Inquieto, incansável, desassossegado: assim foi mais uma edição do Mucho Flow
Inquieto, incansável, desassossegado: assim foi mais uma edição do Mucho Flow
Inquieto, incansável, desassossegado: assim foi mais uma edição do Mucho Flow
“Restless”. Em tradução livre: inquieto, agitado, incansável. Tal é o espírito do Mucho Flow, que chegou ao fim de mais uma edição no dia 1 de novembro, mantendo-se fiel à premissa de descobrir e celebrar as novas fronteiras da música contemporânea.
Regressemos ao mote inicial: a inquietação, o desassossego, signos de um festival que tem no risco e no fascínio pelos tesouros bem guardados do presente os seus principais combustíveis. Movido pelo desejo de descobrir os sons do futuro, o evento organizado pela Revolve voltou a cumprir a premissa de projetar o amanhã a partir do presente, reafirmando o seu lugar no calendário de iniciativas dedicadas às produções contemporâneas, como o Club to Club (de Turim) ou o Mira (de Barcelona), com os quais partilha uma sensibilidade e espírito comuns. E alguns dos nomes em cartaz.
Este ano, passaram por Guimarães nomes como Los Thuthanaka, Maria Sommerville, YHWH Nailgun e Verraco, todos eles em destaque nos eventos supracitados. O encontro com os primeiros, sobre as tábuas do grande auditório do Centro Cultural Vila Flor (CCVF), foi um pequeno acontecimento. Aliança de sangue entre Chuquimamani-Condori e o irmão Joshua Chuquimia Crampton, os norte-americanos de ascendência boliviana são um caso sério de sucesso e adoração crítica em 2025, o ano em que o duo se estreou com um longa-duração homónimo, após vários anos de estrada e experimentação conjunta. Testemunhá-los em palco foi, por isso, um privilégio, um cerimonial rancheiro executado por duas figuras no topo das suas capacidades criativas.

Los Thuthanaka © João Octávio Peixoto
As coordenadas já haviam sido lançadas em relíquias como DJ E (2023) e Estrella Por Estrella (2024), mas ganham agora nova espessura e significado. Los Thuthanaka, o disco que mudou tudo, foi recriado com rigor quase ritual, entre camadas de som e fragmentos de voz que se sobrepõem até diluírem a própria forma das canções. Quando “Parrandita ‘Sariri Tunupa’” surge a meio do alinhamento, fá-lo como um abismo de ruído infernal, a pedir transcendência: projeções delirantes, paredes de som em lume brando, o público imerso numa inescapável sensação de vertigem. No fim, quando o tumulto se desfez num feixe de luzes e teclados luminosos, a guitarra de Joshua Crampton – irreconhecível, nova, ensurdecedora – emergiu como um clarão. A luz dos Los Thuthanaka iluminou-nos até não dar mais.
E se os irmãos Crampton fazem das tradições andinas uma forma de resistência, Brian Ennals & Infinity Knives usam os destroços do presente como munição. O que os primeiros exprimem através de instrumentais corporizados nos sons da diáspora latina, o duo de Baltimore traduz em verso, sem poesia nem subterfúgios. O concerto que apresentaram no Teatro Jordão, momentos antes, foi o mais abertamente político desta edição: um festim de barras afiadas, cuspidas com fúria e método, sem espaço para metáforas. Trump, Biden, Netanyahu. O ICE e as IDF. Ninguém escapa à verve virulenta dos norte-americanos. Felizmente, não se avistaram autoridades nas imediações.
Uma banda à parte
Há vários anos que a aposta do Mucho Flow recai no talento emergente, desafiando a lógica convencional de um festival encabeçado por nomes consagrados ou de peso histórico. Talvez por isso, a presença dos britânicos These New Puritans no último dia do festival tenha gerado alguma apreensão. Formado em 2006, o grupo chegou à cidade-berço doze anos depois de se ter estreado em palcos portugueses, com dois concertos em nome próprio — um no Porto e outro em Lisboa.
