13ª edição do Extramuralhas: quando o 13 não é sinónimo de azar

13ª edição do Extramuralhas: quando o 13 não é sinónimo de azar

| Outubro 7, 2024 11:36 pm

13ª edição do Extramuralhas: quando o 13 não é sinónimo de azar

| Outubro 7, 2024 11:36 pm

Entre os dias 22 e 24 de agosto, Leiria acolheu a 13ª edição do festival gótico Entre/Extramuralhas. E se para os mais supersticiosos o facto de esta ser a edição 13 poderia significar que alguma coisa poderia correr mal, tal não se verificou, uma vez que este foi mais um dos muitos eventos bem-sucedidos com que a Fade In vai brindando a cidade de Leiria de há um quarto de século a esta parte. Afastado o fator supersticioso, esta edição não deixou, contudo, de ser um momento marcante na história deste festival, assinalando o ano em que o Extramuralhas cortou definitivamente a ligação com o Entremuralhas. Contextualizemos.

Quando em 2010 a Fade In-Associação Cultural de Leiria, decidiu organizar um festival gótico no castelo de Leiria poucos imaginavam que, passados todos estes anos, o evento continuasse a existir. Mas o enorme sucesso que o festival granjeou desde o seu início, atraindo pessoas dos mais diversos cantos do mundo, transformou o Entremuralhas numa referência no que aos festivais góticos dizia respeito. Para tal contribuía, em muito, o fantástico cenário que o castelo de Leiria emprestava ao evento aliado à excelência das bandas que anualmente iam sendo anunciadas.

Em 2018 o castelo de Leiria entrava em obras profundas de remodelação, o que impediria a realização do Entremuralhas durante dois anos. Perante tal evidência, os organizadores tiveram de decidir entre a suspensão temporária do festival, até que as obras estivessem concluídas, ou realizá-lo noutro espaço. A decisão recaiu sobre a segunda opção, pois fazer o evento fora de Leiria nunca se apresentou como possibilidade. Foi então decidido espraiar o festival por diversos locais na cidade, saltando as muralhas e, por essa razão, tornando-se temporariamente em EXTRAMURALHAS.

As edições de 2018 e 2019 aconteceram, desta forma, em diferentes espaços de Leiria, passando o Jardim de Camões a ser o epicentro do encontro anual dos góticos, oferecendo vários concertos de acesso gratuito aos leirienses e a outros visitantes da cidade. O Extramuralhas teve uma excelente aceitação e a comunidade leiriense aderiu muito bem a este saltar das muralhas para a cidade. Quanto aos festivaleiros habituais, muitos continuaram a fazer do evento, agora na sua versão Extramuralhas, o seu momento de encontro anual, mas outros houve que não se reviram neste novo modelo e optaram por ficar a aguardar que as obras terminassem, para depois regressarem ao aconchego das muralhas do principal monumento da cidade.

A pandemia da COVID 19 veio baralhar as contas e, durante os anos 2020-2021, impediu que o evento se realizasse. 2022 seria, finalmente, o ano do regresso. Mas não da forma como muitos esperavam. O festival voltou a realizar-se, mas mantendo a sua versão Extramuralhas, embora com um pezinho na muito renovada Igreja da Pena, no castelo, onde se realizou o concerto de abertura. As obras que o edifício sofreu durante aqueles anos culminaram num espaço completamente diferente e, nalguns casos, demasiado alterado. Um dos exemplos foi precisamente a Igreja da Pena, que ganhou um telhado e ofereceu um novo equipamento cultural à cidade de Leiria, mas deixando de ser aquele que seria, provavelmente, o mais belo palco gótico do mundo. Também o espaço onde era montado o Palco Alma no Entremuralhas recebeu uma remodelação de tal maneira profunda que deixou de ser possível manter ali aquele palco.

