Amplifest 2024 – dia 3: dezoito anos depois, a chama continua a arder com força
Amplifest 2024 – dia 3: dezoito anos depois, a chama continua a arder com força
Amplifest 2024 – dia 3: dezoito anos depois, a chama continua a arder com força
Na mais simbólica das comemorações, o último dia do Amplifest teve lugar precisamente dezoito anos após a Amplificasom ter trazido os Enablers ao Meu Mercedes, num 10 de novembro longínquo onde um jovem André Mendes dificilmente imaginava o percurso emblemático que estava ali a iniciar. Mas a vida dá muitas voltas, e foi assim que no passado domingo celebramos este marcante aniversário num Amplifest esgotado com Chelsea Wolfe a headliner. Um feito surreal, mas verdadeiramente inspirador para uma promotora que sempre operou de forma independente num circuito alternativo. Se há histórias de sucesso que nos aquecem a alma, esta é definitivamente uma delas.
E o melhor é que a prenda – para nós e para a organização também – foi uma série de concertos absolutamente lendários, alguns dos melhores na história da Amplificasom. A começar logo muito bem com o retorno dos Inter Arma, que proporcionaram uma esplêndida sessão de música pesada onde a brutalidade soa sempre requintada. Desde riffs death metal monstruosos que recordam o período áureo dos Morbid Angel, a passagens doom/sludge ou até crescendos post-rock, sem esquecer o “rasgo” infernal do black metal, estamos perante uma espécie de “colagem” de sons extremos delineada com uma criatividade sensacional e uma inteligência na composição que chega mesmo a ser prodigiosa. Não há aqui somente “peso” distribuído de forma implacável (e nada de errado com isso, atenção), tudo é pensado ao pormenor e apresentado como uma escultura musical esplendorosamente intensa. Um concerto magnífico e portentoso por parte de uma banda excecional.
Logo a seguir seguimos para o palco Dois Corvos para testemunhar uma das poucas atuações (e, curiosamente, a única na Europa este ano) dos canadianos Menace Ruine. E se Inter Arma já tinha sido brutal, o que aqui vimos foi, muito honestamente, um dos mais bonitos e comoventes concertos que o Amplifest alguma vez acolheu. É quase impossível descrever com palavras a beleza da sonoridade do duo – objectivamente ali entre o drone, a folk e a eletrónica avant-garde -, mas dotada de uma espiritualidade quase sagrada, como um chamamento ancestral que parece emanar de uma floresta distante onde subitamente sentimos estar. Há uma magia esotérica presente nestas composições, uma pureza quase xamânica (inclusive na voz de Genevieve Beaulieu, que muitas vezes canta como se estivesse a comunicar com outros mundos) que nos lava a alma e nos convida a renascer. Purificados e extasiados, abraçamos a transcendência.
Esta foi uma boa transição, aliás, para o post-rock etéreo dos noruegueses Spurv, cuja presença do saxofone adiciona um toque “quente” e exótico às explorações sonoras do sexteto. Numa estreia bem agradável por cá, agradaram aos fãs do estilo e ficou no ar a sensação de que este foi somente o primeiro capítulo de uma longa história com o público português.
Num registo totalmente diferente, passamos para o palco Dois Corvos para assistir à performance da nova-iorquina Mary Jane Dunphe. E usamos esta palavra porque observamos e sentimos uma das atuações mais performativas de todo o festival, entre a música – uma pop eletrónica possante e enérgica – e o movimento “teatral” de sentimento genuíno, como uma reação visceral da artista à própria arte que criou. Servindo-se da guitarra na primeira música, rapidamente a largou para adotar uma expressão corporal entre a impetuosidade e a elegância, mas sempre intrigante no modo como parecia quase possuída – ou talvez libertada – pelos sons que do palco ecoavam com pujança. A encenação como mecanismo de catarse, manifesto de autoafirmação – ou será transformação? – criativa que Mary Jane explora com veemência no calor de um espetáculo sedutor. Não terá sido consensual, mas foi certamente fascinante.
Já de volta ao palco Büro, assistimos a uma das mais soberbas atuações de todo este fim de semana. Falamos da colaboração dos The Body com Dis Fig, alter ego de Felicia Chen, responsáveis por uma massa sonora surrealmente opressiva que ameaçava engolir a sala num buraco negro intimidante. Se o álbum que lançaram, intitulado Orchards of a Futile Heaven, já soava particularmente vigoroso, ao vivo o material torna-se ainda mais implacável e ensurdecedor – uma estupenda parede de som à base de um noise/industrial subversivo e inquietante que nos arrepiou a alma e puniu os tímpanos. A voz de Chen – ora mais “nebulosa”, ora mais tensa – encaixa perfeitamente no mundo de insanidade visceral habitado pelos The Body, e o assalto sonoro que forjaram mais se assemelhava, no pico da sua intensidade, a uma experiência religiosa. Quando tudo acabou ainda não estávamos bem em nós, mas sabíamos que tínhamos testemunhado algo especial, sem dúvida um dos melhores concertos que o Amplifest alguma vez recebeu. Inacreditavelmente poderoso, as memórias ainda assombram… Enfim, que jarda gloriosa.
