
O Porto vestiu-se de verde no arranque do Primavera Sound
O Porto vestiu-se de verde no arranque do Primavera Sound

O Porto vestiu-se de verde no arranque do Primavera Sound
O verde foi a cor dominante no arranque do Primavera Sound. Uma horda de fãs das mais variadas tribos e geografias – emos reformados, ravers nostálgicos, fashionistas do Tik Tok – vestiu a camisola verde fluorescente para celebrar o primeiro “brat summer” português, cerca de um ano após a britânica Charli xcx – que não se deixou ser fotografada pela imprensa – ter colocado esse termo (algo como “pirralho” ou “fedelho”, em tradução livre) nas bocas do mundo. Foi graças a ela, aliás, que “brat” se tornou a palavra do ano para o dicionário Collins. E, ainda assim, a cantora nascida Charlotte Emma Aitchison continua a encarnar um paradoxo difícil de replicar, situado algures entre a sensibilidade underground de uma jovem criada no coração de Essex e a urgência populista de um fenómeno cada vez mais difícil de escapar.
No primeiro dia de festival, a noite foi dela — e também deles, delas e delus. Um corpo cintilante a comandar um mundo pop pós-digital, foi a artista certa no momento certo. Trouxe euforia, precisão pop e uma coleção de canções que continuam a traduzir o presente como muito poucas – viscosas, nostálgicas quanto baste e com o coração preso às pistas de dança dos anos 90. O choque elétrico de “365”, a inaugurar a estreia da inglesa em terras lusas, deu lugar aos arpejos pegajosos de “360”, já depois de a cantora, acompanhada apenas de um cameraman de serviço, ter deixado cair a faixa vertical que tapava a tela atrás de si.
A apresentação foi enxuta: uma demonstração cabal de visuais berrantes e energia contagiante, com um alinhamento previsível mas certeiro que percorreu o núcleo duro do seu último álbum durante a melhor parte de uma hora. E não foi preciso mais do que esses 60 minutos para condensar numa performance a ascenção meteórica da artista que melhor soube comandar o público durante a noite de quinta-feira. Estava tudo lá: angústia digital, hedonismo maquilhado de ironia e um referencial de estéticas e influências à flor da pele, da herança electro da escola Ed Banger à revolução pop mutante levada a cabo por SOPHIE e restantes estetas da PC Music.
Debitaram-se juras de amor ao som de “Apple”, soltaram-se moves coordenados no souvenir “Unlock It” e escutaram-se as vozes espectrais de Lorde e Billie Eilish nas remisturas de “Girl, so confusing” e “Guess”, respetivamente. E porque nada nasce do vácuo, hove ainda tempo para três viagens ao passado. “Vroom Vroom” – mão no volante, quinta engrenada e prego a fundo num rap incendiário – abriu caminho para o delírio coletivo de “Track 10”, esse pedaço viscoso de hiperpop em ponto de ebulição, antes de “I Love It”, original das Icona Pop escrito pela caneta mágica da inglesa, dar por encerrado este happening pintado a verde. “Quero que isto dure para sempre”, lia-se, no fim, nos ecrãs verticais do palco Porto. “Por favor, não deixem que isto acabe”, continuava a mesma mensagem. O público é soberano e parece ter decidido: o brat summer não é um fenómeno de estação — é para ficar.
Depois do “brat summer”, veio o “imaginal autumn” — ou assim decretou a internet. Na ressaca de um verão que nunca terminou, uma dupla oriunda de Miami, nos Estados Unidos, deu à luz um álbum precioso que prometeu dar continuidade ao revivalismo Y2K impulsionado por Charli xcx. O seu nome: Magdalena Bay. O disco em questão: Imaginal Disk, exemplo vital de uma pop acetinada e futurista, que a dupla de Matthew Lewin e Mica Tenenbaum apresentou, na íntegra, no seu regresso a Portugal (a estreia decorreu em 2023, num palco terciário do Rock in Rio).
Encaixados no palco Revolut, o mais pequeno do festival, foram o aquecimento perfeito para os voos altos que se seguiram. A moldura humana era modesta nos minutos que antecederam a sua entrada, mas rapidamente foi crescendo à medida que os devotos se iam aglomerando nas filas da frente, sem receio de abdicar de uma posição privilegiada no palco onde Charli xcx atuaria mais tarde. Podiam não ser muitos, mas estavam lá por inteiro.
Em formato banda, com bateria, guitarra e teclados adicionais, a dupla foi igual a si mesma, percorrendo o metaverso de Imaginal Disk com mestria e astucia económica. A receita dos norte-americanos passa por devolver pequenas canções pop reluzentes com uma mensagem de alcance universal; confiar na sua fórmula é aceitar levitar até planos superiores. A sua música é pueril e deliberadamente naïf, e é justamente aí que reside a sua força: na forma como se entregam, sem ironia, a melodias exíguas, com sintetizadores vaporosos e harmonias cintilantes a funcionarem como portais para uma odisseia pop em estado de sublimação.
