Vou Ficar Neste Quadrado nasce do desejo de Ana Lua Caiano em criar a sua própria geometria no mapa da música tradicional. O álbum de estreia da cantora e instrumentista portuguesa, editado na última sexta-feira, incorpora a gramática da canção panfletária de Zeca Afonso e José Mário Branco com a pop laboratorial de contemporâneas como Mabe Fratti ou Marina Herlop, colocando em diálogo passado, presente e um futuro que já está a ajudar a construir.
Produzido, em parte, durante a pandemia (“Não toques aqui, não toques ali / põe as mãos para baixo / para resistires / não coces a cara / nem os teus cabelos / que, ai, o bicho anda por aí” escuta-se no refrão de “O Bicho Anda Por Aí”), Vou Ficar Neste Quadrado sucede um par de EPs amplamente elogiados – Cheguei Tarde a Ontem (2022) e Se Dançar É Só Depois (2023) – e que a levaram a percorrer o roteiro de eventos que alimentam o circuito de festivais do país (só no ano passado tocou no Alive, no Med e no Womex). Evocativo de uma identidade familiar, verbaliza uma linguagem simultaneamente humana e tecnológica, usando a electrónica para reclamar um passado que faz questão de não esquecer. As letras são mordazes e refletem sobre o isolamento, mas também sobre as ansiedades resultantes da precariedade, da sobrecarga laboral e do medo de não se conseguir pagar as contas no fim do mês.
Movidas por um combustível rítmico irrequieto, as canções de Vou Ficar Neste Quadrado são o espelho de uma nova geração interessada em repensar a tradição, intersectando essa memória com as ferramentas do presente. Não se trata de uma fricção entre coordenadas aparentemente distantes – folk e eletrónica, analógico e digital –, mas sim da requalificação de um património cada vez mais presciente, e Lua Caiano fá-lo com natural mestria, carregando essa identidade para a atualidade.
Partindo de uma recolha incessante de sons tão incomuns (o uso de fitas métricas na faixa titular) como familiares (a transmissão de rádio escutada no tema “Em Direção Ao Sul”, a voz de um falante de laínte em “De Cabeça Colada ao Chão”), a artista serve-se da tecnologia e dos instrumentos que tem à sua mercê (computador, teclados, softwares de gravação) para construir um ideário onde cabem ainda bombos, pandeiretas e flautas, cortesia do músico brasileiro Ely Janoville.
Contudo, a “valorização da espontaneidade” que proclama na entrevista concedida a Gonçalo Frota do Público, que acompanhou a compositora no processo que levaria à concepção do seu álbum inaugural, ainda não se faz sentir na totalidade. O rigor da performance vocal, hirta e teatral, nem sempre se cruza de forma homogénea com a multiplicidade de linguagens que a artista procura exultar nestas canções. Pormenor de somenos, quando falámos de uma figura que, no espaço de três anos, conquistou já destacado lugar nos domínios da música global (é da Glitterbeat, casa de Širom, Ustad Saami e Altın Gün, a primeira edição deste disco).
No filtro contemporâneo de Ana Lua Caiano, a canção é a semente de um futuro profundamente entrelaçado com o passado que o precede. Vou Ficar neste Quadrado abre uma panorâmica sobre o fluxo e as possibilidades dessa tradição, projectando-a para a linha da frente da novas músicas de raíz. Que não restem dúvidas: também nós vamos querer ficar neste quadrado.
Fotografia: Joana Caiano / Carolina Lobo Nunes