Em 2018, temeu-se o fim do Milhões de Festa. O festival foi
uma das maiores incógnitas do circuito festivaleiro português durante boa parte
do ano (estávamos em junho quando a organização anunciou as datas oficiais
daquela que seria uma das mais imprevisíveis edições do festival), deixando
qualquer um com o receio de nunca mais poder assistir a maior festa anual que o pequeno canto minhoto teve a oportunidade de experienciar.
Realizar um festival em menos de três meses não é pera doce,
criar uma das festas mais intensas e intrigantes do ano nesse mesmo espaço de
tempo muito menos. Numa edição que ficará para a história, o festival dedicado
à descoberta da melhor produção contemporânea dos quatro cantos do globo regressou
às margens do Cávado para quatro dias recheados onde a tradição voltou a ser,
na verdade, o que era, e ainda bem.
Em baixo, fiquem com o registo escrito e fotográfico dos dois primeiros dias do festival que, pela primeira vez, se realizou em setembro ao
invés do habitual mês de julho.
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700 Bliss |
Como tem vindo a ser hábito, o primeiro dia do Milhões voltou a abrir as portas ao público. Do programa musical para este primeiro dia, ou dia 0 como se tem vindo a apelidar, apontam-se as performances de 700 Bliss e Mauskovic Dance Band, antecedidas apenas pelos concertos do habitual Ensemble Insano e dos portugueses Indignu (não esquecendo as sempre imprevisíveis sessões do coletivo portuense Favela Discos, no palco Taina).
As primeiras são Camae Ayewa (Moor Mother) e Zubeyda
Muzeyyen (DJ Haram), duo proveniente da Filadélfia que se apresenta em conjunto
sob o moniker 700 Bliss. 700 Spa é o primeiro registo oficial do duo, um EP
editado em fevereiro pela Halcyon Veil (do produtor norte-americano Rabit) em
conjunto com a Don Giovanni Records que recebeu maior destaque na performance
executada nesta primeira noite. As duas proporcionaram um poderoso festim de
rimas e batidas aguçadas, juntando as melhores produções de cariz
ruidoso e desconstruído de DJ Haram à poesia interventiva e revolucionária de
Moor Mother, que regressou ao festival após uma abrasiva performance na edição
transacta. Do groove apurado dos beats iniciais aos temas que integram o EP, intercalados
apenas por alguns momentos de puro flirt noise, as 700 Bliss apresentaram um set
irrepreensível onde a política e o espírito libertador da música de dança se
uniram para uma performance poderosa que só encerraria com a contagiante “Ring
The Alarm”.
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The Mauskovic Dance Band |
A fechar o programa de concertos desta primeira noite
estiveram os The Mauskovic Dance Band, o coletivo sediado em Amsterdão liderado
pelo músico e produtor holandês Nicola Mauskovic. Membro fundador dos Altın Gün
e uma das caras-metades dos Bruxas (duo que mantém com Jacco Gardner), Nicola
encabeça este curioso projeto que funde música tradicional colombiana, afrobeat e sonoridades ocidentais que vão da no wave à
electrónica mais radiante. Down In The Basement, o EP de estreia editado pela
Soundwave Records, materializa-se ao vivo com a presença de Donnie Mauskovic na
voz, Em Nix Mauskovic na guitarra e percursão, Mano Mauskovic no baixo, e ainda
o mítico produtor colombiano Juan Hundred na bateria. Sem grandes pausas entre canções,
a banda percorreu uma linhagem rítmica contagiante, com baixo e batuque a
marcar um compasso hipnótico e viciante que impediu qualquer membro da plateia
de tentar um ou dois passos de dança.
O segundo dia de festival, o primeiro propriamente dito, abriu as portas bem cedo com concertos no Taina e na piscina. Pelas 15h45, o power trio russo Mirrored Lips apresentou-se pela primeira vez em Portugal para uma surpreendente demonstração de boa música punk. Cantada na língua-mãe, os Mirrored Lips são uma lufada de ar fresco para fãs do punk mais imprevisível, com riffs matemáticos a acompanhar os versos de Lyusya. Apesar da barreira linguística, não foi difícil retirar o sumo desta performance abrasiva e eletrizante, que iniciou a tarde da piscina com dose reforçada de energia. No seguimento deste serão elétrico estiveram os espanhóis Grabba Grabba Tape. Após um hiato de 10 anos, o duo madrileno está de regresso aos concertos e às edições e passou pela piscina nas suas vestes tipicamente extravagantes (uma espécie de caretos de Podence em versão abelha Maia) para um desfile de canções curtas e certeiras. Dos 10 minutos de concerto que assistimos, que no caso deste duo corresponde a umas 5 canções, pudemos comprovar a força dos Grabba Grabba Tape como caóticos criadores sónicos, aliando furiosos compassos de bateria às vozes sintetizadas por vocoder.
