Scribbling | Ubuntu Music | março de 2022
Conduzir à noite é, para alguns, o momento ideal de descompressão, de reflexão nas decisões que nos vão guiando ao longo da vida. É um momento só nosso e, muitas das vezes, para a experiência poder ser apreciada na sua plenitude, faz-se acompanhar por uma banda sonora. Scribbling, trabalho que aglutina sob o mesmo teto artístico Harry Christelis e Pedro Velasco, é para mim um disco que está fortemente associado a estas deambulações notívagas, de acalmia das madrugadas, o instante em que finalmente podemos descansar após um dia de trabalho atribulado.
Harry Christelis, artista nascido e criado em Londres, goza de uma reputação considerável no que concerne a música Jazz e improviso do Reino Unido. Formou-se em Jazz na Universidade de Middlesex e, integrou desde cedo uma próspera cena musical, construindo inúmeras amizades e relações de trabalho com músicos de diferentes origens. A sua linguagem musical discreta e delicada é influenciada por nomes como Jakob Bro, Bill Frisell, Talk Talk, entre muitos outros. Falando do seu percurso musical, Christelis já fez parte de grupos como Rubber Walrus Trio, na companhia de J. Costi e Y. Ahmed, do aclamado projeto The Magic Lantern de Jamie Doe, e editou em abril de 2020 o seu registo de estreia em nome próprio, Moostak Trio, com a colaboração dos pares Andrea Di Biase e Dave Storey.
Pedro Velasco desde muito novo se interessou pela composição musical. Inspirado pela música brasileira que se ouvia em casa durante a sua infância, aprendeu a tocar piano aos 9 e guitarra aos 12 anos. Foi já sob a tutela do conceituado guitarrista português Mário Delgado que Velasco se dedicou ao jazz e à música de improviso. O artista mudou-se para Londres em 2003, frequentando também a Universidade de Middlesex, onde se formou quatro anos mais tarde com honras de primeira classe em Música (Jazz Performance). Pedro Velasco Trio, Akimbo e Machimbombo são alguns dos ensembles que Velasco liderou ao longo da sua carreira.
Foi o fascínio pelo improviso orgânico e atencioso que juntou Christelis e Velasco. O duo reuniu-se pela primeira vez para um concerto em 2016, e desde esse momento que a parceria tem vindo a desafiar as convenções do jazz, do folk e da música eletrónica. Assim nasceu Scribbling, disco que nos apresenta o produto final desta cooperação luso-britânica, que se estendeu pelos últimos cincos anos. Composto apenas com recurso a guitarras e às respetivas pedaleiras, Scribbling foi gravado em dezembro de 2020, pouco antes de um novo período de confinamento como parte da resposta do Reino Unido à pandemia de Covid-19. Assume-se como um disco de tonalidades verdadeiramente honestas, uma vez que não sofreu qualquer edição na pós-produção nem foi sujeito a overdubs adicionais. Tudo o que escutamos corresponde ao que foi gravado espontaneamente em estúdio, à medida que ia acontecendo e as ideias iam surgindo.
Scribbling encapsula ao longo de 11 temas um campo de texturas deambulantes e telúricas, pautadas por uma deriva ambiental sublime, trazendo à memória ecos distantes de Pat Metheny e do estilo livre cunhado pela ECM, de Norberto Lobo e a capacidade de nos levar para novas dimensões, e do futurismo sombrio da banda sonora de Blade Runner, de Vangelis. Desengane-se quem toma este disco como um que vive à custa das suas referências. A linguagem sonora exibida por Christelis e Velasco é única, íntima e despretensiosa, um convite para estarmos presentes nas belas e duradouras conversas do duo. A imersão e a tranquilidade despontam em “Paul’s Closet” e “Time”, as faixas que abrem Scribling, anunciando ao ouvinte o tipo de sensações que pode esperar ao longo dos 44 minutos que o compõem. Em “Charlie’s Dreamtime” a narrativa transforma-se ligeiramente e somos brindados por um duelo entre arranjos paisagísticos e cinemáticos, e ritmos que se assumem como decididos mas delicados, numa onda mais melancólica. Por seu lado, “Gin” vem retomar a causa otimista de Scribbling, uma espécie de passeio pelos parques verdes no pico da primavera.
A faceta mais sombria de Scribbling irrompe com “Wool”, interlúdio que introduz “Nos Entretantos do Silêncio”, faixa em que as cargas experimentais e sonhadoras têm maior peso. Segue-se “Wild Coast”, a composição mais honesta, compreensiva e íntima de Scribbling, o maior destaque do disco.
Os ritmos lentos e imersivos que caracterizam o início de Scribbling são retomados em “Valsa Destes Tempos”, tema que melhor expressa a cumplicidade entre os músicos. O disco é concluído ao som de “LD13”, faixa fortemente marcada pelo domínio celestial e sideral.
Em Scribbling estamos perante música de conectividade, uma entidade que evolui e se adapta, em que as capacidades individuais dos compositores são exponenciadas pelas suas performances profundamente pessoais e habilmente ritmadas.
Scribbling foi lançado no passado dia 25 de março, em diversos formatos físicos (CD e LP) e também em formato digital. A edição tem o cunho da Ubuntu Music.