Vodafone Paredes de Coura – dias 1 e 2: do rock mais ruídoso à música ambiente contemplativa

Vodafone Paredes de Coura – dias 1 e 2: do rock mais ruídoso à música ambiente contemplativa

| Setembro 3, 2024 1:34 pm

Vodafone Paredes de Coura – dias 1 e 2: do rock mais ruídoso à música ambiente contemplativa

| Setembro 3, 2024 1:34 pm

A 14 de agosto, no primeiro de quatro dias de música e festa na praia fluvial do Taboão, regressamos a Paredes de Coura para mais uma vez nos aventurarmos num dos festivais mais marcantes e icónicos de Portugal. Com um cartaz eclético e singular, sem tantos cabeças de cartaz marcantes como noutras edições, mas com nomes especiais ou fora da caixa no alinhamento, ficámos desde cedo curiosos quanto ao que esta edição nos traria. Esta mudança de direção não é surpreendente, pois tem vindo a acontecer ao longo dos últimos anos, fazendo o Vodafone Paredes de Coura posicionar-se, dentro do panorama nacional de festivais, num espaço um pouco diferente daquele que ocupava  há cinco ou mais anos, por exemplo, quando convidava mais bandas de rock ou nomes icónicos do indie. Tempos onde seria ainda mais inesperado ver nomes no estilo de Slow J, Gilsons ou Los Bitchos, por exemplo, todos presentes nesta última edição. Uma mudança mais radical e recente relativamente aos últimos anos foi a exclusão de DJ sets. Este ano, mesmo os slots mais tardios do alinhamento contaram com concertos ao vivo.

Estreámo-nos no recinto ao som de First Breath After Coma e Noiserv, habituais colaboradores, que se juntaram em palco à Banda de Música de Mateus, uma das bandas filarmónicas mais antigas do nosso país, que já havia colaborado com os FBAC, para um final de tarde bem passado ao som de mais de 60 músicos em palco. Os arranjos orquestrais acrescentaram uma camada de instrumentação densa, mas suave e graciosa, às músicas da banda leiriense e do músico lisboeta, que ganharam uma nova vida no que foi um final de tarde tranquilo e agradável.

Num festival muito marcado pelo apoio de diversos artistas à Palestina e ao seu povo e num tempo em que a violência que lhe tem sido imposta por Israel é inqualificável, foi no mínimo surpreendente a presença de uma banda israelita no cartaz do Paredes de Coura. Foi o caso dos Sababa 5, banda psicadélica instrumental que tocou no palco secundário e que publicou uma declaração sobre os acontecimentos recentes em abril. Não sabemos como decorreu o seu concerto, pois a atuação seguinte a que assistimos foi a dos australianos Glass Beams, outra banda instrumental psicadélica. Estes ocuparam o horário e palco que estavam originalmente destinados aos Bar Italia, que cancelaram o seu concerto no próprio dia por questões de saúde e foram substituídos pelos 800 Gondomar, que haviam tocado no Sobe à Vila.

Mascarados com vestes que remetiam para as escalas exóticas e a sonoridade inspirada por música tradicional sul asiática e indiana que exploram, os Glass Beams deram um concerto competente, mas não muito cativante. Tocaram música adequada para se ouvir instalado confortavelmente na encosta do palco principal, mas as suas composições são repetitivas para quem não reconhece bem o material da banda, girando sempre em torno das mesmas dinâmicas, dos mesmos tempos e timbres. Fizeram pensar nos Khruangbin, que passaram pelo festival em 2019 e que desde então já regressaram a Portugal, mas sem a mestria técnica individual. Esteve longe de ser um concerto entusiasmante, pecando pela monotonia. Também repetitivo foi o concerto de Dorian Concept no palco secundário. O fenómeno dos sintetizadores do YouTube, no que foi mais um concerto instrumental (!), apresentou, tal como o grupo australiano, uma série de músicas groovy e dançáveis, mas as suas numa vertente eletrónica. Não surpreendeu, com as faixas a enquadrarem-se sempre dentro dos mesmos ritmos, batidas e tons e a perderem o fator surpresa muito rapidamente, num concerto que também pecou pela falta de dinâmica e variações.