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Mirrored Lips |
Seguimos para um dos poucos concertos que assistimos no palco Taina: Peter Gabriel Duo. Este entusiasmante duo junta duas das maiores forças da música jazz experimental portuguesa. Gabriel Ferrandini e Pedro Sousa formam um dos projetos mais vitais da música do género executada em Portugal, contando no seu repertório colaborações com Thurston Moore e Alex Zhang Hungtai, com quem mantêm uma respeitosa relação. Ao vivo, tal como em estúdio, Ferrandini e Sousa mantêm um diálogo vivo e simbiótico entre o uso complexo da bateria e precursão do primeiro com o saxofone embriagado do segundo, no seu estado mais puro e libertino. Uma demonstração sóbria, mas carregada de técnica e virtuosismo por parte de uma das duplas mais entusiasmantes da música improvisada.
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Peter Gabriel Duo |
De volta ao palco principal, eis que chegou a vez do aguardado regresso do portento finlandês Circle a Portugal. Depois da estreia atípica no Teatro Sá da Bandeira, em 2009 (a abrir para ISIS), a banda de difícil categorização regressou finalmente ao nosso país para uma atuação no festival que tanto os venera. Com o mais recente Terminal a servir de mote de apresentação, os Circle demonstraram a força e o valor de uma das bandas de culto mais divisivas da música pesada. Apelidar a sua música como extrema ou pesada é, na verdade, discutível. Uma pesquisa na diagonal pela sua extensa discografia permite-nos perceber a infinidade de estilos que esta banda percorre, desde o krautrock ao space rock, passando por composições que têm tanto de psicadélico quanto progressivo. A performance no Milhões de Festa foi prova disso mesmo, um viagem extravagante por sonoridades e abordagens imprevisíveis que lembram tanto Maiden como The Stooges, com compassos de bateria que bebem tanto da música extrema (blast beats e afins) como da kosmische alemã.
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Circle |
Autênticos destruidores das convenções que assolam o espectro da música rock, os Warmduscher seguiram-se no palco Lovers para mais uma performance recheada de adrenalina. O coletivo que junta Clams Barker a Saul Adamczewski dos Fat White Family, assim como uma série de outros membros dos Paranoid London, Childhood e Insecure Men, fez a sua estreia por terras lusas com uma eletrizante performance no festival minhoto. Do alinhamento constaram os temas de Whale City, o segundo e mais recente disco que deu mote à apresentação, não deixando de parte alguns dos temas que integram o disco de estreia de 2015, Khaki Tears. Sem Adamczewski em palco, os Warmduscher conseguiram, mesmo assim, uma atuação infalível que demonstra o espírito e a irreverência de um grupo que não sabe jogar dentro das regras.
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Warmduscher |
O momento alto da noite guardava-se para o fim, com Squarepusher a encerrar o palco principal. Sob o estatuto merecido de cabeça de cartaz, Squarepusher, ou Thomas Jenkinson, estreou-se em Barcelos para a sua primeira atuação em Portugal. Se em 2017 tivemos a oportunidade de assistir a um dos nomes maiores da IDM de 1990, com a estreia nacional de Aphex Twin no NOS Primavera Sound, em 2018 foi a vez de experienciar mais um momento de pura catarse digital. Em cerca de uma hora, Jenkinson explorou as sonoridades frenéticas do drill and bass e breakbeat dos temas que integram o mais recente disco Demogen Furies, um regresso à forma após décadas de experimentação que vê o produtor britânico aproximar-se (ainda que discretamente) da EDM mais futurista. Envergando a típica máscara de LEDs, o autor de “Come On My Selector” serviu-se ainda de uma forte componente visual, com dois ecrãs convexos sobrepostos a proporcionar um verdadeiro delírio de luzes, cor e alta tecnologia.
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Squarepusher |
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Fotografia: Ana Carvalho dos Santos