Cinco Discos, Cinco Críticas #80

| Setembro 8, 2023 2:58 pm

No 80º Cinco Discos, Cinco Críticas abordamos uma multitude de géneros musicais, desde o rock mais puro encontrado no novo disco de Daniel Catarino ao chillwave psicadélico de George Clanton. Passamos também por duas distintas facetas da música indie moderna, com os álbuns de bar italiaFeeble Little Horse, e pela eletrónica industrial com a qual nos brindam os Mandy, Indiana. Encontrem abaixo as nossas apreciações sobre este cinco novos álbuns e não deixem que estes artistas vos passem ao lado.

Daniel Catarino – Megafauna [Saliva Diva]

Megafauna é o título do novo álbum de Daniel Catarino, curiosamente apresentado pela primeira vez ao público, em modo antestreia e regime ultra intimista e incrivelmente suado , nas derradeiras sessões do festival-despedida que foi o GentriFest. E o  que temos então aqui? Basicamente, um punhado de excelentes canções rock em formato power trio,  oito malhas diretas mas aprimoradas q.b. que conseguem ser tão orelhudas quanto alimentadas por guitarras em ecos de euforia. Canções que jogam pela simplicidade para se tornarem hinos incontornáveis e que espalham desabafos de forma brutalmente honesta, não fosse este o primeiro volume da Trilogia Bioma, delineada com o objetivo de  expor  dúvidas,  às vezes até frustrações, sem que com isso se espere soluções concretas.

Música de intervenção ou de mera reflexão? Não sabemos bem, pois, tal como Daniel Catarino, também não temos todas as respostas. Mas carregamos uma certeza inabalável – a de que estamos perante um dos melhores cantautores da atualidade. É que quem nos brinda com um malhão  como “Berço de Ouro”- garage rock de alta sensibilidade melódica , altamente refinado e com um espírito de jam session brutal, para não falar nos magníficos coros femininos – é rei.  Mas todo o álbum é feito destes malhões: escutem “ Teias de Aranha”, com os seus dez minutos de duração, refrão contagiante e memorável, guitarras ardentes em comunhão com uma pedaleira fogosa, e desejarão que fossem vinte. Num mundo idílico, este seria um futuro clássico do rock português…  Acreditem que é assim tão bom.

Jorge Alves

Mandy, Indiana – i’ve seen a way [Fire Talk]

O grupo de eletrónica experimental original de Manchester Mandy, Indiana lançou o seu primeiro álbum i’ve seen a way, após um período com vários singles lançados ao longo destes últimos anos que demonstram uma destreza invejável para delinear beats dançáveis maximalistas e agressivos, mas com uma cadência consistente e minuciosa, resultando em faixas que contagiam quem as ouve com a sua intensidade e irreverência.

O alinhamento de faixas garante uma jornada variada – e deveras violenta – do início ao fim do disco, começando com “Love Theme (4K VHS)” que contém uma toada vinda de um sintetizador espacial, seguido imediatamente por “Pinking Shears”, que demonstra uma energia vigorosa e cativante muito reminiscente do post-punk. “Injury Detail” possui uma linha de baixo muito minimal mas firme e vibrante, enquanto que o single “Peach Fuzz” é discutivelmente a melhor faixa no disco, devido à sua progressão mais aflorante e tensa. “Drag [Crashed]”, por sua vez, é a faixa que melhor demonstra a componente mais techno do grupo, ao passo que “2 Stripe” tem uma atmosfera mais inquietante, que provavelmente a classifica como a faixa mais industrial do disco.

Depois de anos a criar hype, pode-se concluir assim que o grupo conseguiu corresponder às expectativas altíssimas criadas ao longo dos últimos anos, que culminaram no lançamento do antecipado primeiro álbum. Em i’ve seen a way, os Mandy, Indiana demonstram uma identidade vívida, versátil e enérgica que promete um futuro risonho no que toca à sua posição no cânone da música eletrónica atual, sendo um grupo a seguir de muito perto nestes próximos anos.

Ruben Leite

George Clanton – Ooh Rap I Ya [100% Electronica]

George Clanton é um polímata. Cantor, produtor e modelo ocasional, o cabecilha da 100% Electronica, editora que fundou nos primeiros metros da última década, soma já um vasto corpo de obra, entre discos, colaborações e remisturas para artistas de renome, onde o sonho e a nostalgia servem os combustíveis necessários para uma pop livre e apaixonante.

Foi assim com Slide, uma “ópera vaporwave” que propôs novas maneiras de pensar esse movimento – tal como a sua validade no presente – através de uma sensibilidade pop bem vincada, presente aliás nos demais lançamentos do género, amplamente inspirados nas tendências pós-modernistas do último século, ainda que entrecortada pelas entropias digitais do sampling e das técnicas de corte e colagem.

Ooh Rap I Ya, o terceiro álbum do norte-americano a solo (sétimo se contarmos os que editou sob os alter-egos Esprit 空想 e CHINA), não se desmarca dessa estética, antes a amplia, assentando um pé na nostalgia do passado e outro nas múltiplas possibilidades do presente. Manchester, que por estes dias é fonte de inspiração para um novo contingente de artistas interessados nas cadências acídicas dessa importante meca da música alternativa, ganha aqui um novo e valioso discípulo, que discorre com virtuosa elegância ora os ritmos hedonistas dessa cidade, ora os ambientes sedutores da trip-hop de Bristol, recontextualizando-os com recurso a uma produção húmida e reverberante, com vozes e baterias bem saturadas e um pendor (sentido acima de tudo na segunda metade do disco) para os ambientes de recorte new age.

