Pode o hardcore mudar vidas? Com Cap’n Jazz e Turnstile, a resposta no Primavera Sound foi sim

Pode o hardcore mudar vidas? Com Cap’n Jazz e Turnstile, a resposta no Primavera Sound foi sim

| Junho 20, 2025 2:10 pm

Pode o hardcore mudar vidas? Com Cap’n Jazz e Turnstile, a resposta no Primavera Sound foi sim

| Junho 20, 2025 2:10 pm

Com os irmãos Mike e Tim Kinsella, o primo Nate Kinsella e os cúmplices de sempre Victor Villarreal e Sam Zurick, os Cap’n Jazz são um caso sério de amor à familia. Mesmo sem o guitarrista Davey von Bohlen, que deixaria a formação do grupo após o lançamento do seu único álbum, a reunida banda de Illinois (EUA) levou um pequeno grupo de devotos ao delírio na sua estreia em Portugal, no terceiro dia do Primavera Sound Porto

Podemos especular sobre o revivalismo das reuniões e os seus propósitos no contexto inflacionado dos grandes festivais, mas, para o melónamo mais aficionado, ter a possibilidade de reviver – ou de sentir pela primeira vez – a presença física de uma banda de culto em palco é sempre uma experiência imperdível. E o que os autores de Burritos, Inspiration Point, Fork Balloon Sports, Cards in the Spokes, Automatic Biographys, Kites, Kung Fu, Trophies, Banana Peels We’ve Slip On e Egg Shells We’ve Tippy Toed Over – essa bíblia emo do Midwest americano, concebida há 30 anos – fizeram na derradeira noite de sábado, longe dos holofotes do Palco Porto, no extremo oposto do recinto, foi algo próximo de um pequeno acontecimento.

Primavera Sound Porto

Tim Kinsella, durante o concerto de Cap’n Jazz

Falamos, afinal, de uma banda formativa dos 90. Das cinzas dos Cap’n Jazz nasceram projetos como American Football, The Promise Ring e Joan of Arc, sobre os quais se ergueram as bases da geração que haveria de desembocar na quarta vaga emo, com bandas como Algernon Cadwallader, Snowing e Marietta a prolongarem esse legado vinte anos depois. Na noite de sábado, contudo, o choque geracional não parece ter representado qualquer tipo de entrave. Na agitada plateia que ocupava a encosta do Palco Super Bock encontravam-se, de igual para igual, jovens, graúdos e cinquentões — todos com um sorriso rasgado na cara. A festa fez-se ao som de hinos anasalados como “Oh Messy Life”, “Little League” e “Take On Me” e gritos com sabor a juventude. 

Tim, do alto dos seus 50 anos, continua a carregar a mesma urgência de sempre. É ele quem mais circula pelo palco — atirando a pandeireta para o público num momento e reclamando-a de volta noutro, para logo a seguir devolvê-la à multidão; cantando e rebolando pelo chão; levitando por cima do público em crowdsurfing interminável. 

Em resumo, o caos movido por um forte sentido de comunidade.

 

A chama acesa do hardcore

 

Se Jamie xx foi o headliner deste dia, a verdade é que se podia argumentar que os norte-americanos Turnstile também o foram – pelo destaque claro no cartaz e, acima de tudo, pela multidão que arrastaram para com eles festejar uma atuação que, tal como outras no cartaz, urge ser descrita como uma catarse coletiva… porque foi exatamente  isso que se viveu: uma  festa que soava a manifesto – de vitalidade, de relevância e de amor geracional. Assim o dizemos porque há nos Turnstile a sensação de estarmos perante os Fugazi desta era, tanto pela ambição musical – escute-se o mais recente “Never Enough, obra de hardcore melódico e bem orelhudo a querer ardentemente quebrar barreiras estilísticas, com participações que incluem figuras de renome como Shabaka Hutchings ou Hayley Williams –, como pela identificação que é mais facilmente aceite do que explicada; simplesmente está lá, e isso basta para que se criem lendas.

Se há algo que se pode apontar a este concerto, contudo, é o sentimento de que em palco a banda de Baltimore perde um pouco da riqueza musical de estúdio, soando inevitavelmente menos polida; contudo, isso acaba por não importar quando olhamos à nossa volta e vemos uma multidão a berrar as letras, a fazer mosh — a viver um concerto que é uma descarga fulminante como se nada mais houvesse depois do seu fim. Entre músicas como a referida “Never Enough”, “I Care”, “Endless” ou “Seein’ Stars”, os Turnstile protagonizaram um grito de energia luminosa, pulsante e festiva que ecoou intensamente pelo Parque da Cidade. Hardcore (a querer ser bem mais do que simplesmente HC, isto é praticamente genre-defying) é isso mesmo. Estamos na era deles, e ninguém o pode negar.

Pelo meio havia também muita curiosidade para testemunhar a estreia das Horsegirl, e se alguns dirão que a atuação desta banda inteiramente feminina oriunda de Chicago foi algo aborrecida – efetivamente, tinham viajado para o Porto na manhã do concerto e encontravam-se visivelmente cansadas –, a verdade é que não deixou de haver aqui um certo encanto, essencialmente pelo caracter deliciosamente despojado daquelas canções indie a piscar o olho a uma ideia de pós-punk. Podem fazer melhor – e assim certamente o farão quando cá regressarem –, mas não deixaram de oferecer uma estreia competente.

Fantástica esteve a veterana Kim Deal, a frontwoman da Breeders e ex-baixista dos Pixies que no ano passado lançou o seu muito pertinente álbum de estreia a solo Nobody Loves You More, obra musicalmente expansiva que mostra uma artista em forma e sem nada a provar (e, ainda assim, empenhada em mostrar que a sua sede criativa permanece intacta).

Primavera Sound Porto

Brendan Yates (esquerda) e Franz Lyons (direita), durante o concerto de Turnstile

E o que aqui se viu e ouviu foi precisamente isso: Kim Deal amparada por uma banda irrepreensível, com vozes, sopros e cordas, a dar uma lição de rock alternativo que, sendo fiel à sua matriz, se expandia muito além dela. E foi nesse contraste coeso, nessa exploração sem limites cuidadosamente preparada, que residiu a beleza deste admirável renascimento da norte-americana. Tocou temas do seu ovo álbum, claro, mas recordou também êxitos como “Cannonball”, clássico eterno das Breeders que viu a luz do dia em 1993, ou a incontornável “Gigantic”, dos Pixies, já na reta final do concerto. Mais do que simples nostalgia, Gordon  brindou-nos com uma sessão de reinvenção familiar própria de quem olha com orgulho para o passado enquanto aposta na grandeza do presente.

Sempre a cantar a mesma canção está Dan Bejar, ou seja, Destroyer. E ainda bem. Camisa amarrotada, postura arqueada e barba por fazer, não esquece o peso simbólico que “Kaputt” e outros temas desse álbum maior, lançado em 2011, tiveram na definição da sua identidade enquanto crooner deslocado do presente. Mas a elegância dos novos temas (trouxe um Dan’s Boogie acabadinho de sair) assenta-lhe bem. Apoiado por um conjunto de instrumentistas competentes, com guitarras, trompete e bateria a conferir corpo e textura, devolve ao público canções carregadas da mais fina ironia, sempre com a inteligência e sofisticação dos tempos mais auspiciosos. Quem disse que é impossível envelher com graciosidade? 

Texto: Filipe Costa e Jorge Alves
Fotografia: Hugo Lima/Primavera Sound 2025

FacebookTwitter