Um furacão chamado Fidju Kitxora atravessou o terceiro dia do Square, em Famalicão
Um furacão chamado Fidju Kitxora atravessou o terceiro dia do Square, em Famalicão
Um furacão chamado Fidju Kitxora atravessou o terceiro dia do Square, em Famalicão
Kit de bateria, um laptop e uma guitarra: Fidju Kitxora em formato banda, elétrico e delirante. Foi assim que o DJ-produtor – dissimulado na imagem de coletivo anónimo e galvanizador – se apresentou no mercado municipal de Famalicão, cidade que acolheu o programa de concertos diurnos do terceiro dia do festival Square. Racodja, álbum transformador que se serve da tecnologia e das possibilidades do estúdio para conferir novos vocabulários aos sons das diásporas africanas, como o funaná, o semba e o kuduro, foi o fio que conduziu o ato contínuo e ininterrupto que este “coletivo formado entre Cabo Verde e Lisboa” apresentou com admirável propriedade durante a melhor parte de uma hora, partindo de uma guitarra sinuosa para abrir caminho a uma torrente de vozes, espectros e ruídos amontoados num pano de fundo rítmico e intempestivo. Música física e indomesticável, representativa da memória colonialista, essa gangrena ferida aberta ainda por cicatrizar.
“Temos de pôr o pé na quinta marcha”, dizia-nos, dias antes, o cérebro criativo por trás desta força imparável a que se designou chamar de Fidju Kitxora (“filho que chora” em crioulo), durante uma conferência sobre as particularidades da criação costeira. “Vamos fazendo a nossa revolução silenciosa, conectando com as pessoas através da música, lutando de olhos abertos”, continuava ainda. Amplificado pela força motriz da bateria, o grupo pratica, em palco, uma música física e indomesticável, representativa da memória colonialista, essa ferida aberta por cicatrizar, entrelaçando as batidas pré-gravadas com a galhardia de um acordeão cheio de vida.
Ato ininterrupto e contínuo, como dizíamos, sem medo de se perder no abismo. Mesmo quando um “transeunte” que por ali passava irrompeu pelo público — e depois pelo palco. Não percebemos se foi orquestrado. O que é certo é que essa irrequieta figura (que mais tarde viemos saber tratar-se de Lukanu Mpasi, dançarino, performer e artista visual com algum lastro) rapidamente se tornou num protagonista.
As bases estão lançadas. Os voos altos de Racodja são apenas o começo. Fixem o nome: Fidju Kitxora.
Mulheres de garra, mulheres de força
Antes, no café-concerto da Casa das Artes de Famalicão, Mynda Guevara colocou os ritmos sincopados do trap e do sample drilleiro em diálogo com o peso da revolução, verbalizando com acutilância sobre temas urgentes como a justiça social e a violência racial e policial, mas também o culto da personalidade e o reconhecimento do sacrifício que imprime no seu trabalho. “Mulher de garra, mulher de força”, escutávamos no aúdio introdutório da performance, antes de partirmos para uma viagem que nos levou por África, Atlanta e Chicago em pouco mais de meia hora, sempre com a ponte 25 de Abril no horizonte.
No pequeno auditório, a eslovaca SJU foi recebida com algumas reticências no pequeno auditório da Casa das Artes. O som que a cantora-compositora pratica ao lado do teclista e produtor Jan Blumentrath não vai muito além de uma sombra pálida dos seus antecessores espirituais (Robyn, Erlend Øye, Röyksopp). Pop açucarada e dançável, vazia no conteúdo lírico (canções sobre cãezinhos, gatinhos e chocolate, com algumas platitudes auto-motivacionais à mistura) mas capaz de fazer mover o corpo sem grande esforço, intersectando as formas sintéticas do garage e do 2-step britânico com a sofisticação pop de pares contemporâneos como Chvrches e iamamiwhoami.
Incompreendida foi também a basca Verde Prato, que apresentou no anfiteatro da Fundação Cupertino Miranda, casa do surrealismo português, uma proposta com os pés um pouco mais assentes na realidade (mas que não destoaria nas colagens inquietantes de Cesariny e Cruzeiro Seixas). Sozinha em palco, munida apenas de um teclado, transportou o público que acorreu àquela sala para uma dimensão não muito distante do Black Lodge de David Lynch, suspendendo o tempo com uma pop económica e vanguardista, que combina de forma singular com as cadências do reggaeton e da bachata. No centro destas canções, tão falhas e vulneráveis, está a voz cálida e fraturada de Ana Arsuaga Arambarri, confortável na zona do desconforto.
E se a basca se atreveu a dar um pézinho nos ritmos latinos, a chilena Planta Carnívora atirou-se de pés juntos a um rap danado e sem censuras. Rappera com poucos recursos, mas atitude e carisma suficientes para conseguir sobressair e sair por cima dos defeitos visíveis, debitou com bravura e um despretensiosismo invejável sobre um manto de batidas quebradas e sintetizadores bojudos, movendo uma pequena multidão de novos convertidos.
O Square termina este sábado em Braga, com concertos de Maggie Nichols, Maria Reis, Ale Hop e Gushes.
Fotografia: Adriano Ferreira Borges