Em suma, as obras do castelo ditaram que a continuidade do festival no seu formato Entremuralhas estava colocada em causa, pois as dificuldades logísticas, que já na altura do Entremuralhas eram uma dor de cabeça para os organizadores, agora seriam um pesadelo de dimensões inimagináveis caso optassem por continuar no formato original. Ao mesmo tempo que a organização se deparou com todas estas dificuldades, observou que o modelo Extramuralhas se apresentava como sendo um sucesso maior do que as melhores expectativas poderiam idealizar: o público aumentou devido aos concertos gratuitos, a logística para a montagem de palcos, luz e som tornou-se muito mais simples e a cidade envolveu-se mais intimamente com o evento. A decisão de continuar a realizar o festival na versão Extramuralhas tornou-se, desta forma, óbvia. Mas o facto de o concerto inaugural continuar no castelo mantinha a sua ligação umbilical com o espaço original do evento. E foi essa ligação que agora foi cortada com o abandono definitivo do castelo, que, doravante, continuará presente, mas apenas na sua função de observador atento do que se vai passando cá por baixo.

Esta opção irá, naturalmente, continuar a alimentar as discussões que ocorrem desde 2018 sobre qual o modelo que deveria prevalecer: para os puristas da primeira hora, indiscutivelmente deveria ser a versão Entremuralhas, que, entendem eles, perdeu a sua magia com a passagem e abertura para a cidade; para outros, talvez menos comprometidos com a causa, deverá ser esta versão atual, pela visibilidade que dá a esta cultura alternativa e pelo efeito desmistificador em relação à subcultura que este contacto com a comunidade leiriense permite. Quer uns quer outros terão, provavelmente, razão. Mas facto é que o Extramuralhas veio para ficar, substituindo o Entremuralhas, cuja Igreja da Pena fica reservada para outros espetáculos menos concorridos, como os do Ciclo de Música Experimental, também organizado pela Fade In, cuja logística se oferece mais simples. É caso para dizer ‘O Rei está morto! Viva o novo Rei!’.

Polémicas e discussões à parte, olhemos para a edição deste ano. E uma primeira observação há, desde logo a fazer: por muito que a programação tenha diversificado a sua oferta, uma coisa é certa: um festival que conta no seu cartaz com Goethes Erben é um festival gótico, ponto! Mesmo que fosse a única banda do género a constar do cartaz deste ano, seria suficiente para lhe conferir o rótulo que se mantém no nome do festival.

 

22 de agosto

Chegamos a Leiria depois do almoço, e deparamo-nos de imediato com grupos de pessoas totalmente trajadas de preto que deambulam um pouco por toda a cidade. ‘Estamos no festival!’, dá vontade de dizer. O ambiente que os muitos festivaleiros conferem à cidade durante os dias do Extramuralhas é fantástico. E diríamos que, depois de um natural estranhamento nas primeiras edições, a cidade já se habituou há muito a estes visitantes e aguarda por eles ansiosamente durante um ano inteiro.

Leiria é uma cidade que se vai transformado de ano para ano, cada vez mais bonita, mais moderna. Mas isso também traz mais gente, mais movimento e menos estacionamento gratuito, que isto de deixar o carro parado na cidade durante 3 dias ainda fica caro. Por essa razão, perdemos a hora do primeiro evento, a projeção do documentário S/HE is Still HER/E no Teatro Miguel Franco. É pena, porque diz quem viu que valeu muito a pena. Mas não falhámos o primeiro concerto deste festival, agora na Igreja da Misericórdia, em pleno coração da cidade. A organização dá a oportunidade aos festivaleiros de contactarem com uma experiência completamente diferente do habitual: o trio Abdullah Miniawy Trio, vindo do Egito e de França, apresenta-se na sua versão quarteto na referida igreja e brinda os presentes com uma hora de música, com instrumentos de sopro e uma voz, nas palavras da organização do festival, “abençoada” que cativa todos os presentes com a sua entrega. E é bonito ver alternativos com “normais”, jovens e mais maduros todos no mesmo espaço a comungarem da mesma cultura. É isto o Muralhas.

