Sónar Lisboa 2023: À procura da consolidação, com a rave no coração
Sónar Lisboa 2023: À procura da consolidação, com a rave no coração
Sónar Lisboa 2023: À procura da consolidação, com a rave no coração
À medida que as três décadas de Sónar Barcelona compõem um importante legado dos festivais de música, a marca Sónar parece procurar ser isso mesmo, cada vez mais uma marca, de expansão internacional. As edições em diferentes países, da Turquia a Portugal encaixam nessa vontade da expansão. A ideia deste segundo Sónar Lisboa assim se enquadra, com a consolidação do festival em território português e a consequente expansão da marca Sónar.
31 de março
O próprio registo de marca internacional nota-se na generalidade do público presente, o que não é um dado novo face ao ano passado. As novidades deste ano passaram sim pela centralidade do Parque Eduardo VII, já que no ano passado o festival se espalhava por diferentes espaços do centro da cidade lisboeta. E com alguns ligeiros atrasos à mistura no arranque desta 2ª edição, a noite de sexta-feira teve Sofia Kourtesis como vítima de um festival ainda a receber as suas primeiras pessoas, durante parte do seu set. Já na sua última meia hora, fosse por contágio do calor que trazia ao palco, ou por ansiedade do público em ver Max Cooper depois da peruana, o palco principal – SonarClub by Estrella Damm – foi-se enchendo. A vontade de celebrar as raízes peruanas e da América Latina, mas também de fazer tirar o pé do chão subiram de tom à medida que a meia-noite se aproximava. E aí sim, foi hora de Max Cooper. Cai a tela, e o aspeto visual deste Sonar vê o seu primeiro momento alto. Max Cooper teve, provavelmente, a atuação mais memorável desta edição do Sónar Lisboa. Foi da eletrónica mais onírica, a um frenesim entre o drum n’ bass e o techno mais abrasivo. Acima de tudo, levou o público numa imersiva viagem em três dimensões (para alguns, talvez mais). Viagem essa que, devagar foi construído camadas e camadas que da imersão se tornaram em dança. E aí, vinha Anfisa Letyago, talvez com o momento mais clássico da noite no Pavilhão Carlos Lopes, a manter as gerações de ravers na pista com o seu techno italiano.
Ao mesmo tempo que as atenções se focavam no SonarClub by Estrella Damm, no palco principal, dentro do Pavilhão Carlos Lopes, havia uma parte do público que estava do outro lado do Parque Eduardo VII, como que num pequeno segundo recinto, cortado a meio pelos arruamentos e jardins centrais deste grande parque lisboeta. No SonarHall, nome do palco do auditório adjacente à Estufa Fria, a eletrónica assumia sempre tonalidades mais melódicas e orgânicas, em conjugação com a natureza que enquadra aquele espaço. Tal se notou em nomes como James Holden, inspirado num psicadelismo quase folk, ou até no dubstep mais suave do b2b de Skream com Mala. Já nessa altura, de volta a dentro de portas do Pavilhão Carlos Lopes, o techno intimidante, de punhos no ar de I Hate Models em modo de espetáculo audiovisual exclusivo, arremessava o público para todos os lados, prometendo a mais sombria das raves. E ainda estávamos no primeiro dia.
1 de abril
Já no sábado, primeiro dia de abril, também o dia mais longo deste festival, este era o único onde se juntavam as modalidades “Sónar by Day” e “Sónar by Night”. Aqui, a metereologia não foi amiga e não acompanhou o calor pedido na pista que, durante a tarde, se fazia de house no palco principal, apesar dos constrangimentos das trocas de horários de atuações de Mochakk com Folamour. Não havia calor, havia até uma ligeira chuva, enquanto que num dos palcos exteriores – neste caso, o palco SonarVillage -, estava o DJ Nigga Fox, que acabou por não poder atuar na edição do ano passado. Nigga Fox, produtor e DJ internacional português de origem angolana, nascido em Luanda, é atualmente um dos nomes mais cintilantes da sua Príncipe Discos, e trouxe um set algo minimalista, que parecia procurar a introspeção entre o tarraxo dos seus beats, que ainda bem que chegam cada vez mais ao resto do mundo. Ainda no palco SonarVillage, o b2b de Sherelle com Kode9 tomou logo conta da pista onde estava Nigga Fox, com um set mais animado, que arrancou numa versão (ainda) mais upbeat da “Groove Is in the Heart”, tema bandeira das Deee-Lite. Daí partiram até aos seus territórios mais habituais do dubstep e do jungle, entusiasmando a plateia com a energia de Sherelle, que ocasionalmente agarrava o microfone e lá ia até também assumindo funções de uma MC.
