Amplifest – dia 2: o manifesto das Divide and Dissolve foi a transcendência que queríamos; a de Hide a que não sabíamos que precisávamos

Amplifest – dia 2: o manifesto das Divide and Dissolve foi a transcendência que queríamos; a de Hide a que não sabíamos que precisávamos

| Outubro 20, 2023 8:03 pm

Amplifest – dia 2: o manifesto das Divide and Dissolve foi a transcendência que queríamos; a de Hide a que não sabíamos que precisávamos

| Outubro 20, 2023 8:03 pm

Antes de os concertos começarem no domingo houve ainda uma sessão de cinema, com um excelente documentário sobre Dylan Carlson e os seus Earth intitulado Even Hell has its Heroes a ser exibido no Cinema Batalha, logo pelas 11h15. E mesmo tendo obrigado a um esforço matinal depois de um dia bem preenchido que só terminou nas primeiras horas da madrugada, a verdade é que aplaudimos a decisão da organização em escolher o Batalha como local de visualização dos filmes, pois para além de transmitir elegância e tranquilidade, apresenta excelentes condições e proporciona uma experiência bem mais imersiva que o Hard Club. Amplifest

E já de volta ao Mercado Ferreira Borges, a maratona de concertos iniciou-se ao som dos nova-iorquinos Aeviterne, que contam nas suas fileiras com elementos ligados (atualmente ou outrora) a projetos como Artificial Brain, Fawn Limbs, Tombs ou Luminous Vault, entre outros. Com o cativante The Ailing Facade debaixo do braço, o quarteto imediatamente mergulhou numa exploração de death metal experimental/psicadélico com pitadas de black metal (sobretudo nos riffs), que nos melhores momentos originou uma atmosfera de intensidade cósmica absolutamente irrepreensível. Um concerto curto, vigoroso e direto que deixou imensa vontade de ver um regresso em nome próprio.

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David Eugene Edwards

Logo a seguir seguimos em direção à Sala 1 para uma sessão de soberba transcendência sonora. Falamos de David Eugene Edwards, o homem por trás dos Wovenhand e 16 Horsepower, que aqui se mostrou fabuloso no seu registo arrepiante e surrealmente espiritual, em que cada nota tocada e cada palavra proferida carregam o peso imensurável de uma emoção incontida. Em formato duo e acompanhado por fantásticas projeções, o carismático frontman conjurou uma folk extraordinariamente densa, negra e penetrante, que por vezes parecia evocar o legado de Townes Van Zandt, e que se mostrou tão emocionalmente pujante quanto o mais pesado dos riffs. Uma experiência quase religiosa e indescritivelmente transformadora, numa das mais comoventes e assombrosas sessões da história do Amplifest. Som como purificação xamânica, a nossa alma chorou emocionada. No final renascemos, frescos desta excelsa catarse.

A passagem de Hilary Woods pode, para muitos, ter deixado uma sensação de desilusão ou confusão, mas a verdade é que o concerto da irlandesa revestiu-se de um certo encanto bem singular. Iniciando-se como uma viagem de drone atmosférico e terminando já com voz e guitarra, Hilary foi a calma não antes, mas depois da tempestade (neste caso, a do mestre Edwards), uma espécie de brisa delicada no meio de estrondos vendavais. Onírica e serena, quase distante sem deixar de estar próxima de nós, acalmou-nos o espírito antes da pancadaria que se seguiu. Talvez tenha é dado um concerto mais “Semibreve” do que Amplifest…mas, para quem conseguiu entrar no mood, compensou q.b.

E quanto às Divide and Dissolve (fotografia de capa), urge dizer que foram responsáveis por um dos mais brilhantes concertos de todo o festival – para nós a maior pérola do fim de semana. Entre relaxantes e luminosos arranjos de saxofone que rapidamente davam lugar a demolidoras descargas de um doom violento e implacável que parecia comunicar a mais desesperada urgência, e que fazia com que várias bandas de metal soassem a pop fofinho, as Divide and Dissolve foram o som da revolução sem tréguas, o som tempestuoso de uma mudança social incontornável. Totalmente instrumental, a prestação da banda foi intercalada com discursos calmos mas emotivos da líder Takiaya Reed sobre a necessidade de combater a supremacia branca e respeitar a terra dos povos indigénas (para além de afro-americana, Takiaya é cherokee) , num ativismo tão inspirador e revigorante que nos sentíamos prontos a lutar ao lado dela – a jarda transcendente a ser usada como arma de justiça imprescendível.

