, claro, liberdade.
Fotografia: Bruno Silva