Hoje, com 37 anos, os gémeos Jack e George Barnett caminham para duas décadas de um percurso singular, feito de metamorfoses e reinvenções. Almas velhas em corpos novos, são discípulos discretos de um legado que atravessa o de invisíveis como Mark Hollis, Scott Walker ou Dead Can Dance. O mais recente capítulo na história dos ingleses, Crooked Wing, disco que motivou a passagem do grupo pelo festival vimaranense, reafirma essa condição: um projeto em permanente mutação, onde cada canção acrescenta uma nova camada, uma nova cor, uma outra inquietação. A máquina está bem oleada e faz bom uso do tempo, recusando o conforto da repetição. Os números podem sugerir uma banda esquecida, mas estão longe de estar parados no tempo, não se resignando à condição de culto. Em vez disso, expandem o seu território em largura e comprimento, desafiando géneros e expectativas.
Em palco, o som que o grupo apresenta é físico, denso. A bateria, pungente e industrial, impõe o ritmo; o piano, os teclados e a percussão — que inclui correntes, vibrafone e tubos metálicos — erguem uma arquitetura sonora austera. Os fatos negros e o ambiente contido acentuam a gravidade da performance. “We Want War”, canção que marcou um antes e um depois na carreira dos britânicos, não ficou de fora do alinhamento, surgindo como elo de ligação entre o passado e o presente dos irmãos Barnett — um lembrete do caminho percorrido e do rumo que ainda procuram seguir. No final, “Organ Eternal” ergue-se como um ciclo que se renova sobre si próprio: circular, hipnótico, de uma beleza contida e desarmante — tensão e harmonia em perpétuo movimento. À medida que o tema se prolonga, os elementos da banda vão-se retirando um a um do palco, num gesto que espelha o despir progressivo da canção, como um eco que resiste em extinguir-se.

These New Puritans © João Octávio Peixoto
E se os These New Puritans preservam o legado mudo dos Talk Talk, a irlandesa Maria Sommerville mantém viva a chama etérea dos Cocteau Twins e This Mortal Coil. Não surpreende, por isso, que o seu segundo álbum, Luster, tenha saído pela mesma 4AD que nos deu pérolas como Head Over Hills e It’ll End in Tears. Na sua estreia em terras lusas, a cantora-compositora de Galway subiu ao palco do CCVF para um concerto a meia-luz, acompanhada por Sean Being (no baixo) e Henry Earnest (bateria). Juntos formaram um trio coeso e incorruptível, empenhado na missão de interpretar canções desoladoras que fundem os excessos do shoegaze com o lirismo pastoral da costa de Connemara, cenário que inspirou e acolheu parte da gravação do novo disco.
Algures entre a intimidade espectral de Midwife e a folk danificada de Grouper, ergueu-se um momento de serenidade rara, contraponto perfeito à inquietação estética e espiritual do festival que o acolheu. Letárgico sem o ser, o concerto tomou forma entre fumos e nevoeiro, com o público envolto numa parede tórrida de som e ruído. A música – circunspecta, arrastada, sonhadora – fluía como uma massa pastosa de distorção e reverberação, espraiando-se por entre crescendos de construção pós-rock que não elevam nem fazem levitar; antes pelo contrário, afundam-nos. Inexplicável, portanto, o efeito que nos mantém ali, sem conseguir deixar aquele lugar.
A turma dos desassossegados
Antes, nas galerias do Teatro Jordão, duas propostas distintas mas vinculadas por um mesmo impulso de novidade. Os norte-americanos Body Meat, primeiro, apresentaram-se sob um formato económico, em duo, combinando caixas de ritmo, eletrónica e voz numa só respiração. A liderar este arsenal pós-pop estava o cantor-produtor Christopher Taylor, cérebro por trás do projeto que formou em Denver, em 2016, tendo editado seis álbuns desde então. O mais recente, Starchris, foi lançado em 2024. Foi esse o mote da sua breve passagem pelo festival, que não terá ultrapassado os 35 minutos de duração, entregando um conjunto de canções que desafiam classificação — música realmente experimental, que não descura de um vincado apelo pop.
