
Nos vinte anos da Lovers & Lollypops, demos um mergulho no passado para vislumbrar a utopia do futuro
Nos vinte anos da Lovers & Lollypops, demos um mergulho no passado para vislumbrar a utopia do futuro

Nos vinte anos da Lovers & Lollypops, demos um mergulho no passado para vislumbrar a utopia do futuro
Quem teve a sorte de presenciar o Milhões de Festa lembra-se bem da magia das Piscinas Municipais de Barcelos. Espécie de mini-paraíso de descontração sonora, viveram-se aqui tardes fabulosas de convívio e diversão, daquelas que guardamos na memória como símbolo máximo de uma época maravilhosa que ainda hoje deixa saudades – ocorreu na década passada, mas já nos soa a outra vida. Lovers
Pois bem, foi precisamente a este espaço que regressamos para o vigésimo aniversário da Lovers & Lollypops, e se o sentimento de felicidade nostálgica era claramente palpável (parecia mesmo impossível não nos cruzarmos com alguém e relembrar os “bons velhos tempos” do Milhões, como se tudo tivesse sido um sonho do qual nos forçaram a acordar), por outro lado também se sentia uma vontade genuína de recriar – e diríamos mesmo adaptar – essa magia no presente. Era como se as lembranças do passado funcionassem como um veículo de motivação para plantarmos memórias futuras , o que efetivamente aconteceu nesta bela tarde soalheira em que o “espírito” do Milhões regressou em todo o seu esplendor. E foi lindo – muito mais do que qualquer adjetivo pode fielmente descrever. Tentaremos, no entanto, porque as palavras também imortalizam amores.
A verdade é que o próprio cartaz ilustrava essa procura pela contemporaneidade, a necessidade de provar que a Lovers continua a viver da reinvenção constante mesmo nesta fase em que já são veteranos da cena. Acima de tudo, o lineup enfatizou aquela que, hoje, é a maior preocupação desta editora/promotora que surgiu como hobby até eventualmente virar profissão: o contacto profundo com a ideia de comunidades – muitas vezes marginalizadas pela sociedade, e na Lovers reunidas com o intuito de formar uma grande família neste palco que é o mundo que nos rodeia. Não é de agora essa ideia – de certa forma sempre esteve presente -, mas é um conceito que tem vindo a ganhar força à medida que os valores da democracia vão sendo atacados.
A inclusão esteve, aliás, bem presente logo ao início (já depois do DJ Set revigorante da Cativo, figura bastante ligada à história da Lovers e que já tinha atuado na piscina no âmbito das festas Thug Unicorn) com o concerto dos Cremalheira do Apocalipse. Um projeto que viaja entre o rock, o spoken word e uma clara abertura à criatividade sem barreiras (alguns dos instrumentos usados eram, na verdade, baldes e bidões), constituído por pessoas com doenças mentais e deficiências intelectuais, que encontram no refúgio da arte um espaço onde podem ser livres. Música como terapia e empoderamento, que se fez sentir de forma bem bonita por Barcelos como um grito de libertação, onde tudo o que se pedia era a simples aceitação.
O mesmo voltou a acontecer, já no final, com a chegada dos La Familia Gitana para a prestação mais festiva do dia – encerramento apoteótico com música de inspiração cigana para combater preconceitos através da dança. Uma das apostas mais recentes da Lovers, este concerto serviu também como um showcase do que aí vem, mas, acima de tudo, foi uma estupenda demonstração da vitalidade e riqueza sonora de uma comunidade extremamente ostracizada, com o sentimento de união entre banda e público a atingir níveis de beleza surreais: dançou-se, sim, mas também se cantou com muita alegria, bateram-se palmas e, já durante o encore, uma pessoa da audiência foi mesmo convidada a subir ao palco – as barreiras desconstroem-se para melhor fortalecermos as ligações. Numa das mais contagiantes partilhas de energia que esta piscina já testemunhou, vibramos com o corpo para acolhermos com o coração.
Um pouco antes, outra das novas apostas da Lovers subiu ao palco da piscina – um furacão já bem conhecido chamado Hetta. E por muitas vezes que já os tenhamos visto ao vivo, esta foi certamente uma das mais poderosas, frenéticas e inspiradas prestações que o quarteto do Montijo alguma vez assinou. Pós-hardcore/noise caótico debitado com uma urgência incisiva que praticamente nos conduziu à catarse coletiva, unidos que estávamos nesta entrega simultânea de euforia intimista – uns a dar tudo junto ao palco, outros a criar pequenas ondas na piscina. Entre guitarras “nervosas” e estruturas alucinantes que nos atingiam a alma como rasgos veementes de adrenalina, os Hetta tocaram músicas já conhecidas e amostras do próximo álbum, deixando novamente claro que são uma das bandas mais marcantes desta geração. É de concertos assim que se fazem as lendas do amanhã.
De outra geração, mas ainda super relevantes nesta, vieram logo a seguir os Lobster – esses sim, símbolo do passado num cartaz maioritariamente apontado para o futuro, banda de culto da era myspace cujo percurso original foi uma aventura que deixou marcas e memórias indeléveis – muitas delas ainda hoje relatadas com carinho por todos aqueles que, com eles, celebraram a sua juventude melómana (a mais lendária dessas recordações será, sem dúvida, a mítica atuação do Milhões, no meio do público e em ambiente explosivo de festança selvagem, mas não nos esqueçamos que estes gajos chegaram até a atuar na casa de banho de uma faculdade).
Contudo, o que aqui fizeram questão de provar – como já tinham feito no concerto de regresso do Understage -, é que a chama ainda arde bem no presente, tendo protagonizado uma das mais brilhantes atuações deste dia. Uma sessão revigorante de math rock noisy e bojudo, ali a recordar os Hella, feito de guitarras “rasgadas”, com texturas super envolventes, e uma bateria possante tocada pelo mago que é o grande Ricardo Martins. Rock requintado num belo final de tarde , onde até a vista para o Rio Cávado tínhamos para adoçar a riffalhada. Não se pedia mais, isto foi perfeito.
De um ambiente idílico viveu ainda a passagem da dupla Violeta Azevedo & Ariyouok, que ofereceram uma belíssima “massagem” sonora à base de flauta, percussão e toda uma manipulação de pedais e maquinaria. Relaxante e contemplativo, numa onda muito downtempo que até recordava as vibes dos Thievery Corporation, foi a “viagem” espiritual que precisávamos antes das descargas dos Hetta e Lobster.
Pelo meio cantamos os parabéns à Lovers, comemos bolo e vivemos um dia inesquecível onde observamos um microcosmos da sociedade ideal. O mundo pode aprender com a Lovers, e nós escolhemos viver com ela.
Texto: Jorge Alves
Fotografia: Carolina Ribeiro