A voz de Clanton, situada entre o crooner embriagado e a estrela interplanetária de uma qualquer boyband, proporciona o elemento aglutinador entre as pretensões pop do artista e o desejo de experimentar com as texturas que premeiam grande parte do seu trabalho, sacando os ganchos necessários para se fixar no consciente coletivo durante muito tempo. Exemplo disso é o tema “I Been Young”, um dos singles de Ooh Rap I Ya e um dos mais vibrantes exemplos desse disco. Inventivo e anacrónico em iguais medidas, representa o ideal projetado na visão caleidoscópica de Clanton, para sempre o romântico incurável em busca da melodia perfeita, subvertendo as glórias dos heróis que o influenciaram para um prisma contemporâneo.

Filipe Costa

bar italia – Tracey Denim [Matador]

A sua identidade é hoje conhecida. Jezmi Tarik, Sam Fenton e Nina Cristante formam o núcleo duro dos bar italia, trio de londrinos que assina em Tracey Denim a sua estreia pela Matador. Mas nem sempre foi assim.

Afiliados da World Music, braço editorial do iconoclasta Dean Blunt, foi por lá que editaram dois álbuns de longa (ainda que curta) duração, bem como outros lançamentos avulsos em formato (ainda mais) reduzido, todos dotados de uma natureza elusiva que suscitou burburinho considerável em certos círculos. As ligações ao autor de The Redemeer geraram curiosidade, e foram muitas as teorias em torno do grupo, cuja identidade foi durante muito tempo desconhecida. Nina, cuja voz podemos encontrar em trabalhos recentes de Dean Blunt, era o seu elemento mais reconhecível. Jezmi Tarik e Sam Fenton, que formam a dupla Double Virgo, eram o mistério que faltava desvendar.

Hoje, o trio enfrenta o mundo sem rodeios, surgindo de forma evidente na capa que enfeita o seu mais recente álbum, publicado no último mês de maio. Tudo o que têm a dizer (e são muitas as emoções contidas em Tracey Denim) está nas canções, porque só a música interessa realmente quando queremos entender o que move este trio de ingleses.

Canções letárgicas, herdeiras da melhor escola dos 90s, assentes nas fundações da música rock, com voz, guitarras e bateria a adornar uma matriz mais identificável que a dos seus antecessores, que oscilavam entre a pop de recorte hipnagógico e os ritmos da downtempo, bem como outras cadências que agitavam aquela década.

Essas, contudo, continuam lá, presentes no delírio madchester de “Nurse!”, mas o que sobressai é sobretudo uma apetência para a melodia e os ambientes encardidos do shoegaze. Os títulos são cravados na grade maioria a minúsculas e as suas letras parecem contar pequenas histórias sobre grandes questões, nunca se preocupando em obter uma resposta (“And I don’t owe you an explanation, I just wanna lose control”, cantam em “punk”, um dos singles).

Uma ode aos heróis que informaram a jornada do trio até aos dias de hoje (há aqui laivos de Stone Roses, Pavement e Sonic Youth), Tracey Denim é, contudo, uma obra aglutinadora, capaz de conciliar passado e futuro de um modo tão singular que só poderia existir neste estranho e vicioso presente.

Filipe Costa

Feeble Little Horse – Girl With Fish [Saddle Creek]

Os primórdios auspiciosos da Saddle Creek, há muito um selo de excelência no que diz respeito às matérias da folk independente, não faziam adivinhar a mudança de peles que a editora fundada por Justin e Conor Oberst nos meandros da década de 90 iria sofrer. Berço para as obras de Bright Eyes, Cursive e outras importantes bandas do indie norte-americano, é hoje abrigo para uma nova geração de músicos interessados em reescrever os manuais de género, dos Big Thief de Adrien Lenker aos mais aventureiros Palm e Secret of the Beehive.

Oriundos de Pittsburgh, no estado da Pensilvânia, os Feeble Little Horse são o mais recente exemplo da idiossincrática turma que a editora do Omaha tem vindo a reunir ao longo da última década. Girl With Fish, o segundo álbum do grupo, é uma das mais ambiciosas obras do seu catálogo. Aqui as coordenadas vão além do cânone pré-concebido, com uma receita eclética de influências que deve em parte à cena local de Pittsburgh, onde uma geração de músicos floresce. Paredes liminares de som cruzam-se com as possibilidades do estúdio para criar um produto com tanto de abrasivo quanto de laboratorial, pop de contornos ruidosos feita de sons que, por via da manipulação digital e do uso de pedais de efeitos, são difíceis de determinar.

Tal como os congéneres Full Body 2, que assinaram a remistura de um dos temas do seu álbum de estreia, Hayday, de 2021, o quarteto de Sebastian Kindler, Ryan Walchonski, Jake Kelley e Lydia Slocum integra uma nova geração de músicos que prefere ver nos excessos do shoegaze e da sua santíssima trindade – isto é, a tríade composta por My Bloody Valentine, Slowdive e Ride – um livro aberto. Manuseá-lo é imperativo.

Filipe Costa

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