Já os compatriotas YHWH Nailgun, oriundos de Nova Iorque, partilham do mesmo desejo de quebrar com o instituído, mas levam essa intenção um passo mais adiante. Têm um ingrediente secreto: o baterista Sam Pickard, exímio na utilização de um kit de bateria singular, equipado de um rototom, isto é, um tambor de percussão sem casco que usa para esticar os limites da percussão num contexto rock de banda. A isto soma-se uma série de outras idiossincrasias. Entre elas, a presença magnética do vocalista Zack Borzone, cuja entrega transforma cada canção num pequeno campo de batalha emocional, fixando o público com um olhar vazio e ameaçador, para depois se desdobrar numa coreografia de movimentos espamódicos, enquanto uma tempestade sonora que combina caos industrial, polirritmos e modulares se prolonga numa dança viva, física e irrequieta.

YHWH Nailgun © João Octávio Peixoto
Igualmente indecifráveis mas incertos no rumo que pretendem seguir estão Lauren Duffus e Tracey, dois projetos ancorados no R&B mas hesitantes quanto à forma de o expandir. O corpo de obra é curto e excita, mas está longe de traçar um arco com princípio meio e fim. Melhor esteve feeo, no dia zero do festival, apresentando uma música de destino incerto que se revela no gesto cuidado dos seus intérpretes, que se apresentam numa postura insular de parte a parte.
Sob um jogo invertido de luzes brancas, Theodora Laird e Caius Williams apresentaram um serão austero de drones, ambientes e gravações de campo, entrelaçando-os com blocos dissonantes de guitarra, graves subterrâneos e espectros de vozes translúcidas, que manipulam analogicamente através de fita. A voz de Laird é discreta e prudente, fazendo tangentes com as de Kelela e Beth Gibbons. Tudo na performance é frágil, fraturante, impossivelmente contido. Tudo é tão falho, com fendas e feridas expostas. E, no entanto, tão belo, íntimo e comovente.
Considerações finais
O nome Mucho Flow está cada vez mais consolidado. A premissa do festival vimaranense enquanto montra do presente – e, por arrasto, do futuro – da música contemporânea é cada vez mais uma certeza. O projeto ganhou corpo, soube encontrar o seu espaço e afirmar uma identidade. O alargamento do evento a dois dias, em 2019, a propósito do décimo aniversário da Revolve — editora e promotora responsável pela organização do festival desde a sua fundação, em 2013 — confirmou-se como um passo acertado. A questão agora é perceber se a expansão para três dias, com a adição do chamado “dia zero”, se justifica como aposta sustentável ou se se trata de um extra para estimular o turismo, em particular o contingente vindo de Espanha, que já faz parte da paisagem do festival.
Há, porém, outros pontos a reter. Salvo raras exceções, como os espetáculos de These New Puritans e Maria Sommerville, a maioria dos concertos ficou marcada pela sua brevidade, com a maioria das atuações a não ultrapassar a marca dos 40 minutos. É natural, tendo em conta o carácter emergente da programação, mas fica a impressão de que vários artistas beneficiaram de mais tempo para mostrar o seu verdadeiro potencial. O caso mais evidente terá sido o de Los Thuthanaka: quatro temas em cerca de 40 minutos, num concerto que, apesar do destaque dado no principal palco do recinto, em horário nobre, deixou a sensação de que podia ter ido mais longe. Nick Léon, um dos nomes mais estimulantes da nova eletrónica latina, também não terá ido além dessa marca temporal.
Apesar disso, o Mucho Flow continua a distinguir-se pela coragem e pelo alcance das suas escolhas. Ano após ano, a Revolve tem apresentado alguns dos cartazes mais ecléticos e estimulantes do país, colocando Guimarães no mapa das experiências sonoras mais relevantes da península. A edição deste ano não foi exceção, mesmo com a existência de imprevistos que escapam ao controlo da organização (o cancelamento da cantora folk Hannah Frances foi particularmente sentido).
O Mucho Flow mantém-se, assim, como um dos espaços mais desafiantes e vivos do panorama nacional. Resta que essa inquietação se converta em afirmação, projetando o festival não apenas como espaço de descoberta, mas como território de consolidação artística.
Texto: Filipe Costa
Fotografia: João Octávio Peixoto


