LARME BLANCHE
Demain Est Mort

| Fevereiro 27, 2020 3:30 am

Demain Est Mort | Unknown Pleasures Records | janeiro de 2020
8.0/10

O projeto de pop militar LARME BLANCHE – um dos mais sinistros e incógnitos projetos da atualidade a atuar nos campos da darkwave e música sintetizada – lançou o mês passado um trabalho bastante interessante para os fãs das ondas musicais mais negras, Demain Est Mort. Pouco se sabe sobre LARME BLANCHE. O projeto sediado em Paris traz, na identidade, um mistério subliminar que se marca grande na imagem que projeta na mente do consumidor: uma máscara, um homem e uma eletrónica ora cativante, ora densa e imersiva, que viaja num horizonte amplo de espectros sonoros. 


Demain Est Mort é o primeiro trabalho longa-duração na carreira do artista e torna-se uma edição ainda mais especial se tomarmos em consideração que vem acrescida de um acontecimento singular: em seis anos de atividade como editora, esta é a primeira vez que a Unknown Pleasures Records “assina contrato” com um artista cuja identidade real é desconhecida. A razão, incorpora todo um enriquecido mundo lírico – lúcido e desiludido – que se envolve numa poesia e atitude irreverente. Se pouco há para apresentar sobre a história do artista fixemo-nos então na obra para descobrir mais. 


A abrir espaço sonoro com ambiências bastante Boiler Room-ish em “Paris La Nuit” – aquele que é talvez um dos hits deste novo disco -, LARME BLANCHE começa por mostrar um retrato bastante real da decadência da nova Paris: “Paris la nuit, tu sens la mort, le crack et l’ennui“. Às escuras da luz do dia a cidade é um pedaço narcótico de tédio, autodestruição e abatimento social. É pois, neste cenário de sinceridade sinistra auspiciosamente engenhosa e esbatida pela eletrónica que, LARME BLANCHE começa por consciencializar o ouvinte que Demain Est Mort é um disco mais pesado que aparenta e Paris não é uma cidade tão linda como os postais retratam. 




Prosseguimos ritmos com “88Mph” e LARME BLANCHE aproveita a deixa para fazer cair um pouco da máscara: “Je suis un romantique, dépressif // J’aime Joy Division et le spleen des Smiths // Je suis un androgyne compulsif // David Bowie jusqu’au bout de ma vie // Je suis un guerrier subversif (…) J’ai le Velvet dans le sang Et Suicide dans le cœur“. OK, então até agora temos: LARME BLANCHE vive numa Paris deturpada, gosta de Joy Division, Smiths, David Bowie, Suicide, Velvet Underground, Death In June, NON e Sol Invictus é um romântico deprimido, guerreiro, compulsivo e compõe grandes malhas com caixas de ritmos e conjugações sonoras altamente aditivas. 


Seguem-se, portanto duas potentes faixas envoltas em ritmos abrasivos e atmosferas altamente poderosas que nos permitem explorar mais: “Nibiru” – uma faixa que aborda o quão destrutivo o amor pode ser – e “Taiga” – um reflexo sobre a crueldade humana e a necessidade de agir perante um mundo em decadência: “C’est le malaise tout autour de moi // Culture du vide et de l’ego roi” (…) Alors que se profile la sixième extinction de masse // Il m’apparaît de plus en plus clairement et simplement // Que je préfère mon chien //  À tous ces putains d’humains!“. LARME BLANCHE não quer saber da extinção da raça humana, mas o bem-estar e beleza da natureza e dos animais são preocupações claras. Contemporâneo no som e na atitude. 




Com “L’Obscurité De Tes Doigts” a fazer-se escutar no alinhamento somos também expostos a um novo ambiente sonoro e traços de personalidade que LARME BLANCHE até então não nos tinha mostrado evidentes. Há uma força explorativa de sonoridades industriais num tema absolutamente experimental e de produção rigorosa. O mais curioso é que esta foi a primeira música que o artista da máscara compôs para este projeto. Foi pois, neste ambiente de sintetizadores distorcidos e surrealistas que LARME BLANCHE quis deixar uma das suas influências no cinema – Gaspar Noé – especialmente no filme Enter The Void, que o próprio afirma ser o seu filme preferido de todos os tempos. Nesta onda e, inspirado por correntes como a EBM e o techno mais dark, LARME BLANCHE segue viagem com “Seppuku” – a vestir-se de uma sonoplastia inicial que inclui samples de uma gravação de voz de Yukio Mishima. Um tema profundamente existencialista que fala sobre escolhermos o nosso próprio destino, com base em convicções e ideiais: “Je préfère mourir debout // Que m’agenouiller devant // Tous ces fous“. Pois bem, chegamos assim à conclusão de que LARME BLANCHE é um homem de ideais e prefere morrer de pé do que ajoelhar-se perante loucos. Um dos grandes! 


Mas não ficamos por aqui no que toca a surpresas. Na sequência do alinhamento rapidamente somos emancipados por todo aquele lado clássico presente em “Overdose D’Epicure”, um tema profundamente enriquecido pela presença espontânea do saxofone de Quentin Dubarry a conduzir este tema a um arrojo estético altamente apaixonante. Uma das maiores pérolas deste Demain Est Mort e mais um tema a trazer algumas referências cinematográficas à mistura, nomeadamente o Blue Velvet de David Lynch. Antes da despedida, o tema mais político de todo este trabalho, “Assez!”. A abrir com uma atmosfera retrowave meia marciana, pode ouvir-se posteriormente na letra, “Quand rouge et brun, virent au jaune // Paris cramé, Paris calciné“, uma clara referência à crise dos coletes amarelos e aos caos que emerge quando dois ideias extremistas entram em conflito. 




Por fim, “Le Dernier Soupir” esculpe, no meio de camadas eletrónicas psicologicamente densas e de aparência industrial, um sample vocal introdutório a fazer lembrar o clássico monólogo de Lucky na peça En attendant Godot. Para esclarecer qualquer mal-entendido o início de “Le Dernier Soupir” é construído ao redor do discurso de André Malraux, feito no funeral de Jean Moulin, um herói francês da II Guerra Mundial. A faixa mais longa do disco abre com um clima tenso que acaba por culminar num final incendiário, especialmente naquela mudança abrasiva de ritmo sentida por volta dos quatro minutos de avanço, onde as caixas de ritmo e as pinceladas da minimal-wave voltam a estar em foco. É, neste ambiente de vibrações altamente propícias à dança, que se termina a análise de todas as informações recolhidas sobre LARME BLANCHE: sinistro, interessante, romântico deprimido, idealista e claro, um pouco revolucionário no carácter. 


Demain Est Mort é um disco que mostra mais sobre o projeto parisiense do que o seu rosto poderia alguma vez revelar. Ao longo de nove músicas ora estimulantes, ora desafiantes e construídas ao redor da exploração de uma eletrónica da vanguarda, LARME BLANCHE apresenta-nos todo um lado eclético e sem limites que surpreende essencialmente por nunca cair na monotonia. Demain Est Mort é um álbum que foge às conceções tendencialmente estilizadas na eletrónica influenciada por correntes obscuras, sendo um bom pontapé de avanço para uma carreira musical que só agora começa a ganhar formas. Se nestas nove músicas já sabemos que LARME BLANCHE além de misterioso é um projeto extremamente interessante e repleto em referências culturais, certamente que as futuras edições trarão mais surpresas. Até lá é consumir Demain Est Mort.




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