Reportagem: Milhões de Festa [6 e 7 de setembro]

Reportagem: Milhões de Festa [6 e 7 de setembro]

| Setembro 15, 2018 2:06 pm

Reportagem: Milhões de Festa [6 e 7 de setembro]

| Setembro 15, 2018 2:06 pm


Em 2018, temeu-se o fim do Milhões de Festa. O festival foi
uma das maiores incógnitas do circuito festivaleiro português durante boa parte
do ano (estávamos em junho quando a organização anunciou as datas oficiais
daquela que seria uma das mais imprevisíveis edições do festival), deixando
qualquer um com o receio de nunca mais poder assistir a maior festa anual que o pequeno canto minhoto teve a oportunidade de experienciar.
Realizar um festival em menos de três meses não é pera doce,
criar uma das festas mais intensas e intrigantes do ano nesse mesmo espaço de
tempo muito menos. Numa edição que ficará para a história, o festival dedicado
à descoberta da melhor produção contemporânea dos quatro cantos do globo regressou
às margens do Cávado para quatro dias recheados onde a tradição voltou a ser,
na verdade, o que era, e ainda bem.
Em baixo, fiquem com o registo escrito e fotográfico dos dois primeiros dias do festival que, pela primeira vez, se realizou em setembro ao
invés do habitual mês de julho.

700 Bliss
Como tem vindo a ser hábito, o primeiro dia do Milhões voltou a abrir as portas ao público. Do programa musical para este primeiro dia, ou dia 0 como se tem vindo a apelidar, apontam-se as performances de 700 Bliss e Mauskovic Dance Band, antecedidas apenas pelos concertos do habitual Ensemble Insano e dos portugueses Indignu (não esquecendo as sempre imprevisíveis sessões do coletivo portuense Favela Discos, no palco Taina).
As primeiras são Camae Ayewa (Moor Mother) e Zubeyda
Muzeyyen (DJ Haram), duo proveniente da Filadélfia que se apresenta em conjunto
sob o moniker 700 Bliss. 700 Spa é o primeiro registo oficial do duo, um EP
editado em fevereiro pela Halcyon Veil (do produtor norte-americano Rabit) em
conjunto com a Don Giovanni Records que recebeu maior destaque na performance
executada nesta primeira noite. As duas proporcionaram um poderoso festim de
rimas e batidas aguçadas, juntando as melhores produções de cariz
ruidoso e desconstruído de DJ Haram à poesia interventiva e revolucionária de
Moor Mother, que regressou ao festival após uma abrasiva performance na edição
transacta. Do groove apurado dos beats iniciais aos temas que integram o EP, intercalados
apenas por alguns momentos de puro flirt noise, as 700 Bliss apresentaram um set
irrepreensível onde a política e o espírito libertador da música de dança se
uniram para uma performance poderosa que só encerraria com a contagiante “Ring
The Alarm”. 

The Mauskovic Dance Band

A fechar o programa de concertos desta primeira noite
estiveram os The Mauskovic Dance Band, o coletivo sediado em Amsterdão liderado
pelo músico e produtor holandês Nicola Mauskovic. Membro fundador dos Altın Gün
e uma das caras-metades dos Bruxas (duo que mantém com Jacco Gardner), Nicola
encabeça este curioso projeto que funde música tradicional colombiana, afrobeat e sonoridades ocidentais que vão da no wave à
electrónica mais radiante. Down In The Basement, o EP de estreia editado pela
Soundwave Records, materializa-se ao vivo com a presença de Donnie Mauskovic na
voz, Em Nix Mauskovic na guitarra e percursão, Mano Mauskovic no baixo, e ainda
o mítico produtor colombiano Juan Hundred na bateria. Sem grandes pausas entre canções,
a banda percorreu uma linhagem rítmica contagiante, com baixo e batuque a
marcar um compasso hipnótico e viciante que impediu qualquer membro da plateia
de tentar um ou dois passos de dança.



Milhões de Festa 2018: Dia 0

O segundo dia de festival, o primeiro propriamente dito, abriu as portas bem cedo com concertos no Taina e na piscina. Pelas 15h45, o power trio russo Mirrored Lips apresentou-se pela primeira vez em Portugal para uma surpreendente demonstração de boa música punk. Cantada na língua-mãe, os Mirrored Lips são uma lufada de ar fresco para fãs do punk mais imprevisível, com riffs matemáticos a acompanhar os versos de Lyusya. Apesar da barreira linguística, não foi difícil retirar o sumo desta performance abrasiva e eletrizante, que iniciou a tarde da piscina com dose reforçada de energia. No seguimento deste serão elétrico estiveram os espanhóis Grabba Grabba Tape. Após um hiato de 10 anos, o duo madrileno está de regresso aos concertos e às edições e passou pela piscina nas suas vestes tipicamente extravagantes (uma espécie de caretos de Podence em versão abelha Maia) para um desfile de canções curtas e certeiras. Dos 10 minutos de concerto que assistimos, que no caso deste duo corresponde a umas 5 canções, pudemos comprovar a força dos Grabba Grabba Tape como caóticos criadores sónicos, aliando furiosos compassos de bateria às vozes sintetizadas por vocoder.

