Sónar Lisboa 2024: recolhe, baralha e volta a dar

Sónar Lisboa 2024: recolhe, baralha e volta a dar

| Março 31, 2024 11:04 pm

Sónar Lisboa 2024: recolhe, baralha e volta a dar

| Março 31, 2024 11:04 pm

Num fim de semana atípico, com poeiras vindas de África pelo ar, a temperatura estava mais quente que o habitual, o que preparava o terreno para uma suada edição do Sónar Lisboa. Mais de trinta edições de Sónar Barcelona, três na versão lisboeta, novamente com alterações a nível do formato. Se em 2023, o Sónar Lisboa se reuniu pelos arredores do Parque Eduardo VII, repartindo-se sobretudo entre o Pavilhão Carlos Lopes e a Estufa Fria, este ano, as atividades concentraram-se no Pavilhão Carlos Lopes, reservando o espaço da Estufa Fria para o programa de instalação artística. Nesta edição, as noites fizeram-se dentro de portas. De fora ficaram alguns constrangimentos antigos, como as troca de espaços registada na última edição, mas também poderia ser arriscada a ideia de centralizar o público todo num mesmo espaço. Felizmente, o receado sufoco não chegou a concretizar-se.

 

Dia 1

 

Na primeira noite de festival, o ar era já rarefeito no exterior, enquanto no interior havia a promessa subentendida de entregar, no mínimo, uma condição semelhante fruto dessa centralização no Pavilhão Carlos Lopes, onde se esperavam corpos suados a batalhar rave adentro. Após a ingrata tarefa de inaugurar o festival entre portas ser entregue a Chima Isaaro, só quando chegou a hora de Sevdaliza, um dos nomes fortes desta edição, é que algum do público foi trocando o apetecível calor externo noturno por um mais desconfortável calor interno. As sirenes começaram a tocar pouco depois das 22h, dando o sinal da diva futurista que aí vinha.

A artista iraniana-neerlandesa tem explorado as fronteiras da incorporação da tecnologia na criação artística. Por isso, não deixou de ser irónico que o concerto (um dos poucos da edição) tenha começado com “Human”, do disco Ison de 2017. Navegou, qual ciborgue, entre o acústico e o tecnológico, como é seu apanágio, numa procura que pareceu agradar mais a uns do que a outros. As questões sobre a definição deste público surgiram aqui, mas mantiveram-se como desafio na generalidade do festival, o que de resto não é novidade nesta edição.

Sevdaliza aproveitou o regresso aos concertos – com direito a Björk entre o público VIP – para mostrar e testar novas canções, algumas delas incompletas; outras, reuniam colaborações com Grimes e Pabblo Vittar, trazendo uma pitada de funk à sua sonoridade com base na pop eletrónica e no trip-hop. Mesmo no hit “Ride or Die”, com Villanno Antillano, apresentou uma versão remixada por Tokischa, mais próxima do neoperreo. Voltando ao acústico, e introduzindo-a como a música de embalar do seu coração, Sevdaliza trouxe a sua versão de “Gole Bi Goldoon”, original de Googoosh cantado em farsi. Infelizmente, o público não pareceu agarrar com atenção estes momentos mais calmos do concerto. Vibrou-se mais, por exemplo, com a rave techno-pop de “Nothing Lasts Forever” onde ecoava a voz de Grimes, ou ainda também, no final surpreendentemente grunge onde Sevdaliza voltou também a testar novo material, permanecendo por essa sonoridade até sair de palco de uma forma algo repentina e apressada. 

 

sónar-lisboa

Sevdaliza @ Nuno Alexandre

Rapidamente se passou de concertos para espetáculos em formato DJ set, e aí veio o b2b entre Helena Hauff e Imogen, com um som estridente desde o início, também a chamar as atenções. No fundo, a primeira faceta verdadeiramente raver desta edição. Dito isto, este b2b andou pelo electro e pelo breakbeat, abrindo espaço a que a tal rave se alargasse pela noite. Mesmo assim, era com este espírito que o Sónar Lisboa se aproximava mais da identidade coletiva que esta edição portuguesa vai criando: uma festa noturna, mas em tudo maior. Como o set tinha 2 horas, deu para variar os ritmos e chegar a um techno já algo abrasivo, que até fazia parecer que passavam das quatro da manhã, quando, na verdade ainda agora era meia-noite. Apesar do Pavilhão Carlos Lopes ter ficado mais quente no set das alemãs, no geral, muita gente ficou fora do pavilhão, talvez a aproveitar o bom tempo (ou o calor) que é raro em março, quer para lisboetas, quer para os muitos turistas que parecem formar a nata do público que frequenta o Sónar Lisboa. 

