No adeus ao Square, o grande desafio foi ter de escolher
No adeus ao Square, o grande desafio foi ter de escolher
No adeus ao Square, o grande desafio foi ter de escolher
No último dia do Square, o público viu-se obrigado a tomar decisões: render-se à beleza desarmante da veterana Maggie Nichols ou ser devorado pelas “cantigas do poço” do underground bracarense? Perder-se nas entropias vocais de Adelaide ou aventurar-se pela “performance hiper-rítmica” de Gushes e Matt Evans? Celebrar a cultura gnawa com o guembri de Asmaâ Hamzaoui ou submeter-se ao peso grind dos Psudoku? As possibilidades eram múltiplas e no sábado, todos os caminhos foram dar a Braga.
Num festival dedicado sobretudo ao talento emergente, foi com surpresa que encontramos a septuagenária Maggie Nichols no programa do último dia do festival. Aos 76 anos, a cantora, compositora e ex-dançarina de Edinburgh, Escócia apresentou-se ao piano, só ela e a sua voz reparadora, no lindíssimo salão do Museu Nogueira da Silva. Ela que, na década de 70, privou de perto com os Centipede de Keith Tippett, co-fundou o Grupo Feminista de Improvisação e percorreu a Europa em digressão com Lindsay Cooper. Ela, que cinco minutos antes do espetáculo em Braga, já se encontrava sentada de frente ao imponente piano de cauda do Museu, fitando o vazio de olhos cerrados enquanto exercitava os músculos com um sorriso enternecedor. Depois, quando tocou a primeira nota, soltou um suspiro e uma frase murmurada, sempre muito baixo, antes de dar início a um mantra vocal que rapidamente se transformou numa profusão de gritos quiméricos — Diamanda Galas e folk profunda da Inglaterra embrulhados num sonho assombrado, em tons de sépia e sob um pano de fundo pastoral. Figura contestatária, ativista e politizada, falou-nos de métodos de composição incomuns e de como “tudo é uma fonte de inspiração”: a primeira letra de um poema, a história do piano que sobreviveu aos destroços do Edward Said National Conservatory of Music em Gaza, a natureza e a inteligência artificial (quando utilizada ao serviço das mãos certas). Trouxe sapatos de sapateado e produziu ritmos com eles. Foi uma aprendizagem, e um bonito contraponto geracional.
No Mavy, a norte-americana Gushes protagonizou a última de quatro datas em Portugal, depois de espetáculos no Porto e em Lisboa. Consigo trouxe o percussionista Matt Evans, com quem repartiu parte do repertório, produzindo uma música de guitarras esparsa e insular que se faz a partir dos interstícios. A substância está mais no processo do que no resultado. A guitarra é quebrada e angular; a bateria é contida mas irrequieta. Há mais tensão do que libertação. Um salto de fé até ao desconhecido, com a escola de Chicago no norte.
A memória ainda fresca de Suspiro… deu origem a uma das maiores enchentes do Square, que recebeu o trio de Maria Reis para um concerto enxuto no Lustre. Máquina bem oleada, emoções à flor da pele e letras prontas a serem tatuadas na pele. Ainda mal tinham soado os primeiros acordes de “Estagnação” e já se avistavam casais abraçados, mãos encostadas ao peito e algumas lágrimas no rosto. Canções como “Lobisomem” e “Teoria da Conspiração” ganham nesta nova formação ladeada por Tomé Silva (bateria) e Francisco Couto (baixo) uma nova roupagem elétrica. “Coisas do Passado” assume uma forma mais acelerada e de recorte blues. De resto, escutamos lamentos, canções de amor e fados fodidos, antes de partirmos com tudo para o rock sem máculas de “Metadona”. Em fevereiro, os voos altos de Maria Reis projetam-na até ao outro lado do Atlântico, para uma digressão na banda de Panda Bear.
Nota ainda para a atuação da marroquina Asmaâ Hamzaoui, que protagonizou com o coro Bnat Timbouktou um impressionante momento de celebração na sala maior do Theatro Circo. São mulheres num mundo dominado por homens, e mantêm viva a herança musical dos gnawa, descendentes de escravos e comerciantes negros que se converteram ao Islão durante a Idade Média. No centro das operações está o guembri (espécie de alaúde com três cordas) de Hamzaoui, filha do mestre Rachid Hamzaoui, coordenando um quarteto de chocalhos (krakebs) preciso como os ponteiros de um relógio suíço. Um entendimento que se faz através da troca harmoniosa de olhares, existente na simbiose entre palco e plateia.
Fotografia: Lais Pereira