Amplifest 2024 – dia 2: entre reencontros reconfortantes e estreias promissoras criaram-se novas memórias
Amplifest 2024 – dia 2: entre reencontros reconfortantes e estreias promissoras criaram-se novas memórias
Amplifest 2024 – dia 2: entre reencontros reconfortantes e estreias promissoras criaram-se novas memórias
2024 é um ano especial para a Amplificasom, marcado pela comemoração simultânea da décima edição do Amplifest e dos dezoito anos do coletivo que o organiza. Uma conquista verdadeiramente notável para uma aventura que começou como um blog de partilha musical e que evoluiu para um projeto de amigos guiados pelo mesmo princípio – trazer cá as bandas que os entusiasmavam, para as poderem ver na companhia de quem também as queria “sentir”. No fundo, mais do que uma promotora, falamos de uma família de melómanos para melómanos, um sonho mantido vivo por todos aqueles que encontram nele uma utopia aconchegante. Sem barreiras, eliminando hierarquias desnecessárias – a organização arranja tempo para conversar com o público nos corredores porque é dessa experiência coletiva que o festival se alimenta -, cria-se aqui algo bem bonito, cansativo para o corpo mas revigorante e enriquecedor para a alma. Não há edição em que não assistamos a alguns dos melhores concertos do ano (às vezes da vida inteira), e é precisamente por isso que queremos sempre regressar – pela música, pelo convívio, por todo este “arquivo” de recordações indeléveis que nos adoçam o espírito melómano.
E se podemos afirmar que o cartaz deste ano não era dos mais impressionantes à superfície, a verdade é que estava cheio de “pequenos” tesourinhos, daqueles nomes que já andávamos a ouvir há algum tempo e queríamos ver, ou então que nem conhecíamos e passamos depois a adorar. Com eles vieram também alguns velhos conhecidos – uma maneira de a Amplificasom reunir os músicos que os ajudaram a escrever a sua história, e que em alguns casos tinham material novo para apresentar -, fazendo assim a ponte entre a descoberta e a familiaridade.
Dentro dessas propostas mais “antigas”, o destaque vai claramente para os Russian Circles, grupo que a Amplificasom trouxe pela primeira vez a Portugal em 2008 e que desde então se tornou num dos nomes mais acarinhados pelo público que a acompanha. Contudo, acreditem que desvalorizar este regresso simplesmente pelas visitas regulares teria sido um erro, pois o trio de Chicago subiu ao palco Büro o da sala principal) para assinar um dos seus melhores concertos em território nacional. Exímios na execução de um post-metal tão devastador quanto delicado, sempre ali entre o peso esmagador e a melodia etérea, protagonizaram uma apresentação fortíssima, cheia de garra e recheada da precisão instrumental que sempre os caraterizou. Misturando temas mais conhecidos com outros retirados do mais recente Gnosis, lançado em 2022, provaram que continuam a ser uma banda excelsa e até nos deixaram com vontade de repetir a dose…
Muito bem estiveram igualmente os italianos Ufomammut, a segunda das bandas “repetentes” no cartaz deste dia e que também se encontra a comemorar um importante aniversário – neste caso, 25 anos de carreira. Munidos de excelentes projeções, ofereceram uma dose bem hipnótica do seu doom/sludge de tons psicadélicos que até contou com uma cover deliciosamente idiossincrática do clássico “Welcome to the Machine” dos Pink Floyd. Tal como tinha acontecido um pouco antes com os Russian Circles, tivemos aqui um agradável reencontro com uma banda que é mestre absoluta do seu universo sonoro, e nada mais se pedia.