A noite no Teatro José Lúcio da Silva tem dois nomes em cartaz. O primeiro a entrar em palco é o inglês Douglas Dare. E que concerto dá! Acompanhado de um Enzo, que, pelos vistos, vai sendo tratado nas ruas de Leiria com sendo português, pois toda a gente fala com ele na nossa língua, ao contrário do que sucede com o Douglas (assim ele partilha connosco), encanta o público presente durante cerca de uma hora. É um bom espetáculo e a interação com os festivaleiros é ótima. Douglas Dare está visivelmente surpreendido com o evento para o qual foi convidado. Isso mesmo fica patente através do elogio que tece ao festival, à organização e à cidade. Diz várias vezes que quer voltar e dá para perceber que o dito não é uma qualquer cortesia habitual de artista para com o público, mas algo genuíno. Apenas temos pena que a sala não esteja mais composta. Ainda assim, há um significativo conjunto de cadeiras ocupadas, tendo em conta que estamos numa quinta-feira e no dia seguinte será dia de trabalho para muitos, que já terão, entretanto, esgotado os dias de férias disponíveis para esta altura do ano.

A segunda banda a entrar são os alemães Goethes Erben, nome seminal do influente movimento da Neue Deutsche Todeskunst, fundamental para a afirmação da música de expressão alemã no panorama musical gótico. O que ali temos oportunidade de ver é um espetáculo e não um simples concerto. É performático até à raiz dos cabelos. Até de um momento de interrupção, fruto de problemas técnicos, Oswald Henke, a alma do projeto, consegue fazer um momento de interação com o público. E eles vão acontecendo várias vezes durante o concerto, descendo o artista até ao público e envolvendo os espetadores das primeiras filas na sua poesia cantada/falada/berrada/arrancada do fundo da alma. E para conferir um toque ainda mais teatral, que dizer da maravilhosa bailarina/contorcionista que ele traz consigo, e que em diversas músicas se vai dobrando até ao limite do saudável para um ser humano? Várias vezes nos questionámos se a estrutura vertebral daquela pessoa é feita de vértebras normais ou de peças de borracha interligadas entre si. O público presente percebe bem a entrega que a banda coloca neste espetáculo. Sendo a estreia desta icónica banda alemã no nosso país, diremos que ela não poderia ter sido mais auspiciosa e não poderia ter sido noutro local que não em Leiria e durante este festival. Por várias vezes o público perde a compostura que é exigida a quem assiste a um espetáculo na imponência e respeitabilidade do José Lúcio da Silva e levanta-se das cadeiras para acompanhar a música com movimentos que ajudam a libertar a muita emoção e comoção que acomete muitos dos presentes, mesmo que a esmagadora maioria não entenda uma única palavra dos textos em alemão que vão sendo declamados. Mas há muito que é sabido que a música é uma linguagem universal e que o sentimento que cada artista coloca nas palavras que usa dispensa tradutores. Este ficará, sem dúvida, como um dos momentos memoráveis que este festival já conheceu ao longo de todos estes anos.

Extramuralhas

Findo os concertos do teatro, é hora de rumar ao Jardim, onde ainda há duas bandas para ver. Os primeiros a entrar ao serviço são os norte-americanos Sextile. O soundcheck da tarde já indiciava que virá dali coisa em grande. Mas ninguém está preparado para uma tamanha descarga de energia que estes americanos descarregam sobre Leiria e todos os presentes. O seu potentíssimo synthpunk contagia toda a gente e momentos há em que a muito bem composta assistência que se concentra ali no jardim dança alinhada com os membros da banda, quase parecendo uma classe avançada daquelas que existem nos ginásios e que servem para manter a forma através da dança. Acontecesse este concerto no último dia do festival, e haveria o risco de alguns não aguentarem a exigência do exercício. Muito bom.

A última banda do dia a atuar no jardim são os suecos Kite. Pelas conversas ouvidas durante a tarde, é das mais aguardadas do dia. E parece não defraudarem as expectativas do público que, mais uma vez, tem a oportunidade de os ver atuar em Leiria. E se Sextile aquece as hostes, o synthpop destes suecos sabe estar perfeitamente à altura dos acontecimentos e não deixar ninguém abandonar o jardim sem ser repleto de satisfação por ter tido a oportunidade de testemunhar tão memorável atuação. E não são só os presentes a poder ouvir a música que sai daquelas colunas, pois a potência do som é tal que a vibração que provoca no sistema de som chega a atirar com algum do equipamento da banda ao chão.