Foi igualmente curioso observar o sorriso tranquilo de Takiaya (confiança na mensagem, uma simples apreciação da onda do momento, ou ambos?) enquanto ela e a baterista que a acompanhou ergueram um mural de distorção tão visceral e contundente, sobretudo ao vivo, que nos sentimos emocional e fisicamente esgotados quando tudo terminou. E a verdade é que este apelo à mudança nem precisava de palavras para convencer – não quando a fúria da indignação sonora já espalhava uma eloquência magistral. Gloriosas e orgulhosamente punk (sabes que o és quando o teu discurso incomoda malta mais conservadora), assinaram o mais intenso e ensurdecedor manifesto do Amplifest – bem diziam os irmãos Cavalera que o futuro é indígena. A revolução está em curso, juramos não parar.

Dos britânicos Esben and the Witch pouco vimos por estarmos a entrevistar precisamente as Divide and Dissolve, mas do que deu para assistir, podemos afirmar que o trio continua exímio na arte de misturar melodias cintilantes (isto para não falar na beleza etérea da voz de Rachel) com explosões de distorção atmosféricas, e a julgar pela multidão que se reuniu na Sala 2, para além daqueles que ainda formaram uma fila junto à porta por não conseguirem entrar, não estamos sozinhos na nossa opinião.

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KEN MODE

De volta à Sala 1, os canadianos KEN Mode, que por cá já não atuavam há onze anos (na primeira parte de Kylesa, precisamente na sala ao lado) destilaram uma potentíssima e suada descarga de um post-hardcore enérgico carregado de noise, numa entrega viciante e impetuosa onde também ficou clara a óbvia ambição musical do quarteto de Winnipeg, que com a adição de synths, piano e um saxofone consegue alargar os seus horizontes sonoros sem se afastar das suas raízes irreverentes e ruidosas – o coração para sempre berra “hardcore” a altos pulmões, com atitude e sem remorsos.

Mesmo desprovida da intimidade que a Sala 2 proporciona e que este tipo de som pede, a atuação foi irrepreensível e de uma garra absolutamente contagiante, conseguindo mesmo “lavar-nos” a alma enquanto abanávamos compulsivamente o corpo. Até nos momentos mais melódicos persistia um “nervosismo” palpável que nos prendia a atenção, e é desta inteligência e pureza emocional que vive a música de um coletivo que insiste em explorar incessantemente os limites da sua própria arte.

“Something is broken/ Something is fucked”, berrou de forma irresistivelmente emotiva o frontman Jesse Matthewson durante a interpretação da música “ A Love Letter”. Bem, a verdade é que com os KEN Mode (KEN significa Kill Everyone Now, já agora) nada parece estar partido ou fodido. Muito pelo contrário, são uma máquina bem oleada a deixar um rasto de devastação majestoso. Agora é ver se não demoram mais onze anos a regressar – por nós, era já para o ano o (ampli) retorno.

Autêntica revelação do festival  pelo menos no campo da surpresa), os Hide invadiram a Sala 2 para o mais delirante dos assaltos sensoriais. De início nem músicos se viam – só sons e imagens projetadas no ecrã. Depois lá subiram ao palco e aí… aí foi a mais louca das doces anarquias. Uma vocalista, a demonica Heather Gabel, a berrar de forma intimidante enquanto ordenava que ninguém filmasse o concerto (“Put your phone away”, disse em alto e bom som, com uma pequena lanterna apontada a uma jovem claramente distraída) acompanhada de batidas eletrónicas pintadas de tons industriais – imaginem este cenário na vossa cabeça, e mesmo assim nem chegam perto de entender a sua sedução. Mas houve mais, como manifestos de sentimento feminista sobre a execução de Reyhaneh Jabbari, no Irão, naquele que foi o concerto mais performativo (e a par da passagem das Divide umas horas antes, o mais político) do fim de semana inteiro.