Neste dia que foi muito marcado pelo house no palco principal, que culminaria em Peggy Gou, já com o algo funky house francês de Folamour se sentia um Pavilhão Carlos Lopes a abarrotar de gente. Gente essa que, apesar de dançar com o set divertido de Folamour – que ainda puxou de uma “Stayin’ Alive” dos Bee Gees -, parecia ansiar por Peggy Gou. A sul-coreana é cada vez mais uma diva do house, e pareceu ser a razão para a lotação ter esgotado neste dia, apesar de não ser propriamente uma estreia em Portugal. O seu set fez-se de muito house e deep house, por vezes até a piscar o olho ao techno, assumindo uma toada mais abrasiva que a das suas produções e singles. A exceção fez-se já na reta final do seu set, onde puxou da house mais limada e cristalina do seu mega single “Starry Night”, que trouxe cavalitas em catadupa, telemóveis no ar e dança mais livre do que nunca. A apotesose esperada deste dia, que aqui já se fazia noite, neste pavilhão onde os corpos suados se colavam sem escape.
Peggy Gou
Entre a troca do Sonar by Day pelo Sonar by Night no mesmo dia, num só dia de festival encaixaram dois. Pelo palco na Estufa Fria, o Sonar Hall abarrotou para os dinamarqueses WhoMadeWho, num dos raros momentos de uma banda nesta edição. Talvez também um dos poucos momentos do festival que possa ser descrito como eletropop/rock. O trio foi muito bem recebido por um público que sabia as suas músicas e levantava os telemóveis para filmar aquelas que seriam imperdíveis. No SonarHall não cabia mesmo mais ninguém (o que provocava filas descontentes no exterior), com uma ligeira exceção para os pequenos minutos entre o fim do concerto dos Who Made Who e o início do set do enigmático Acid Pauli, que trabalha o seu techno com experimentalismo psicadélico e algum misticismo. Ouviram-se diferentes passagens que cabem no largo espectro da world music, utilizadas apenas como leves e fantasmagóricas camadas sonoras sobre as quais os beats se baseiam e constroem, que nem intricados puzzles sonoros.
Pelo meio do longo set de Acid Pauli, o palco principal no Pavilhão Carlos Lopes fazia-se do vanguardismo performativo de Patrick Mason e, de seguida, da fusão de estilos e celebrações em Hector Oaks. Neste segundo, em formato ao vivo, surgiram com protagonismo Ill Pequeño y Ergo Pro, dois rappers de Madrid que protagonizaram diferentes momentos no meio da fusão de estilos com roupagem de techno de Hector Oaks, que por vezes até pegava no afrobeat e no reggaeton, rei da nova música urbana. Até o próprio Patrick Mason voltou a pisar o palco em colaboração com Hector Oaks, para dar mais ares da sua graça que comanda e domina palcos. Daí se caminhou, em modo live, até ao techno, que tal como na noite anterior, se entregou derradeiramente à rave, aqui nos terrenos mais clássicos do techno do italiano Enrico Sangiuliano.
2 de abril
Domingo, dia 2 de abril foi o último desta edição, foi também o único dia de festival em que a modalidade “by Night” não existiu, e o dia mais airoso, apesar de também ter tido a sua quota-parte de espírito de raves. Neste dia de festival, a generalidade dos sets e concertos pediam palcos exteriores, com mais ar, natureza e bom sol lisboeta (que apenas neste dia apareceu com força). Mesmo assim, houve destaques dentro do Pavilhão Carlos Lopes, onde se estava de forma bem mais espaçosa do que na enchente do dia anterior, numa tarde que se fez de beats e grooves, sobretudo de artistas portugueses ou a residir em Portugal. Ouviu-se funk e disco com a dupla Funkamente, que levou aos beats cheios de ginga de Shaka Lion, DJ e produtor em franco crescimento, que misturou géneros e inspirações do funk brasileiro ao afrobeat, do house até aos beats mais condizentes com playlists de YouTube de chillout music. Shaka Lion sabe misturar sonoridades como poucos, sem medo de acelerar ou diminuir o ritmo quando menos se espera, mas fazendo-o de forma certeira. Até uma “Bitch Better Have My Money” de Rihanna se ouviu bem remixada, não fosse culminar em funk carioca. De Shaka Lion, seguiu-se Lady Shaka, o que é um alinhamento caricato em termos de nomes, mas bem pensando nos estilos musicais. Lady Shaka pegou no microfone e puxou um aplauso para o luso-brasileiro. Lady Shaka, neozelandesa, disse que o set ia ser dedicado ao seu pai que é cabo-verdiano e a esse belo país. Cheia de groove e boa disposição, tal como toda a tarde, só faltava mesmo sentir-se o sol em cima da cabeça. Por isso daí, a viagem levou-nos a Bawrut, um dos nomes de maior protagonismo do palco exterior SonarPark by Carhartt WIP. Beats mediterrânicos, entre as muitas fusões e infusões da sua versão de house. O próprio termo “mediterrânico” aplica-se particularmente bem, pois ouvem-se as raízes desse mar que banha a Europa, África e o início da Ásia, percebendo-se temas e vocalizações quer em italiano como até em árabe, culminando o seu set num registo mais hightempo, no único palco deste festival com opção para se dançar em pé, ou para se dançar sentados ou até deitados, já que usufrui de uma ligeira colina verde.