Continuando, curiosamente, nos concertos instrumentais ou maioritariamente instrumentais, o famoso rapper e vocalista dos Outkast André 3000 veio apresentar uma performance muito próxima ao seu novo álbum de música ambiente e new age, New Blue Sun, acompanhado por uma experiente banda composta pelos músicos Carlos Niño, Nate Mercereau, Surya Botofasina e Deantoni Parks. No entanto, não foram tocadas as composições do disco. O concerto foi, como André viria a dizer ao público, totalmente improvisado. Alternando entre flautas acústicas e digitais e a certo ponto a voz, cantando numa linguagem totalmente improvisada, André 3000 teve o protagonismo e foi o solista principal, sempre em destaque em termos de mistura dos instrumentos e composição numa sequência de diferentes secções e momentos, todos eles muito calmos e subtis. Foi sem dúvida uma performance muito particular para um festival deste género e que não terá captado a atenção de todo o público, pois mesmo nas filas mais frontais se ouviam algumas conversas e ruídos de ouvintes impacientes. Não nos surpreende, pois faltou algum equilíbrio entre instrumentos que tornasse o som mais atmosférico. O bom jogo de luzes favoreceu o ambiente, mas, entre o som imperfeito e o contexto mais desajustado em que o concerto se inseriu, faltou algo mais para que este pudesse ser impactante e envolvente. Mais tarde subiu ao mesmo palco Sampha e a sua banda numa performance tecnicamente impecável. A sua voz soou tão bem como em estúdio e a banda mostrou um nível igualmente alto num concerto que beneficiou de um melhor equilíbrio de som que o anterior. Foi uma performance muito certa e dinâmica, com um baterista impressionante, músicas interligadas de forma muito fluída e secções instrumentais muito cativantes.

George Clanton, ícone do chillwave e vaporwave, juntou em palco uma grande dose de humor à sua música descontraída e psicadélica, tendo passado uma boa parte da performance a falar para o público. Podia ter tocado mais um par de músicas, mas temos que admitir que, para o bem ou para o mal, as suas interações e os seus monólogos foram o aspeto mais memorável da atuação. “Are you gay enough for George Clanton? Are you horny enough for George Clanton? Are you fucking stupid enough for George Clanton?!” – ouviu-se mal começou o concerto, gerando um grande entusiasmo no público ao qual o músico rapidamente se juntou, cantando entre a multidão, aos saltos com os fãs. As interações com o público, tal como algumas projeções em palco, foram divertidas – as piadas com os patrocínios do palco (“Yoooorn…!”), os elogios à cidade do Porto, a Portugal (o melhor país que já visitou, disse) e aos pastéis de natas e as críticas à gentrificação da cidade – mas, quanto ao aspeto musical, houve falhas de som que não permitiram que este atingisse o seu potencial total. Os backing tracks, a bateria, a guitarra e a voz misturavam-se numa camada única que não era tão groovy ou cativante como seria se os instrumentos se ouvissem mais distintos um dos outros, pelo que ouvir estas músicas ao vivo soube a pouco.

Killer Mike, estreando-se em Paredes de Coura alguns anos após duas passagens pelo Primavera Sound como membro dos Run the Jewels, trouxe consigo um DJ e cinco vocalistas no que foi, principalmente, uma apresentação do álbum MICHAEL. As músicas fluíram bem, apesar de algumas serem notavelmente menos criativas ou admiráveis que outras, e a energia em palco transpareceu para a audiência. Um concerto bastante competente que precedeu a performance mais impactante da noite, por parte dos Model/Actriz. O quarteto americano que lançou em 2023 o seu álbum de estreia, Dogsbody, tocou de forma extremamente intensa. O avassalador ruído das músicas e a presença do vocalista Cole Haden, que passou grande parte do concerto entre o público, conquistaram completamente a audiência. Foram incessantes os mosh pits, que aconteceram de todas as formas possíveis, tal as interações entre o público e Haden, ao som do noise rock pesado e violento emitido pelos instrumentos dos restantes membros.