Todavia, foi no campo das estreias que assistimos às verdadeiras revelações. Uma delas foi mesmo já no final do dia, quando o palco Dois Corvos, na sala mais pequena do Hard Club, foi invadido pelo noise/industrial com apontamentos de techno dos UF. O duo formado pelo alemão OAKE e o britânico Samuel Kerridge protagonizou um dos mais sufocantes concertos que já vimos no Amplifest, entre berros agonizantes e batidas dementes que espalhavam um clima de decadência urbana ao mesmo tempo inquietante e sedutor. Houve algumas alturas para respirar – especialmente a meio da performance -, mas os momentos de maior intensidade foram de uma violência aterradora, espécie de banda sonora marada de uma rave esquizofrénica que bem podia estar a acontecer numa cave. Poucos são os concertos onde sentimos ao mesmo tempo medo e euforia, mas foi exatamente isso que aconteceu aqui, numa atuação catártica que nos lavou completamente a alma.
Dessa mesma entrega absolutamente avassaladora viveram também os dinamarqueses LLNN, mas aqui no território do sludge violento agarrado ao músculo do hardcore e a piscar o olho à eletrónica. Verdadeiramente imponentes, assinaram uma prestação de tal forma demolidora – a sonoridade deles, aliás, é efetivamente apocalíptica – que até houve mosh e stage dives frenéticos. Um furacão que por aqui passou e que sentimos que não demorará assim tanto a cá regressar…
Igualmente impressionantes estiveram os Living Gate, supergrupo formado por músicos ligados aos YOB, Amenra ou Oathbreaker que pratica um death metal old school bem pesadão e técnico, mas sem descurar o groove. Numa prestação poderosa e intimista foi realmente sensato colocá-los no palco Dois Corvos) conseguiram recriar as atmosferas mágicas do death metal dos anos 90, mas com toda a “frescura” que o estilo apresentava nesses dias, como se eles próprios os tivessem vivido. Mais do que um revivalismo forçado, os Living Gate injetam nova vida à tradição – sem grandes experimentalismos ou inovações, apenas reproduzindo o feeling do passado com uma eficácia notável no presente.
Triunfais foram igualmente as estreias no nosso país de Insect Ark e Mizmor. Os primeiros, liderados por Dana Schechter (a atual baixista dos Swans), e contando agora também com os serviços do baterista Tim Wyskid (dos Khanate e Blind Idiot God), construíram uma magistral “escultura” sonora, entre uma ideia de composição e exploração livre, onde o peso adquiria uma aura cinemática. Num concerto que foi gradualmente “crescendo”, terminaram de forma apoteótica e mostraram que têm obrigatoriamente de regressar.
Já Mizmor, projeto da autoria de A.L.N, instalou uma onda de escuridão penetrante com o seu black metal abraçado ao doom, numa atmosfera de tal forma sombria e tenebrosa que parecia que tínhamos sido atirados para uma masmorra. Ao vivo a experiência é extraordinariamente arrepiante, de uma brutalidade emocional tão implacável e agonizante que a nossa mente é imediatamente transportada para os lugares mais dantescos. Não foi uma apresentação longa (pouco mais de quarenta minutos), mas foi uma das mais impetuosas e transcendentes do Amplifest – autêntica purga da alma.
E se Mizmor cultivou a negritude acutilante, Cinder Well, alter ego da californiana Amelia Baker, optou pela delicadeza de um folk caloroso e reconfortante. Sozinha em palco com a sua guitarra (o que resultou num som menos “cheio” do que em disco, mas não necessariamente menos envolvente), proporcionou um dos concertos mais intimistas desta edição, a dose de serenidade poética que o nosso espírito necessitava depois das atuações anteriores.
E num dia cheio de bons momentos, acabou por pertencer aos Fvnerals a única “desilusão”. Escrevemos entre aspas porque na verdade foram bastante competentes, mas faltou aquela envolvência que deles esperávamos depois de escutar a densidade imersiva de um disco como Let the Earth Be Silent. Não ajudou o som não estar necessariamente cristalino, prejudicando essencialmente as vozes. Todavia, acreditamos que noutras circunstâncias poderemos testemunhar uma prestação mais satisfatória, pois o potencial para isso está claramente lá.
Texto: Jorge Alves
Fotografia: Vera Marmelo/Amplificasom