
O peso e a promessa do segundo dia do Primavera Sound Porto
O peso e a promessa do segundo dia do Primavera Sound Porto

O peso e a promessa do segundo dia do Primavera Sound Porto
O segundo dia de Primavera Sound Porto pertenceu, inegavelmente, aos Deftones. A maior enchente do dia formou-se diante do palco Vodafone com a fé depositada no regresso da banda a Portugal, e o grupo de Sacramento correspondeu com um espetáculo mágico e extraordinariamente monumental, sublime viagem de emoções celebrada em regime de comunhão calorosa.
Arrancando com a atmosférica “Be Quiet and Drive ( Far Away)” e seguindo imediatamente para o hino que é “My Own Summer (Shove It)” – ambos retirados do seminal Around the Fur, um dos discos que ajudou a estabelecer as bases do emergente movimento nu-metal –, passaram imediatamente para “Diamond Eyes”, de 2010, e posteriormente para uma sequência perfeita com “Tempest ” e “Swerve City”, do excelente Koi No Yokan, ditando assim o tom do concerto: entre o passado e o presente (relativamente) recente, entre a melodia onírica e o rasgo emotivo de agressividade, pois no fundo é isto que os Deftones realmente são – uma banda de post-hardcore/metal alternativo em modo shoegaze, capaz de se reinventar ao mesmo tempo que recorda o percurso que até agora efetuou.
Na verdade, foi precisamente isso que continuaram a fazer com as interpretações magistrais dos clássicos “Feiticeira” e “Digital Bath” – pérolas de um ainda icónico White Pony – para logo a seguir avançarem no tempo ao “sacarem” a potentíssima “Rocket Skates”. “Headup”, a bola de fogo recheada de groove metal que gravaram com Max Cavalera após este ter saído dos Sepultura, representou outro momento soberbo, assim como o hit de reconforto nostálgico que é hoje “Change (In the House of Flies)”. Já na sequência final ouvimos “Genesis” (o tema mais recente do alinhamento, mas que já soa a clássico) ,“Minerva” e o encerramento surrealmente apoteótico com a fúria de “7 Words”, berro inconformista imortalizado no álbum de estreia Adrenaline, que este ano comemora três décadas.
Foi então assim, entre a libertação visceral e a transcendência poética, que se apresentaram os Deftones nesta noite de sexta-feira: confiantes, versáteis e no topo da sua forma (incluindo um Chino vocalmente irrepreensível), gozando do estatuto de veteranos mas exibindo a garra típica de uma banda em busca da consagração. Um dos melhores concertos do ano, e muito possivelmente o melhor desta edição do Primavera.
Chat Pile
E se é evidente que o destaque da noite de sexta-feira foi para o regresso dos norte-americanos, muito se pode também dizer sobre a estreia triunfal dos Chat Pile em território nacional. Oriundos da cidade de Oklahoma (EUA), assinaram um dos mais impressionantes concertos desta edição, provando que são, sem dúvida alguma, uma das propostas mais geniais e refrescantes no atual panorama da música pesada. Se em estúdio a qualidade das músicas já impressiona, ao vivo a entrega é duplamente pujante, um autêntico tanque de sludge revestido a noise capaz de fustigar almas com uma brutalidade suprema.
Situados algures entre a irreverência dos Jesus Lizard e o músculo vigoroso de uns KEN Mode – só para citar algumas referências que nos parecem claramente presentes –, interpretaram temas como “I Am Dog Now”, “Frownland” (possivelmente a mais brilhante composição até agora assinada por estes norte-americanos, equilíbrio perfeito entre peso vigoroso e melodias poderosas) ou “Why”, com uma força ainda mais vibrante que aquela que já sentimos nos dois discos do grupo. Dizer que isto foi intenso seria um eufemismo, pois o que aqui tivemos foi uma descarga de adrenalina que nos deixou completamente extasiados.
Pelo meio ainda nos pudemos rir com o vocalista Raygun Busch, que adotou, nos interstícios das músicas, o papel de cinéfilo/movie buff, citando várias cenas de filmes rodadas em Portugal (do 10ª capítulo de Velocidade Furiosa, filmado, parcialmente, nas estradas de Viseu, a um 007 – Ao Serviço de Sua Majestade protagonizado por George Lazenby). Ainda assim, não deixou de adotar um tom mais sério ao abordar igualmente o atual conflito em Gaza, porque a música também se faz de causas humanitárias. Mais do que um concerto, isto foi um verdadeiro acontecimento.
A nostalgia é uma arma
Os Los Campesinos! recusam-se a envelhecer. Com guitarras antémicas e refrões apontados aos céus, a banda galesa resiste com encanto cabotino à passagem do tempo. No Porto, a banda gaulesa cantou, gritou e chorou com o mesmo zelo de há 18 anos, sem que isso representasse qualquer tipo de contradição. All Hell, o sétimo álbum da banda de Cardiff, foi o mote de uma assombrosa passagem pelo palco Revolut, 15 anos depois de se terem apresentado no festival Paredes de Coura. Mas o alinhamento de sexta-feira foi, sobretudo, a súmula de uma banda em expansão, percorrendo duas décadas de angústia geracional, frustração adolescente e emoções à flor da pele. Entre o suor e a comoção do mosh pit, reencontram-nos — mais velhos, é certo, mas ainda com o desejo de pertencer a algo maior.
Escutaram-se hinos como “We Are Beautiful, We Are Doomed”, “The Sea Is a Good Place to Think of the Future” e “Romance Is Boring”, trocaram-se olhares de cumplicidade, proferiram-se injúrias ao inferno capitalista em que vivemos. No fim, um bonito momento de comunhão antecipou a catarse emocional de “You! Me! Dancing!”, com os vários membros da banda abraçados em círculo, antes de a escalada antémica do refrão nos devolver a um tempo em que tudo era mais simples, quando o eco das vozes em uníssono parecia carregar a condão de poder transformar o mundo.
Los Campesinos!
Entre o cheiro a novidade da brasileira Liniker e a sensação de voltar a um local onde já se foi feliz (e, queremos acreditar, vamos continuar a sê-lo por muito tempo), escolhemos o conforto dos Beach House. Foi o 17º concerto da banda de Baltimore em Portugal, e o terceiro no contexto do Primavera Sound Porto. E, mesmo assim, a ocasião foi celebrada como se tratasse de uma primeira vez. Porque a beleza que Alex Scally e Victoria Legrand recriam em palco é rara e intemporal. Ali, no anfiteatro natural do Palco Vodafone, fizeram-nos jurar que o tempo parou por instantes, e que aquela música – etérea, melancólica, envolvente – possui a capacidade de suspender tudo o resto.
Menos inspirados estiveram os Been Stellar, que infelizmente sofreram de um som “ingrato” e pouco definido que não realçou a força do seu indie rock à Pavement/Modest Mouse com toques de Sonic Youth e que na estreia “Scream from New York, NY” soa tão bem. Os nova- iorquinos Fcukers, por outro lado, ofereceram uma bela e estimulante sessão de electroclash/dance punk que, no fundo, formou a pista de dança de um sonho feito de brisas sedutoras. Ritmado e simultaneamente etéreo, como uma discoteca de batidas caleidoscópicas, os Fcukers “sopraram” ares de magia hipnótica em que o retro conseguiu soar a novo.
Texto: Jorge Alves, Filipe Costa
Fotografia: Hugo Lima/Primavera Sound Porto 2025