Seguiu-se a apresentação de “Love Minus Zero” na colaboração dos já veteranos Tiga e Hudson Mohawke. Apesar de terem surgido aqui numa versão mais pronta para a festa do início da madrugada, por vezes ficou a dúvida se não teria feito mais sentido terem antecedido o set de Helena Hauff e Imogen. Apesar de poderem chegar também às facetas mais abrasivas da linguagem sonora eletrónica, também se faz de sons mais oníricos o disco colaborativo que servia de pano central para este espetáculo, L’Ecstasy, que teve quatro anos de preparação. Nesse disco colaborativo, a abordagem é mais limada e orgânica, o que em parte se refletiu na componente visual utlizada neste espetáculo, como as flores que brotavam da tela.

Juntos, sem pecarem no ritmo, entregaram a sua abordagem quase pop – no seu sentido mais polido – do techno. Como no set anterior o rasgo foi tão intenso, Tiga e Hudson Mohawke sofreram de um pavilhão ligeiramente despido, mas agarram-no bem e fizeram a plateia crescer com a colaboração a assentar nesse techno, género musical que de qualquer forma e feitio é sempre bem acolhido no Sónar Lisboa.

A alegria e a euforia não se ficaram por aqui. Havia ordens subentendidas para os bpms não diminuírem, nos sets seguintes de DJ Gigola – que não tinha horário para explorar a sua outra faceta ligada a uma eletrónica mais meditativa – e ainda Jennifer Loveless, a quem coube a (in)grata tarefa de encerrar as hostes da primeira noite. Em breve, o sol já iria raiar na poeirenta Lisboa daquele fim de semana.

 

 

Dia 2

 

No dia mais longo do festival, o sol poeirento deste fim de semana atípico não fugiu. Por aqui, esta edição portuguesa mantinha a sua estrutura, com o sábado a ser o único dia onde se juntavam as modalidades “Sónar by Day” e “Sónar by Night”. Se o dia não tinha um sol vibrante no ar, o calor sentido era apetecível, por isso percebemos que muitas pessoas tenham aproveitado para iniciar o dia sentadas na relva ao som de RUUAR, dupla de DJs provenientes de Viana do Castelo. Outras pessoas já se aventuravam na dança em pé, ainda que em abanos relativamente ligeiros no palco SonarVillage by Repsol, por exemplo, ao som do post-punk dos portugueses Conferência Inferno. Dentro das portas do pavilhão, a mescla de sons da espanhola-marroquina Ikram Bouloum em b2b com a portuguesa Odete, misturavam ritmos, culturas e identidades para um pavilhão ainda muito despido. Do trap ao pop, do electro ao funk e até a algum reggaeton empoderado, o som foi de mistura e fusão, enquanto se aguardava por uns dos maiores nomes desta edição: Oneohtrix Point Never

Talvez o calor exterior tenha sido uma tentação maior, porque o pavilhão nunca chegou perto de cerca de um terço da lotação do pavilhão principal deste festival. O músico norte-americano veio munido de uma mescla dividida entre a novidade e os clássicos de sempre da sua já extensa discografia, proporcionando o espetáculo visualmente mais estimulante desta edição. Pode-se fazer assim um paralelo com a atuação de Max Cooper na edição do ano passado: uma eletrónica vibrante, que oscila entre a dança e a introspeção, e que também não teme em assentar em aspetos visuais mais conceptuais. OPN apresentou-se com o seu aliado, o artista visual Freeka Tet, que nos conduziu entre animações pré-gravadas em duas e três dimensões – um jogo ambicioso entre efeitos visuais e filmagens em tempo real da atuação, aliado à utilização de um mini-palco controlado em jeito de marionetas com miniaturas do artista e de uma guitarra. Viajámos artisticamente a muitos outros sítios, com muitas outras imagens pelo meio, sempre numa viagem não linear.