De volta ao palco principal, os portugueses Sensible Soccers trouxeram a sua delicadeza sofisticada a um Pavilhão mais familiarizado com o espírito de clubbing – o que até dá nome ao palco dentro desse mesmo pavilhão. Provavelmente das opções artísticas que parecem mais destoar do resto do cartaz deste ano, apesar do concerto ser absolutamente seguro, como habitual nos Sensible Soccers, até na capacidade de levar a plateia em viagem, mesmo que esta viagem sonora tenha sido outra que não a mais condizente com a imagem de club em esteroides que o Sónar Lisboa parece querer transmitir. Imagem essa que talvez se reveja melhor em nomes como Chet Faker, que veio em modo dj set a este Sónar Lisboa, o que significa que surgiu num modo bem mais animado do que quando se apresenta em concertos. Trouxe muito groove em modo disco, house e nu-disco, condizente com o espírito mais descontraído deste último dia de Sónar Lisboa em 2023. Cheio do que se poderia arriscar chamar de “bom feeling”, acabou com um remix de uma música sua, um pouco à semelhança do que foi o set de Peggy Gou 24 horas antes. Acabou a desejar muito amor e a agradecer ao público, que cada vez mais enchia o Pavilhão Carlos Lopes, mas sem estar perto de abarrotar como no dia anterior. E poucos minutos depois já Amelie Lens tomava conta da pista, munida do seu acutilante deep hard techno, de fazer tremer as paredes deste Pavilhão Carlos Lopes. A enchente coincidia com o fim da música nos palcos SonarVillage e SonarPark by Carhartt WIP, assim que a noite se fez. Por isso, o groove mais soalheiro ficava de fora, tal como o sol já se tinha posto e, dentro de portas, só tinha convite quem aceitava uma rave de deep techno a começar ainda antes das 22h. Pareceu que quase todo o público assim aceitou, já que a partir daqui o Pavilhão esteve próximo de estar cheio. Até o palco, à medida que o set avançava, foi-se compondo de pessoas à volta da belga Amelie, lembrando a envolvência que se vê em cada set do Boiler Room, apesar de aqui, presumivelmente, serem apenas fãs com passes vip.
Amelie Lens
A terminar, em semelhança com o ano passado, houve um set em b2b de Violet, desta vez, com Photonz, ambos co-fundadores da Rádio Quântica e ligados a projetos como a Mina e a Planeta Manas. Talvez, na conversa que vai havendo sobre a identidade própria do Sónar Lisboa, além da expansão da marca global Sónar, essa identidade se faça, em parte, da aposta na eletrónica produzida e curada em Portugal. Sabe-se que, para o sucesso de um festival como este, essa aposta terá de ser sempre conjugada com outros nomes que façam encher o recinto, o que, a espaços, aconteceu nesta edição. Violet em b2b com Photonz, arrancaram a faltar pouco para a meia-noite, e atravessaram problemas técnicos que subitamente pararam o som e fizeram reduzir ligeiramente o número de pessoas no pavilhão. Cinco minutos passados, o techno estava convidado, tal como os resistentes de (mais) um Sónar Lisboa à procura da consolidação, pelo menos de mãos dadas com um bom punhado de ravers. Segue-se, em abril, a edição de Sónar Istanbul, e depois em junho, celebram-se 30 edições de Sónar Barcelona. Nessa busca da expansão, a consolidação por Lisboa parece querer ser para ficar, já que o Sónar Lisboa de 2024 já foi confirmado e tem datas. Nos dias 22, 23 e 24 de março de 2024, o Sónar Lisboa faz o encontro entre a cultura de club com o arranque da Primavera.
Texto: Eduardo Antunes
Fotografia: Nuno Alexandre