Extramuralhas

O último espaço da noite a acolher concertos é a já emblemática discoteca Stereogun, o espaço mais alternativo de Leiria. Depois de Hammershoi, inicialmente agendados para este dia e para este espaço, terem sido obrigados a cancelar a sua atuação, a escolha para a substituição recai sobre os gregos Kalte Nacht. E o que se pode dizer sobre este concerto é que os muitos festivaleiros que esgotam por completo a capacidade da Stereogun não ficam nada a perder com a troca. Tal como nos é apresentado pela organização, trata-se, de facto, de uma poderosíssima voz conjugada com caixas de ritmos e sintetizadores que fazem daquele concerto um autêntico tributo ao nome da banda. Kalte Nacht significa “noite fria”, e estes gregos conseguem muito bem conferir esta toada gótica à sua atuação, enquanto escaldam a pista de dança. Excelente!

A noite termina com o DJ Carlos Grabstein. O DJ set preparado para este festival que ele partilhou nas redes sociais uns dias antes do festival já deixa antever que seria uma excelente forma de terminar este primeiro dia do festival. E não desilude.

 

23 de agosto

Segundo dia do festival. Pouco antes do início do primeiro espetáculo na Igreja da Misericórdia, já se nota mais gente nas ruas de Leiria, havendo muitos que notoriamente estão ali para o Extramuralhas. O jardim está bem composto, as tendas do comércio estão a abrir e os muitos passeantes param e observar o que há ali de interessante para comprar. Vamos até à Igreja da Misericórdia, onde acontecerá o primeiro concerto do dia. Deena Abdelwahed é o nome em cartaz e vem da Tunísia/França. A igreja está muito bem composta e o dia está abafado, pelo que surge a necessidade de abrir as portas laterais para que o ar entre e possa circular, refrescando o espaço que começa a ficar muito quente. E a temperatura sobe ainda mais assim que o duo inicia o seu concerto, colocando os muitos presentes a acompanhar entusiasticamente a música que sai das colunas. Esta Igreja é um espaço lindíssimo e beneficia de um fantástico sistema de iluminação, que torna o espaço ainda mais ajustado a espetáculos deste tipo. Boa escolha.

Chega o momento de rumarmos ao Camões para os concertos da tarde. A primeira atuação é especial, pois é alguém que é duplamente da casa. Duplamente porque Marciano é de Leiria e porque também é colaborador do Entre/Extramuralhas desde a sua segunda edição. Estando a jogar em casa, a expectativa é grande para ver este filho da terra fazer a sua estreia artística neste festival. O início é marcado por algumas dificuldades técnicas que, entretanto, são prontamente resolvidas e que, de qualquer forma, em nada afetam a grandiosidade do concerto que o homem de Marte ali dá. O público leiriense, obviamente, vibra com esta atuação do seu conterrâneo, que está muito bem acompanhado em palco pelo Nuno e David, de She Pleasures Herself, e pelo Rui Geada, que o ano passado esteve ali naquele mesmo palco com IAMTHESHADOW. Mais perto do final do concerto, ainda há tempo para chamar ao palco Carlos Amado, mais um filho da terra, que atua como convidado especial, tocando a sua guitarra portuguesa numa das músicas apresentadas. De destacar também a indumentária e alguns acessórios dos quais Marciano se faz acompanhar e que dão a este concerto uma grande qualidade estética que se tem de destacar. Ouvem-se alguns dos temas já conhecidos deste artista, é também possível ouvir música nova que sairá no próximo álbum. No final, antes de terminar a atuação, o público é brindado com o tema “Bissectriz”, que não poderia faltar, obviamente. Parabéns ao Marciano!