Mantendo-se o clima agradável, sobretudo para os muitos turistas europeus que têm sido parte principal do público habitual destas edições do Sónar Lisboa, houve vários nomes a convencerem a que se preenchessem os palcos exteriores. Em particular, a DJ alemã Perel no SonarVillage by Repsol, e a versão live de Wata Igarashi no SonarPark by Carhartt WIP. O produtor japonês é um nome mais do que consolidado no techno alucinogénico que vem construindo há largos anos, baseando-se nas sonoridades electro em loop dos anos 90, a década cultural simultaneamente futurista e revivalista.

O palco principal só se voltou a compor com a trap star iconoclasta Tommy Cash – estilizado TOMM¥ €A$H –, munido de um DJ e uns visuais tão idiossincráticos como a música do artista (acreditem, esta inusitada colagem resulta). A diversão fica assegurada, entre o trap, o rap, o hip-hop e uma eletrónica que bebe muito do revivalismo eurodance, por vezes de um hyperpop e até da ironia depreciativa da EDM (numa altura onde, num dos momentos, para ajudar à já larga risada, surgiam imagens do Tomorrowland no ecrã). Nostalgia dos anos 2000 a surgir, com o fuckin Tommy Cash – foi assim, afinal, que o próprio se apresentou.

É, sem dúvida, um entertainer da nova geração, onde a transgressão da comédia e da música não têm fronteiras delineadas.  Não será para toda a gente, até num público algo misturado, mas mais dado ao techno, como é o deste Sónar, mas da nossa parte, juntamo-nos aos muitos que se divertiam com toda a estética, dos memes visuais ao trap do rapper estónio, cuja música por si só também tem o seu quê, mesmo sem a parte visual, de meme culture. Pelo meio, até houve tempo, segundo os próprios, para uma “rave à moda da Europa do Leste”. E assim se fez a primeira enchente deste sábado, no palco principal, com direito a moshpits, várias vezes solicitados pelo próprio e pelo seu DJ em várias ocasiões.

 

Oneohtrix Point Never @ Nuno Alexandre

À medida que se chegava ao final do concerto de Tommy Cash, o Pavilhão que alberga o palco principal foi-se enchendo e enchendo, ficando a dúvida sobre se seria este novo fenómeno estónio a conquistar tanta gente ou se existia uma vontade maior em agarrar um bom lugar para a dança seguinte. Apesar do espetáculo da trap star estónia ter entregado tudo a que se propunha, parece-nos que a enchente se deveu, sobretudo, à espera por Paul Kalkbrenner.

O veterano DJ e produtor protagonizava duas horas de puro techno. Assim mesmo, quase sem mais adjetivos. Kalkbrenner não precisa deles, nem de grandes mecanismos. Telemóveis ao alto, techno nos corações, mas também nos pés, nas mãos, nas ancas e cabeça de todos. Há clássicos em que não se toca e Paul Kalkbrenner é um deles. Notam-se alguns sons da eletrónica clássica alemã, que remetem ligeiramente ao krautrock dos Kraftwerk. Paul Kalkbrenner é orgulhosamente alemão, tal como se vê na camisola que veste – e aqui a gíria futebolística também faz sentido – e que muitos no público vestem também, carregando o seu nome às costas. No fundo, esta pareceu-nos a aposta mais segura feita pelo Sónar Lisboa deste ano, porque apesar da velha guarda que Kalkbrenner apresenta em palco – visível na sua mesa de mistura analógica -, o seu techno foi o que mais encheu o pavilhão durante todo o festival, talvez ajudando a responder às questões sobre a identidade do público do Sónar Lisboa.

Aí está: techno, techno e mais techno, dos estrangeiros aos portugueses, dos mais novos aos mais velhos. É aí que o êxtase aumenta neste festival. Mas para isso acontecer, talvez seja necessário quebrar o ritmo pelo meio, e apostar noutras dinâmicas que exploram outras formas de eletrónica.

