Filho da Mãe já é um sedimento na música portuguesa – ao longo
dos anos, o rio que Rui Carvalho evoca com a própria música criou o
pós-hardcore dos If Lucy Fell, os
caos acústicos de Palácio e Cabeça e o Mergulho no pouco convencional, não esquecendo ainda colaborações
com artistas como Ricardo Martins.
Apesar da jornada ter sido longa e variada, o guitarrista de Lisboa regressa à
complexidade que usou para fazer o seu primeiro álbum a solo, Palácio, e infunde-lhe uma dose extra de
americana e primitivismo.
Agua Má – o resultado de uma residência na Madeira – é já o quarto álbum de estúdio que Filho
da Mãe edita em nome próprio em apenas 7 anos e revela-se como um exercício
mais sóbrio sobre velhas tendências. Melodias e harmonias bem pensadas são
reforçadas por uma produção minimal, em que as respirações que pautam e marcam
o compasso humano de cada tema são tão musicais como a música em si. Rui
Carvalho continua a impingir a sua impaciência musical nas pequenas variações
que incute às frases que constrói à volta de cada tema, sendo possível, como
sempre, respirar a mesma substância que certamente também terá inspirado Norberto Lobo, suada pelos grandes
nomes da guitarra primitiva de John
Fahey, Robbie Basho e Sandy Bull, entre outros.
Vera Marmelo © |
Surpreendentemente,
a empunhar o típico instrumento mais cliché possível e a fazer apenas uso dele,
Filho da Mãe consegue ser ainda dos
artistas portugueses mais refrescantes da atualidade, não precisando de
esquemas complexos ou de sonoridades caricatas para fazer render as 6 cordas
que enchem salas e corações. Por todo o disco há uma sensibilidade musical
característica, ressoando ao logo da primeira metade de Água Má. Somos levados
por linhas orelhudas que, por breves instantes, se ausentam para abrirem
desarmonias – um caso catedrático é “Não,
não danço“, com uma melodia quasi-pop, a tornar imprevisível a agradável sensação de estranheza que acordes mais
dissonantes causam.
“Perseguição de bananas” marca a entrada no lado mais ambicioso do disco.
Abandona-se o pop mas retém-se a sensibilidade,
com o “pós-folk” de “Camelo nas Levadas”, o dedilhar
incessante e incansável de “Poncha como o
vento“, e as reverberações exageradas e sinuosas de “Marraram as ondas, partiu-se o pontão“, uma epopeia em menos de 7
minutos àquele que é Filho da Mãe – um
tema que nos deixa ao abandono para mais tarde nos vir buscar, um tema que é
perder para de novo encontrar, um tema que castiga para mais tarde abraçar e
que se destaca como o melhor momento deste disco. De uma maneira pouco comum, “Casa”, a última “música” do
disco é talvez a que nos soa mais familiar, uma gravação de campo com lugar que
chegue para o íntimo.
Como não há
maneira de o pôr sem soar bajulador, digo-o de uma só vez: este é o melhor
trabalho que Rui Carvalho, em todas as suas incarnações, produziu. É
simultaneamente sensível e agressivo, com uma premonição sobre-humana para
saber o que é preciso em cada momento para que as frases musicais se
concretizem em temas concretos. Esta água pode não ser boa de nome, mas faz-nos
tão bem.