Extramuralhas

Dos Estados Unidos surge depois o projeto de um homem só intitulado Dancing Plague. E quem acha que um projeto só é projeto se tiver muita gente, este americano prova que é apenas necessário ter a maquinaria adequada, o talento necessário e uma grande capacidade de ocupar um palco para oferecer um concerto que enche as medidas de toda a gente. Grande garra, grande atuação!

À hora do jantar, pouco antes da hora de ir para o Teatro José Lúcio da Silva, a chuva miudinha resolve fazer uma inédita aparição no Extramuralhas. Durante algum tempo sobressaltamo-nos, pois faltam ainda dois concertos ao ar livre e aquela chuva mostra-se totalmente desnecessária. Felizmente, é apenas uma pequena partida da natureza, e passado pouco tempo aquela humidade incomodativa acalma.

O concerto do teatro é com a austríaca Anja Plaschg, que ali se apresenta com o seu projeto Soap&Skin. Ao contrário do dia anterior, a sala do teatro está praticamente lotada. O facto de ser sexta-feira contribui, certamente, para aumentar o número de pessoas presentes na sala, mas não se deve olvidar que há um genuíno interesse por parte de muita gente em poder ver esta magnífica artista ao vivo.

O concerto divide-se entre momentos da artista ao piano, secundada por três músicos que vão enriquecendo a sua atuação com outros instrumentos, e partes em que Anja Plaschg vai viajando pelo palco, juntando a sua voz ao acompanhamento eletrónico que emana das colunas. Este concerto é um hino à dedicação e devoção de uma artista à sua arte e ao seu público. Nem a constipação com que se apresenta ali afeta a enorme voz desta austríaca. Assiste-se ali a um momento de grande introspeção, de sentimento, de dor e sofrimento partilhados. Não é apenas uma nem duas vezes que a artista se deixa emocionar durante a atuação, provando que não está ali apenas para cumprir um contrato, mas sim para partilhar com os presentes a sua arte. A memorável atuação é justamente recompensada com um enorme ramo de flores, que alguém lhe oferece a dado momento, e que provoca outro momento de comoção na artista, que sente necessidade de se deslocar pelo auditório e oferecer algumas flores aos devotos fãs que ali estão para a ver. Excelente voz, magnífica entrega desta artista, maravilhoso jogo de luzes. Mais um espetáculo sublime deste Extramuralhas.

Extramuralhas

Depois do Lúcio da Silva, chega o momento de nos deslocarmos poucos metros até ali ao lado ao Jardim de Camões. A noite terá ainda Blind Delon e Years of Denial. O primeiro francês a atuar é Blind Delon, que, acompanhado de um baixo potente, inunda o recinto com o seu post-punk muito distintivo. As qualidades dos diversos espetáculos deste festival colocam um constante desafio aos artistas participantes para conseguirem estar à altura dos acontecimentos, mas a reação entusiástica do público permite perceber que, no caso deste francês, ele não tem que se preocupar, pois passou o teste do exigente público do festival com distinção e louvor.

Years of Denial são um caso interessante. É sabido que a Fade In não gosta de repetir nomes em Leiria, fazendo-o apenas em casos muito excecionais, pois a ideia é trazer sempre novos nomes à cidade. Para quebrar esta regra não escrita é necessário que a banda seja muito especial. E Years of Denial parece ser uma dessas bandas especiais, que ainda há cerca de dez meses esteve em Leiria a atuar no Monitor e que agora volta para o Extramuralhas. O enorme concerto que deram em outubro terá, certamente, sido decisivo para este novo convite. Durante a tarde tivemos oportunidade de conversar um pouco com estes franceses, que desde a véspera procuraram ir a todos os espetáculos que iam acontecendo, e percebemos o quanto estão rendidos a Leiria e ao festival. Não nos surpreenderá se, em próximas edições, os voltarmos a ver por cá, não como artistas participantes, mas sim como festivaleiros.