A cor da desesperança
Vestia-se de verde o público do primeiro dia de Primavera Sound Porto, mas nem todos seguiam a cartilha do lima desbotado. Momentos antes de Charli xcx tomar conta da noite, o verde Irlanda dos Fontaines D.C. fazia pandã com a maré verdejante que preenchia o prado do Palco Porto. O concerto de quinta-feira foi o mais recente capítulo de uma história iniciada há três anos, no festival NOS Alive, e que tomou novo fôlego em 2024, após a apoteótica passagem pelo festival Paredes de Coura e a consequente consagração na arena do Campo Pequeno, em Lisboa.
Em causa estava a apresentação de Romance, álbum que veio gerar discórdia entre fãs e alimentar o ódio de detratores. Depois de três álbuns que colocaram a banda de Dublin na dianteira do pós-punk, o quarto álbum dos irlandeses foi a verdadeira prova de fogo. Afinal, os Fontaines D.C. nunca precisaram de grandes proclamações para tornar visíveis as inquietações que os movem. No Porto, mostraram-se mais politizados do que nunca. “Israel está a cometer genocídio – usa a tua voz” lia-se, a certa altura, nos ecrãs. Na tela central, projetava-se a bandeira da Palestina. A luta é silenciosa e trava-se em horário nobre. Grian Chatten, ao centro, continua a parecer um vocalista desconfortável com o protagonismo, mas é precisamente aí que se encontra a autenticidade da banda que ladeia com Conor Curley, Conor Deegan, Tom Coll, Josh O’Connor e Carlos O’Connell, mais concentrada em manter o rastilho aceso da mudança do que em colher a simpatia de audiências neutras.
Grian Chatten, dos Fontaines D.C., com a bandeira da Palestina atada ao microfone
Se Charli XCX foi, neste dia, a headliner oficial do festival, para outros a grande atração era indubitavelmente a presença dos lendários The Jesus Lizard, nome fundamental na história do noise rock americano e autor de obras seminais como Goat ou Liar. Neste concerto, que começou já no início da madrugada (daí o “good morning” literal com que a personagem que é o frontman David Yow nos cumprimentou), testemunhamos uma prestação explosiva, selvajaria rockeira levada a cabo com a garra fulminante de uma banda que ainda faz questão de ser uma máquina demolidora.
Com o referido David Yow a desempenhar o papel de frontman endiabrado (muitos diriam, até, possivelmente alcoolizado), e claramente descontrolado – logo na primeira música já estava a dar tudo no crowdsurfing –, o grupo com raízes no Texas debitou um pujante manifesto de irreverência sonora que em certos momentos chegou mesmo a arrepiar, até pela força dos riffs ruidosos, opulentos e “angulares” que saíam da guitarra do mítico Duane Denison. Num dos concertos de atitude mais rock’n’roll de todo o festival (só a presença de Yow contribuiu para isso, o homem é uma força da natureza imprevisível que também se mostrou cortante no discurso que adotou, como quando se referiu a um antigo senhorio como sendo um verdadeiro “cocksucker”), ouvimos temas mais recentes misturados com clássicos incontornáveis como “Seasick”, com o seu riff arrastado e surrealmente poderoso a proporcionar-nos a mais deliciosa catarse (e um dos mais excitantes momentos desta edição). Se é inegável que estão mais velhos, a verdade é que os The Jesus Lizard ainda conseguem debitar uma bela descarga de rock desenfreado, incendiário e “sem merdas”.
Contudo, por muito boa que tenha sido esta prestação, possivelmente ainda mais impressionante foi a que vimos antes por parte dos londrinos High Vis. Alternando entre a força e a entrega do punk/hardcore – por vezes a piscar o olho ao legado dos Fugazi ou até de uns Crass –, mas incorporando pelo meio elementos da britpop e até da cena madchester que viu nascer os The Stone Roses, assinaram uma passagem verdadeiramente inspirada e inesquecível. Num concerto onde a energia entre banda e público era praticamente palpável, sentimos na pele a ferocidade de um enorme berro punk transmitido em espírito de euforia coletiva. É que se em estúdio tudo soa mais polido, ao vivo a entrega é consideravelmente mais possante e visceral, numa celebração suada de malhas que parecem rasgar a pele para iluminar a alma. Foi assim quando subiram ao palco ao som de “Talk For Hours”, e terminou da mesma forma, em catarse, com a fantástica “Choose to Lose”. No final, só queríamos continuar a viver neste concerto, porque isto foi mágico; uma banda no seu período áureo, e nós tivemos a sorte de o testemunhar, num daqueles momentos onde estar vivo foi uma bênção.
Antes, ao final da tarde, ainda pudemos “viajar” na companhia dos Glass Beams, projeto fundado em Melbourne durante a pandemia por Rajan Silva, australiano de ascendência indiana que através da sua banda se lança numa exploração espiritual que oscila entre o psicadelismo e o groove dançável, entre as guitarras e os apontamentos eletrónicos, e acima de tudo entre o oriental e o ocidental. Uma visão musicalmente cosmopolita e absolutamente transcendente que nos renovou a alma.
Texto: Filipe Costa e Jorge Alves
Fotografia: Hugo Lima / Primavera Sound Porto 2025