Mucho Flow: guiados pelo risco com o futuro no horizonte
Mucho Flow: guiados pelo risco com o futuro no horizonte
Mucho Flow: guiados pelo risco com o futuro no horizonte
Mabe Fratti, Angry Blackmen e Still House Plants foram alguns dos destaques da 12ª edição do festival vimaranense, de aposta em valores emergentes.
Muitas têm sido as passagens de Mabe Fratti por Portugal. Ao longo do último par de anos, temos vindo a acompanhar de perto o trajeto ascendente da cantora-compositora guatemalteca, entre prestações a solo (como as que apresentou em Braga, Lisboa e Aveiro em 2023) e ao lado das sul-americanas Amor Muere (nos metros iniciais de 2024). No Mucho Flow, que chegou ao fim este sábado, reencontramos uma artista ligada à corrente.
Acompanhada por Héctor Tosta, na guitarra, e Gibrán Andrade, na bateria, a jovem compositora aproximou-se do território convencional de canção, expandindo todos os cantos que alimentam a sua impressionante discografia ao combiná-los com a gramática do rock. A atar estas duas pontas – a canção propriamente dita e o território livre da improvisação – está Sentir que no sabes, o quarto álbum da artista radicada no México e mais uma admirável demonstração das potencialidades do violoncelo, que Fratti subverte com recurso a uma bateria de pedais de efeitos. Os resultados, presentes em canções grandiosas como “Kravitz” e “Enfrente”, são do mais desafiante que se tem feito nos últimos tempos. Nesta música sem fronteiras estilísticas, capaz de percorrer os campos do jazz, da clássica e da folk mais inconformada, cabem momentos de catarse, candura e minimalismo terno.
Igualmente económica na libertação de emoções impossíveis de conter foi a atuação dos Still House Plants. If I Don’t Make It, I Love U, um dos mais aplaudidos lançamentos do presente ano, foi o trabalho que o trio de ingleses trouxe até Guimarães, depois de várias passagens em Lisboa e no Barreiro (a última decorreu no Out.Fest). Em maio deste ano falávamos do “organismo mutável, complexo e abjeto a leituras simplistas” desse disco, autêntico tratado de rock angular que os londrinos transportaram com sucesso para as galerias do Teatro Jordão. Conduzido pela soul fleumática da vocalista Jess Hickie-Kallenbach, o individualismo sintonizado a três dos ingleses faz-se a partir da cumplicidade dos seus intervenientes. Um entendimento feito através da troca de olhares, da repetição insistente de motivos, da liberdade que cada um se dá para se entregar à deriva e ao abandono. Só assim seria possível chegar ao som circunspecto de um grupo que se permite a demorar, entre monólogos matemáticos para guitarra, baterismos irrequietos e uma voz magnetizante com tanto de caloroso como de desafiante.
Novos ares de rave
Chamem-lhe new rave, indie sleaze, electrocash. Não o dizemos pejorativamente: fomos apanhados de surpresa na teia pegajosa dos Snow Stripper, dupla norte-americana que eleva o choque elétrico dos Crystal Castles muito além do mero exercício de “pastiche”. Foi isso que escutamos na estreia do duo em Portugal, no terceiro e último dia do Mucho Flow. Sempre com a quinta engrenada, a dupla de Detroit foi igual a si mesma, reapropriando os lugares-comuns da witch house e da estética Y2K (bem servida nos visuais) e recontextualizando-os sob um prisma moderno e altamente infeccioso de vozes etéreas e ritmos pulsantes devedores do trance europeu. Um céu aberto de breaks, scratches e samples de sirenes encadeados sem interrupções que colheu o interesse das gerações mais novas, que não se coibiram nas demonstrações de amor a Tatiana Schwaninger e Graham Perez.
Na trip de 33EMYBW, a pista é campo aberto para a reflexão. Na selva frondosa da artista de Xangai há fungos e ossos de rave defunta em choque com metais e percussão de raíz asiática, espectros de vozes mutantes e torrentes tonitruantes de sub-graves. Uma amostra férrea de techno mutante e combativo, existente na mesma área cinzenta de fenómenos periféricos e igualmente energéticos como o singeli. Tudo isto ampliado pela visão caleidoscópica do artista visual Joey Holder, que estampou o Centro Cultural Vila Flor com imagens de crisálidas e bactérias em mutação.