A Stereogun, mais uma vez repleta de gente vestida de negro, é o local do último concerto da noite. Fotocopia, projeto espanhol de um homem só, traz um momento explosivo de rebelião ao festival. Endiabrado até mais não, apoiado por um jogo de luzes perigoso para epiléticos, o espanhol lança o seu grito de guerra e arranca público fora para só parar quando as forças já faltam para continuar, as dele e as dos presentes. Estamos certos que muitos dos presentes ficam a questionar-se sobre o que acaba de acontecer ali. Mais uma experiência para mais tarde recordar que o Extramuralhas oferece aos seus festivaleiros. Para terminar a noite, para aqueles que não esgotaram ainda as suas forças durante o espetáculo de Fotocopia, há ainda oportunidade de dançar ao ritmo do DJ set de Sergio Delirio, também espanhol e que encerra este segundo dia do festival.

 

24 de agosto

E rapidamente se chega ao último dia da edição deste ano do Extramuralhas. O primeiro ponto de encontro é, novamente a Igreja da Misericórdia para mais um momento de encantamento. Desta feita, é apenas necessário a voz de uma fantástica artista nipónica (Hatis Noit), instrumento suficiente para deslumbrar os muitos presentes que praticamente enchem o lindíssimo espaço deste Centro para o Diálogo Intercultural de Leiria. Mágico momento em que é possível escutar uma orquestra inteira produzida por uma única voz, que parece transcender-se de cada vez que canta uma das músicas, regressando brevemente à terra para respirar um pouco entre cada tema, para de pois levantar voo e voltar a encantar todos os que ali se encontram. Sublime.

Extramuralhas

Talvez por ser sábado, nota-se muito mais movimento na cidade. Isso torna-se especialmente notório no Jardim de Camões, onde o número de pessoas aumenta significativamente em comparação com os dias anteriores. Figuras já bem conhecidas do festival, e que marcam habitualmente presença nesta altura em Leiria, estão também presentes. Da mesma forma também se verifica uma maior presença de festivaleiros que se apresentam com os seus melhores vestidos de gala para este evento, o que motiva imensos registos fotográficos para mais tarde recordar. O ambiente está muito bom, muito em linha com o mote deste ano do festival, que pede que não se faça guerra, mas sim música. E, de facto, numa altura em que tantos conflitos ocorrem por esse mundo fora com origem em diferenças culturais, Leiria é um bom exemplo como culturas diversas podem coexistir sem qualquer tensão. E salta à vista que Leiria gosta genuinamente dos góticos e de todos aqueles que de forma mais ou menos comprometida com esta subcultura visitam a cidade em cada ano.

O primeiro concerto do Jardim é da responsabilidade dos portugueses NO|ON. Notoriamente desconhecidos para grande parte do público presente, estes bracarenses dão um excelente concerto e conseguem, com o seu som eletrónico/industrial, fazer novos fãs, e a ovação com que são presenteados no final da sua atuação prova esse mesmo interesse. Um sucesso e uma escolha muito feliz da organização do evento.

De seguida entrou em palco a banda suiça Bound of Endogamy. E se os portugueses deram o mote para esta tarde marcada por um som de toada eletrónica, os helvéticos continuam a receita com muito sucesso, oferecendo aos muitos presentes uma hora de muita energia e atitude.

O jardim, entretanto, vê chegar cada vez mais gente. O último dia, talvez por ser a um sábado, costuma ser o mais concorrido do festival. Mas este ano notam-se mais pessoas do que o habitual, o que indicia que este evento já está a deixar a idade adolescente para se tornar num adulto no panorama cultural de Leiria. Não será exagero afirmar que o Entre/Extramuralhas é, neste momento, o evento âncora da cidade, o que não é coisa de somenos importância numa cidade que tem apostado fortemente na sua agenda cultural.