Bastante bons também, e merecedores de mais atenção no futuro, foram os canadianos Yoo Doo Right, banda cujo nome se inspira no último tema da estreia dos Can (“Monster Movie”, de 69), mas onde a base krautrock – e essa força rítmica está lá, sente-se bem- é apenas um ponto de partida para uma exploração cativante que também vai beber ao shoegaze e ao post-rock. Ao vivo, conseguiram criar uma atmosfera bastante envolvente (notava-se, aliás, que a audiência estava claramente a reagir) e ofereceram um concerto incrivelmente sólido que nos deixou com muita vontade de os voltar a ver.
Pelo meio, claro, houve as grandes atrações do dia. A começar pela norte-americana Chelsea Wolfe, que regressou ao Amplifest onze anos depois de por cá se ter estreado na altura do excelente Pain Is Beauty. E o que podemos dizer sobre este concerto – para além da reação super efusiva por parte de uma audiência completamente eufórica -, é que foi lindo. Efetivamente, assistimos aqui a um verdadeiro espectáculo, cuidadoso no departamento visual (uma espécie de feixe de luz emanava do palco como uma força de esperança), e majestoso a nível sonoro. Nesse universo Chelsea mostra-se cada vez mais abrangente, como prova o novo She Reaches Out to She Reaches Out to She, onde a artista californiana envereda por caminhos próximos do trip hop e adapta-o à sua essência gótica. Essa capacidade, aliás, esteve bem visível ao longo desta atuação. Houve eletrónica dark, momentos folk, ou incursões pelo doom, mas esse ecletismo nunca deixou de ser profundamente coeso porque, independentemente do estilo interpretado, tudo soava inconfundivelmente a Chelsea.
Depois, claro, há o facto de estarmos perante uma especialista na criação de atmosferas monumentais, e foi assim que gradualmente íamos sendo contagiados pela magia muito própria deste concerto – um manto de negritude delicado com o qual metaforicamente nos cobrimos para ficarmos aconchegados. Há alturas de maiores “rasgos“ sonoros – que no mundo de Chelsea são também emocionais, e sentidos de forma emotiva -, mas tudo progride com uma sensibilidade tocante, como uma flor que lentamente mostra ao mundo a sua beleza.
Num concerto inegavelmente bem conseguido, o maior destaque vai para o momento em que Chelsea anuncia que tem uma surpresa para nós e bem… chama ao palco a amiga Emma Ruth Rundle para com ela interpretar “Ahendonia”. E foi assim que Emma, que não estava sequer presente neste cartaz, nos brindou com a sua presença inesperada, mas que é sempre bem-vinda. Uma prenda para o público português oferecida não só pela anfitriã deste concerto, como pela própria Amplificasom, que nos deu um doce no seu próprio dia de aniversário – uma forma bonita de celebração coletiva. Quanto a Chelsea, mostrou de forma irrefutável que permanece rainha do seu universo.
Magistrais estiveram igualmente os finlandeses Oranssi Pazuzu, que assim regressaram ao Amplifest depois de terem participado na edição de 2022. Na bagagem traziam o mais recente Muuntautuja, material que serviu de base para uma prestação irrepreensível, onde os limites criativos do black metal foram novamente desconstruídos, naquela que é uma das mais fascinantes reinvenções da música pesada nos últimos anos – sublime futurismo sonoro onde a ambição é tão extrema quanto a música que a inspira. Ao vivo os temas do novo registo – que já vimos ser apropriadamente descrito na net como o Kid A do black metal -, soam poderosos, o peso infernal associado a elementos de electrónica (synths, sobretudo) e ao já habitual jazz a revelar-se exímio – orgulhosamente desafiante mas sempre requintado. Enfim, isto é o futuro do metal exibido no presente, em todo o seu esplendor. Uma das propostas mais brilhantes e progressistas que o estilo atualmente possui, aqui admirada e celebrada no seu período áureo. Se já nos sentíamos, por esta altura, a enfrentar algum cansaço físico, tivemos a nossa alma massajada através desta excelsa dose de mestria sonora. Que “bandão”!!!
Para os mais resistentes, o Amplifest terminou com a “pista de dança viking” dos franceses Eihwar, uma despedida bastante adequada para uma altura em que aquilo que interessava era descomprimir e festejar – e animação foi o que não faltou a esta prestação.
Quanto ao balanço final, é feito de alegria e esperança; alegria porque tivemos a sorte de o viver, colecionando memórias preciosas; esperança porque queremos que continue, e neste clima de incertezas atravessadas pela indústria musical – e pelo mundo em geral, diga-se -, não se sabe bem o que o futuro reserva. O que é certo, contudo, é que a “Amplifamília” manter-se-á unida, porque é assim que se faz a força.
Texto: Jorge Alves
Fotografia: Vera Marmelo/Amplificasom