A pausa era necessária para quem esteve ali o dia todo. E entre mudanças do regime by Day para by Night, muitas pessoas ficaram pelas imediações do pavilhão (uma das novidades da logística face ao ano passado). A partir das 23h, os portugueses Yen Sung em b2b com Photonz tiveram a tarefa de voltar a tentar encher o Pavilhão Carlos Lopes — de pessoas, de calor e, no fundo, de energia. Nessa missão muniram-se de um tech-house ritmado, que foi lentamente compondo a sala – agora único palco do resto dos espetáculos –, com corpos preparados para os exercícios de dança a que a música obrigava.

Daí viria a nova rainha do jungle britânico, Nia Archives. Entre a contagiante animação da própria e um pavilhão perto de uma grande enchente – mas sem comparação com a forma como rebentou pelas costuras em Paul Kalkbrenner –, Nia Archives encantou entre o jungle e o drum n bass. Nota-se que sabe planear um set que conquista novos corpos, com remixes (inclusive seus) de temas de Yeah Yeah Yeahs – transformando “Heads Will Roll” na sua “Off Wiv Ya Headz” –, mas sobretudo na utilização de “Hollaback Girl” de Gwen Steffani. A britânica de raízes jamaicanas não se limitou à mistura, ou até aos saltos animados que dava pelo palco. Ainda se aventurou a cantar várias das suas músicas, algumas menos aceleradas que juntam um pouco de r&b e soul ao seu inevitável jungle, como nas suas “Bad Gyalz” ou “Silence Is Loud” – que dará nome ao vindouro álbum longa-duração de estreia. O entusiasmo foi, calculadamente, deixado para fim, com o hit “Baianá”, o seu take ao original dos Barbatuques, coletivo de São Paulo.

Seguiu-se a canadiana Marie Davidson, já algo longe dos anos de um synth-pop que mesmo nos seus ares mais sombrios, não se ajustava a um timeslot de atuação à 01h da manhã. Aqui, Davidson começou por pegar num darkwave, e inicialmente, continuava a parecer desfasada deste horário. Mas com a tela a preto, o som a abrir, a crescer e a rasgar, a artista deu-se a uma espécie de techno desconstruído, minimalista e individualizado no pacote de cada música, já que a canadiana não estava aqui em versão de DJ set, mas sim num formato live, que não era por isso menos estridente. Daí, para o público resistente, a noite ainda iria levar à veterania da dupla de irmãos belgas 2manydjs acompanhados de Éclair Fifi & Erol Alkan. Havia quem, ainda sem sinais de cansaço, continuasse a entregar-se de corpo e alma à eletrónica que pulsava madrugada dentro no palco SónarClub by Estrella Damm. Para nós, a festa teve de dar lugar a um descanso fulcral para ainda marcarmos presença no último dia.

 

 

Dia 3

 

O último dia do Sónar Lisboa 2024 voltou a ter apenas a modalidade by Day, que, porém, se arrasta até à noite. Este foi o dia da lusofonia e das diásporas com ligação a Portugal, com a curadoria do palco SonarVillage by Repsol a cargo da Enchufada, editora de Branko, que atuaria mais tarde no palco principal. DJ Satélite, por esse SonarVillage, arrancou os primeiros passos com o seu afrobeat, que depois recebeu iolanda. A vencedora da edição deste ano do Festival da Canção apresentou temas de Cura, o seu primeiro EP, para um público que conhecia já algumas das canções, sobretudo o “Grito” que lhe deu a vitória no Festival. Ainda chamou ao palco, para um tema, a sua amiga Soluna para um rasgo pop latino – no single de ambas, “Contigo”. A próxima representante portuguesa na Eurovisão mostrou confiança e naturalidade no palco, divertindo o público com a dose mais pop de todo o festival, algumas baladas pelo meio, num concerto pintado com tons de soul e de alguns beats roubados à linguagem do hip-hop