Os Sextile tiveram a honra de fechar a primeira noite de festival com um synth punk algo repetitivo, mas divertido e energético. Afetados por alguns problemas técnicos, como ruídos num microfone e um final repentino de uma música, mantiveram uma boa presença em palco e puxaram pelo público, que dançou sem interrupções até às luzes se apagarem.

No segundo dia, sob um calor intenso, os Deeper subiram ao palco secundário, mais abrigado do calor, para nos brindar com o seu pós-punk. Com uma sonoridade familiar, bastante contida e sem nunca explodir, mantendo um nível de intensidade constante e movendo-se por vezes para secções mais dançáveis, foram competentes, mas nunca muito interessantes. De seguida os Gilsons, liderados por José Gil, filho do icónico Gilberto Gil, fizeram parte do público bailar o som da sua música popular brasileira com um tom pop, mas a energia era tão easy listening que não ficamos muito tempo a assistir. Guardamos energias para os Wednesday, que, navegando entre o country alternativo e o indie rock, deram um concerto morno, mas agradável. Já perto da reta final a vocalista Karly Hartzman sugeriu aos fãs abrirem um mosh pit e, como não podia faltar em Paredes de Coura, abriu-se um círculo e montou-se uma confusão muito maior do que seria de esperar pela intensidade da música. O público, animado, gerou uma avalanche de crowd surfing e a energia ficou em alta até ao fim do concerto. Apesar de alguns problemas técnicos terem levado a uma temporária interrupção durante a épica “Bull Believer”, os berros no final da canção tiveram todo o impacto que deviam e serviram também como uma excelente preparação para “Wasp”, música ainda não lançada que é totalmente punk, num estilo surpreendente para o quinteto americano.

Já com uma longa carreira iniciada nos anos 90 (e que já sofreu uma interrupção de oito anos), as Sleater-Kinney estrearam-se finalmente em Portugal, talvez num palco demasiado grande para a popularidade delas no nosso país nesta fase da sua carreira. O concerto começou sem grande energia e sofreu de uma imperfeita mistura de som. Não soou inspirado e nem nas música mais populares, como “Jumpers” ou “Modern Girl”, o público teve uma reação notável. Completamente oposto foi o concerto de Los Bitchos, banda de surf rock, chicha e cumbia cujas músicas são altamente joviais e divertidas. Podiam soar todas ao mesmo ao ouvido menos atento (e talvez ao mais atento também), mas a atitude em palco, as melodias orelhudas e os ritmos familiares foram tão contagiantes que não houve como manter os dois pés no chão. Isto foi particularmente verdade nas últimas músicas, as mais mexidas e memoráveis. Deram um concerto alegre e divertido, certamente o mais (intencionalmente) engraçado festival e só tiveram como ponto negativo o volume demasiado baixo do sintetizador.

Os L’Impératrice continuaram a sessão de dança, movendo-a para o palco principal, no qual deram há dois anos “o melhor concerto” da banda, anunciaram. A música do grupo francês reflete as influências conterrâneas e isso foi especialmente aparente num cover de Daft Punk, uma versão mais curta de “Aerodynamic”, do álbum clássico Discovery. Com uma montagem em palco elaborada e ritmos groovy a banda terá certamente conquistado mais uns fãs em Portugal, mas não nos podemos certificar, pois não assistimos à maior parte do seu concerto. Após o seu término, foi a vez dos Protomartyr tocarem num regresso seis anos após a sua passagem por Lisboa. Cruzando vários discos da sua notável discografia, a banda brilhou com canções como “Maidenhead” (a abrir), “The Devil in His Youth”, “Pontiac 87” ou “My Children”. Com riffs marcantes, uma performance vocal muito própria e impactante, ritmos de fazer abanar a cabeça e uma vibe pós-punk garageira que conseguiu ser tanto ruidosa como ponderada, os Protomartyr deram um dos concertos do festival e já nos deixam com saudades.

O português Slow J foi o cabeça de cartaz da noite, uma decisão admirável por dar tanto destaque a um nome nacional, mas estranha por este ter uma sonoridade tão distinta dos restantes artistas que atuaram no festival. Um nome muito mainstream que atraiu uma grande multidão para a colina que enfrenta o palco, mas que não esteve perto de nos encantar.

 

Texto: Rui Santos

Fotografia: David Madeira

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