Insólitos, experimentais e verdadeiramente punk mesmo sem guitarras – a garra inconformista foi cuspida com uma veemência que nos deixou positivamente atordoados – , os Hide foram uma bomba de raiva alienada. Por diversas vezes estávamos tão maravilhados quanto ligeiramente confusos, especialmente tendo em conta a imprevisibilidade da performance, e residiu aí muita da magia. O (ampli) retorno também aqui se justifica.

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Sunn O)))

E depois chegou então o momento esperado , aquela que foi a grande atração da edição deste ano: o regresso dos míticos Sunn O))), aqui reunindo o núcleo duro de Stephen O’Malley e Greg Anderson.

O cenário que encontrávamos mal entrávamos na sala era maravilhosamente imponente: mais de trinta amplificadores (perdemos mesmo tempo a contá-los, não é todos os dias que se vê algo assim) preenchiam o palco, deixando adivinhar uma estrondosa e cruel parede de som, uma montanha de ruído abismal decorada com o sufocante nevoeiro das máquinas de fumo. Tudo parecia efetivamente perfeito, o que tornou a desilusão final ainda mais penosa.

Não é que o concerto tenha sido necessariamente mau – na verdade, aquele vórtice de drone metal minimalista e hipnótico que criaram ao longo de aproximadamente duas horas fez florescer um ambiente único à sua maneira -, mas o volume, ainda que claramente elevado, não se apresentou tão opressivo e ensurdecedor quanto se poderia imaginar depois de tudo o que se ouviu falar nesse campo – sobretudo por quem os viu, há muitos anos, na Casa da Música. Faltou mais visceralidade no som, um nível (ainda) mais agressivo e impactante de ruído para nos fazer esquecer onde estávamos enquanto puníamos os ouvidos. Especialmente porque a falta de variedade e dinamismo na estrutura musical do duo, ao vivo, é mais propícia a uma transcendência sensorial do que propriamente a uma apreciação musical pormenorizada, e nesse sentido a intenção acabou por ser algo comprometida.

Contudo, convém referir que muita gente, à saída da sala, comentava a “ jarda” possante que esta experiência tinha sido para elas. Cada um terá a sua opinião , sendo que para nós pedia-se mesmo uma maior pujança imersiva e uma atuação mais curta- duas horas soaram excessivas quando noventa minutos teriam tido exatamente o mesmo impacto. Respeitando, desde logo, as opiniões positivas, saímos com a sensação de que a transcendência em formato duo não foi oferecida pelos Sunn O))), mas antes pelas Divide and Dissolve…

Já um encerramento impecável souberam dar os MДQUIИД ( lê-se máquina). O grupo lisboeta, que este ano lançou o álbum de estreia, Dirty Tracks For Clubbing pela Saliva Diva (obra fantástica, vão lá ao Bandcamp dar aquele apoio que só vos fica bem), proporcionou o mais idílico pré-after antes do derradeiro DJ Set do festival. E que horário bem adequado foi este, porque a sonoridade do trio pode muito bem ser descrita como uns 10 000 Russos em formato alucinante, eufóricos no meio de uma discoteca remota. Um rock “sujo” mas altamente dançável, quase como um psych marado saído de uma rave dos 90s. Verdadeiramente bombásticos a nível de volume, puseram o povo a dançar como se depois não houvesse amanhã – e, no universo do Amplifest, efetivamente não havia. Diversão máxima numa despedida apoteótica, talvez uma das melhores que o festival alguma vez ofereceu. Quem se foi embora depois de Sunn O))), pode ter a certeza de que fez uma escolha triste; já os resistentes celebraram, e celebraram bem.

Terminada mais uma edição já apertam as saudades, pois nada bate estar num evento de melómanos para melómanos, ainda por cima um que oferece alguns dos mais memoráveis concertos do ano. Enquanto houver Amplifest, o Porto nunca estará totalmente morto.

 

Texto: Jorge Alves

Fotografia: David Madeira

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