Já dentro das portas do pavilhão que alberga o palco principal estava Batida, num DJ set quentinho, já a apelar a uma noite de disco, apesar de serem 4h da tarde (e não da madrugada). Partindo do seu afropop/beat mas assumindo o espírito house que este festival celebra, Batida apresentou-se de costas para o público, com um boneco no alto em seu nome a dar a cara e a abanar a cabeça non-stop, e meia bolha de espelhos a lançar o roxo e o azul pelo pavilhão. Meia bola de espelhos, talvez como quem convidava para meio passo de dança. Terminou o set com o single “Bom Bom”, provavelmente o mais celebrado do seu último álbum – “Neon Colonialismo”, lançado em 2022 -, uma música que Mayra Andrade aquece com a sua voz. Após esse “Bom Bom”, apareceram na tela as mensagens “última oportunidade para pedires um desejo” e, pouco depois, “desejo concretizado”. Se o normal num concerto/set seria o desejo de escutar mais uma música, esse não se concretizou. Talvez se concretizem desejos mais individualizados de quem andava pelo público deste palco principal, onde a seguir mantinha-se um produtor português: Branko.

Branko lançou em março o seu novo disco, o quarto a solo, intitulado SOMA, onde se celebra o espírito de colaboração. A apresentação do disco nesta edição do Sónar Lisboa foi reflexo disso mesmo. Ainda antes de entrar em palco com os músicos que o acompanharam, escuta-se, mas também se vê, um medley de temas deste disco e do processo de gravação do mesmo. Depois lá entra e faz a festa com uma teclista e um guitarrista, sobretudo a apresentar essas músicas novas. A meio do concerto concentrou as atenções apenas em si, para apenas com uma pequena mesa e luzes a acompanhar, dar baile com os ritmos das suas produções anteriores – mais celebradas, provavelmente por familiaridade, pelo público – e introduzindo uma ou outra nova. Para terminar, voltou a recuar no palco, regressando a teclista e o guitarrista, para muitas desse SOMA, mas também outras bem conhecidas, como a “Reserva pra dois”, que fazia com que num curto espaço de tempo se voltasse a ouvir a voz de Mayra Andrade. Tendo em conta que estávamos a meio da tarde, vale a pena salientar a enchente airosa assistida no palco principal, até porque acabou por reunir bem mais pessoas do que aquelas que no dia anterior, num horário semelhante, se reuniram no SonarClub by Estrella Damm para ver o espetáculo de Oneohtrix Point Never. 

Lá fora, VHOOR fazia uma plateia abanar os glúteos com o seu divertido set de funk brasileiro. De novo dentro do SonarClub, o ritmo estava animado com a italiana residente em Portugal CC:DISCO!, que trouxe um set quase carnavalesco, mais virado para o house do que para o disco do seu nome artístico. Mas mesmo assim, não se pense que o disco, como género musical, ficou de fora, até pela própria história da fluidez entre o disco e o house. No exterior, ainda para aproveitar o clima acalorado, demos um salto ao palco SonarPark by Carhartt WIP, onde ainda vimos a enérgica agressividade de GROVE, projeto não-binário britânico de raízes jamaicanas. Um electro rap/punk industrial, sombrio e reivindicativo, onde se ouve um “fuck the landlords” pelo meio.

Com o cair do sol, Rui Vargas voltava a subir a palcos do Sónar Lisboa, apenas 1 dia depois da sua atuação anterior, já que estava desta vez a substituir a atuação cancelada de Moullinex GPU Panic. Da transição do DJ set de Rui Vargas para o altamente esperado de Bonobo, foram curtos os minutos. Tanto que algumas pessoas pareciam entrar com pressa de preencher os curtos espaços vazios do pavilhão.

Bonobo foi rápido a construir o terreno da tão sua eletrónica, que é simultaneamente intimista como de club. Os seus beats têm um tom orgânico ou até jazzístico, e levam cada pessoa numa jornada pessoal nostálgica que culmina no êxtase e na superação através da dança. Enfim, a catarse. E é tão bom presenciar alguém que tem essa capacidade num dj set. Bonobo manteve-se fiel a si mesmo, mas soube puxar do ritmo mais alto, que mantinha o público do Pavilhão Carlos Lopes a encher a sala de calor durante as duas horas do seu set. Uma das apostas mais ganhas, mas também certamente mais seguras, por parte da programação do festival, que vai entendendo que o Sónar Lisboa se faz sobretudo de um público que procura a maximização de uma noite de festa num club, porém aqui por um fim de semana adentro. 