Mirrored Lips
Seguimos para um dos poucos concertos que assistimos no palco Taina: Peter Gabriel Duo. Este entusiasmante duo junta duas das maiores forças da música jazz experimental portuguesa. Gabriel Ferrandini e Pedro Sousa formam um dos projetos mais vitais da música do género executada em Portugal, contando no seu repertório colaborações com Thurston Moore e Alex Zhang Hungtai, com quem mantêm uma respeitosa relação. Ao vivo, tal como em estúdio, Ferrandini e Sousa mantêm um diálogo vivo e simbiótico entre o uso complexo da bateria e precursão do primeiro com o saxofone embriagado do segundo, no seu estado mais puro e libertino. Uma demonstração sóbria, mas carregada de técnica e virtuosismo por parte de uma das duplas mais entusiasmantes da música improvisada.
Peter Gabriel Duo
De volta ao palco principal, eis que chegou a vez do aguardado regresso do portento finlandês Circle a Portugal. Depois da estreia atípica no Teatro Sá da Bandeira, em 2009 (a abrir para ISIS), a banda de difícil categorização regressou finalmente ao nosso país para uma atuação no festival que tanto os venera. Com o mais recente Terminal a servir de mote de apresentação, os Circle demonstraram a força e o valor de uma das bandas de culto mais divisivas da música pesada. Apelidar a sua música como extrema ou pesada é, na verdade, discutível. Uma pesquisa na diagonal pela sua extensa discografia permite-nos perceber a infinidade de estilos que esta banda percorre, desde o krautrock ao space rock, passando por composições que têm tanto de psicadélico quanto progressivo. A performance no Milhões de Festa foi prova disso mesmo, um viagem extravagante por sonoridades e abordagens imprevisíveis que lembram tanto Maiden como The Stooges, com compassos de bateria que bebem tanto da música extrema (blast beats e afins) como da kosmische alemã. 

Circle
Autênticos destruidores das convenções que assolam o espectro da música rock, os Warmduscher seguiram-se no palco Lovers para mais uma performance recheada de adrenalina. O coletivo que junta Clams Barker a Saul Adamczewski dos Fat White Family, assim como uma série de outros membros dos Paranoid London, Childhood e Insecure Men, fez a sua estreia por terras lusas com uma eletrizante performance no festival minhoto. Do alinhamento constaram os temas de Whale City, o segundo e mais recente disco que deu mote à apresentação, não deixando de parte alguns dos temas que integram o disco de estreia de 2015, Khaki Tears. Sem Adamczewski em palco, os Warmduscher conseguiram, mesmo assim, uma atuação infalível que demonstra o espírito e a irreverência de um grupo que não sabe jogar dentro das regras.
Warmduscher
O momento alto da noite guardava-se para o fim, com Squarepusher a encerrar o palco principal. Sob o estatuto merecido de cabeça de cartaz, Squarepusher, ou Thomas Jenkinson, estreou-se em Barcelos para a sua primeira atuação em Portugal. Se em 2017 tivemos a oportunidade de assistir a um dos nomes maiores da IDM de 1990, com a estreia nacional de Aphex Twin no NOS Primavera Sound, em 2018 foi a vez de experienciar mais um momento de pura catarse digital. Em cerca de uma hora, Jenkinson explorou as sonoridades frenéticas do drill and bass e breakbeat dos temas que integram o mais recente disco Demogen Furies, um regresso à forma após décadas de experimentação que vê o produtor britânico aproximar-se (ainda que discretamente) da EDM mais futurista. Envergando a típica máscara de LEDs, o autor de “Come On My Selector” serviu-se ainda de uma forte componente visual, com dois ecrãs convexos sobrepostos a proporcionar um verdadeiro delírio de luzes, cor e alta tecnologia.
Squarepusher
Milhões de Festa 2018: Dia 1
Fotogaleria completa aqui.

Texto: Filipe Costa
Fotografia: Ana Carvalho dos Santos
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