E falando em cultura, o Extramuralhas não é apenas música. Associações culturais da cidade envolvem-se igualmente com o festival. No átrio da Igreja da Misericórdia há, por exemplo, um teatro curto a acontecer a cada 5 minutos, que obriga os espetadores a espreitar para uma caixa (na verdade é um mini-caixão) para poder assistir a uma pequena peça, o que faz a delícia dos espetadores, principalmente dos mais jovens. No jardim vários participantes de caderno e lápis de cor na mão desenham o ambiente que observam. Trata-se de uma iniciativa dos Leiria Urban Sketchers, que marcam habitualmente presença neste evento. Gostávamos que o resultado dos trabalhos realizados pudesse ser partilhado com toda a comunidade de forma mais mediatizada, pois apenas a partilha nas redes sociais do grupo parece-nos insuficiente para a qualidade dos trabalhos que anualmente ali são produzidos.

Sendo o último dia, esta é igualmente a última oportunidade de os presentes se deslocarem às tendas do comércio alternativo que o festival oferece aos visitantes e adquirir uma peça de artesanato urbano ou então encontrar aquele disco que há muito se procura e que ainda não foi possível encontrar. O facto de a maior parte das tendas do comércio se repetirem de um ano para o outro indica que o festival agrada a estes profissionais, motivando-os a voltar a Leiria a cada agosto.

No último dia, e ao contrário das edições anteriores do Extramuralhas, não há qualquer concerto no Lúcio da Silva. Mas, em compensação, os concertos noturnos no Jardim aumentaram de dois para três. O primeiro de todos é dos italianos Shad Shadows, que aquecem o vasto público com aquela música de toada melancólica que tão apreciada costuma ser neste festival. Curses é o nome que se segue e que coloca as larguíssimas centenas de festivaleiros a dançar ao som da sua música. Impressionante como ao fim de três dias de festa rija ainda há tanta energia para gastar. A despedida dos concertos no jardim deste ano cabe a Dead Lights, ingleses que trazem o que de melhor se vai fazendo no gótico-industrial atualmente até Leiria.

O encerramento das festividades é, como sempre, na Stereogun. E que despedida! Dame Area parecem ter, de há algum tempo a esta parte, assentado arraiais por terras lusas tal é a frequência com que nos visitam. Isso mesmo fica bem patente na enorme legião de fãs, apropriadamente trajados com t-shirts da banda espanhola, que deambulam por ali. E assim que o ritual tribalístico industrial irrompe da voz da endiabrada vocalista sabe-se, de imediato, o que ali irá acontecer: uma hora de muito ritmo, muita garra, muito salto e pouco espaço para dançar sem partir algo. Estes espanhóis são um caso sério de sucesso, que certamente será continuado com o próximo trabalho discográfico, e que em boa hora a organização do Extramuralhas decidiu convidar para o festival. Era uma falha que se estava já quase a tornar imperdoável ainda não terem vindo às terras do Lis.

Extramuralhas

A noite, como sempre, termina com um DJ set, neste caso de Yami Spechie proveniente do Peru. E a pista é varrida de ponta a ponta pelos muito resistentes que ali permanecem até ao encerrar das portas e da edição 2024 do festival. O 13 pode até ser número do azar para os mais supersticiosos. Mas esta edição do Extramuralhas permitiu desfazer esses mitos. Se alguma coisa há a dizer deste 13º Entre/Extramuralhas é que trouxe a sorte a todos os presentes que tiveram o privilégio de assistir a tantos e tão bons espetáculos.

Extramuralhas é já um momento ritualístico de encontro anual da comunidade mais ligada às vertentes alternativas da música, especialmente a que se conjuga com o gótico. Seja na sua versão original Entre ou na atual Extra, o evento é uma referência não apenas nacional como internacional. Isso mesmo provam os muitos estrangeiros que, anos após anos, apanham um avião para virem de países longínquos até à simpática cidade de Leiria para viverem 3 dias inesquecíveis. O que se pede é que assim continue a ser. E que os próximos 365 passem depressa até ao Extramuralhas 2025. Para já, e para ajudar a tornar a espera menos penosa, marcamos encontro para o próximo Monitor, outra das excelentes iniciativas da Fade In, que se deverá realizar lá para outubro. Até lá, mantenham-se todos no lado mais sombrio da música. Não se irão arrepender.

 

 

Texto: Manuel Soares

Fotografia: Miguel Silva

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