 

Shygirl @ Nuno Alexandre

Há, pelo meio, que diversificar o cartaz, e Shygirl poderia ter sido um desses nomes. A sofrer de ser um festival que se encerra na madrugada de um domingo para uma segunda-feira de trabalho para muitos, o dj set de Bonobo foi, sem dúvida, o cabeça de cartaz do dia. No fim do set, o pavilhão esvaziou-se para menos de metade das pessoas que lá estavam. E, infelizmente, Shygirl não fez por segurar os resistentes ou convencer quem estaria apenas a fazer uma pausa lá fora. Se o espetáculo tinha mantido algum tom enigmático por não se apresentar quer como formato live ou como dj set, mas sim como “Shygirl presents ‘Club Shy’”, rapidamente percebemos o que é que isto significa.

Shygirl convidou-nos para o seu club, como quem indica que fará um dj set entre amigos. É de amigos que se reúne no palco, que pouco mais fazem além de dançarem e apoiarem a amiga Shygirl. Ouviram-se temas seus do seu recém-editado EP “Club Shy”, como “4eva”, “f@k€” ou “thicc”, que esperávamos que ganhassem algum protagonismo com Shygirl, possivelmente cantando e diferenciando esses temas do resto do set, um pouco à imagem do que conseguiu Nia Archives na noite anterior. Mas não foi isso que aconteceu. Entre os seus temas e os de outras divas ou da eletrónica ou da pop empoderada e libertária – remisturou temas como “Incendio” de Arca, “Toxic” de Britney Spears ou “Into You” de Ariana Grande –, o que ficou na retina foi uma valente salganhada.

Os temas são verdadeiros bangers que tendem a resultar em dj sets, quer esses anteriormente referidos como os bons bops da própria Shygirl, mas este formato de apresentação parece meio atabalhoado, pouco preparado e cuidado, com ritmos e faixas sobrepostos como se, de facto, estivéssemos numa festa privada entre amigos a rir do acontecimento, mas a dançar na mesma. Num festival, mesmo que seja nas suas últimas horas, dificilmente isto resulta, sobretudo quando Shygirl pouco pega no microfone, quer para cantar ou se dirigir ao público. Mas fê-lo, sobretudo, de forma inconsequente, como também foi a mistura que como DJ fez, entre batidas demasiado estridentes a “picarem” e a convidar que se abandonasse o recinto. Assim o fizemos, aceitámos o repto, com o amargo final deixado pela deceção do espetáculo de Shygirl, até pelas altas expectativas que tínhamos.

O cansaço também já estava altamente concentrado nos nossos corpos, porque isto de espírito de rave num fim de semana inteiro, não é coisa pouca. Saímos com a sensação de que o Sónar Lisboa de 2024 cumpriu. Entregou como prato principal a rave solicitada, sobretudo pelo techno, mas também abraçando o house, e ainda abriu espaços a experimentalismos eletrónicos ora mais pop, ora mais alinhados com a meme culture, ou ainda menos dançáveis e mais contemplativos.

Entre a reflexão que vai sendo feita de edição para edição, esta extensão lisboeta do já histórico festival de Barcelona sabe que se deve agarrar também a valores da música portuguesa eletrónica, ou até da que faz pontes com Portugal. Talvez seja este o caminho para edições futuras, apesar da reflexão ser sempre necessária para repensar até as questões de logística do público que têm pautado o festival. Assentando a poeria deste fim de semana, para já, com alguma estranheza, foi anunciada uma edição do Sónar Lisboa para o próximo ano, sem detalhar, para já, nenhuma data ou informação sobre o formato. Talvez, já estejam a baralhar as cartas mais uma vez.

 

 

Texto: Eduardo Antunes
Fotografia: Nuno Alexandre

FacebookTwitter