Colocar o dedo na ferida
Os Angry Blackmen não estão para cerimónias. Entram em palco com a adrenalina de um atleta que acaba de correr os 100 metros velocidade, e ai de quem não acompanhe o idiossincrático duo de Chicago. Felizmente, a pequena plateia das galerias do Teatro Jordão correspondeu. Os autores de The Legend of ABM, disco que vieram apresentar na estreia em Portugal, souberam manter o público na mão, entre versos cuspidos à capela, o suor do mosh pit e as dedicatórias dirigidas aos fãs mais devotos. Cantam os males de uma América corrompida pelo imperialismo, a violência policial e a prisão do capitalismo, completando as rimas um do outro com invejável cumplicidade, enquanto uma torrente tumultuosa de samples e beats industriais colapsa com o jogo de cintura do hip-hop mais atrevido.
Numa órbita muito distinta dos americanos está Florence Sinclair, cuja música gravita em torno de uma Grã-Bretanha negra e inconformada. Firmada nos ensinamentos de Dean Blunt (John Glacier e mark william lewis são outros interessantes discípulos do elusivo crooner britânico), Sinclair bebe dessa mesma fonte hipnagógica, usando a voz – que adultera a seu bel-prazer – como plataforma para desenhar caminhos feitos de fumo e nebulosa. As guitarras, quando existem, são devedoras da jangle pop dos Felt e dos Smiths, e os arranjos sinuosos para cordas e outros instrumentos, que vão emergindo por baixo das linhas embriagadas de baixo, colocam-no numa liga não muito distante de pares igualmente idiossincráticos como Mica Levi e Coby Sey.
E o que dizer do concerto enxuto dos University? Num festival centrado na aposta de valores emergentes, sobretudo ligados às esferas das músicas ditas exploratórias, foi com entusiasmo que nos deparamos com o rock antémico e muito adolescente do trio que assinou recentemente pela Transgressive, reputado selo que abriga no seu catálogo obras de Alvvays, Foals e SOPHIE. O volume de trabalho é reduzido – Title Track, composto por cinco faixas, é o único registo do grupo até à data – mas as provas estão dadas no cruzamento voraz entre ruído e energia garageira, que cruzam de forma impiedosa com os extremos do hardcore. Punk com dois dedos de melodia e outros tantos de emoção, válido na reintrodução das guitarras para o centro do discurso. Nem o romper de uma corda – um imprevisto que acabaria por prolongar a passagem dos ingleses por Guimarães durante mais uns bons 10 minutos – foi capaz de pôr fim à eletrizante sessão de pancadaria proporcionada pelo grupo. A não perder de vista.
Sonhos folk fraturados
Surpreendente a folk fantasmática de Anastasia Coope. A cantora-compositora de Nova Iorque junta as novas tecnologias – samples, arranjos e texturas eletrónicas – ao ideário setentista de Laurel Canyon, criando florestas encantadas de coros e canções com tanto de assombroso como de assombrado. Em Guimarães, contudo, esteve longe de atingir o máximo das suas capacidades. Faltou-lhe sorte (os problemas técnicos abundaram), vontade (o final anticlimático, 20 minutos depois do começo, deixa a desejar) e a intimidade de um ambiente mais acolhedor para brilhar tanto como as canções de Darning Woman, impressionante estreia editada este ano pela Jagjaguwar.
Melhor esteve Bianca Scout. No auditório do Teatro Jordão, a artista de Manchester apresentou um espetáculo multidisciplinar que se espalha em diversas frentes, algures entre a intersecção da música com a performance e o ballet contemporâneo. Um percurso multidisciplinar que se desdobra tão rapidamente entre baladas para guitarra como em escalas ao piano e vídeo-arte literata. Pattern Damage foi o fio condutor de uma performance que se espraiou ainda pela ocasional synthpop de Marina Zispin (duo que forma com Martyn Reid) e por uma variedade de vozes, espectros e pianos fraturados, que aplica aqui e ali com recurso a um laptop. Impossível não traçar, então, paralelos com os multiversos de Lynch. Bianca é isso mesmo: surreal, inclassificável, desafiante.
Fotografia: Abner Mendes