Henrique Tomé
Thin Ice

| Novembro 19, 2025 12:01 am

Henrique Tomé é um músico, produtor e agente cultural natural do Porto. Estreou-se como baixista e compositor nos projetos Balter Youth, Silentide e Vitoria Vermelho, mas foi a 7 de novembro que lançou o seu primeiro álbum a solo – Thin Iceum drama conceptual em dois atos. É uma narrativa sobre fragilidade, construída com delicadeza e revelada aos poucos. Graças à multiplicidade de músicos e instrumentos, Thin Ice é um exemplo prático dos casos em que o todo é mais do que a soma das partes.

O processo de composição deste álbum foi um trabalho de grupo do próprio Henrique Tomé (voz, guitarra, sintetizadores e baixo), de Gabriel Valente (bateria) e João Freitas (guitarra, piano, sintetizador, órgão, back vocals), que contribuíram também no processo de produção e gravação. As gravações decorreram no Estúdio de Cedofeita, no Porto, com a ajuda da editora portuense Biruta Records. O álbum contou também com a participação de Geraldo Gomes (violoncelo), Inês Pinto da Costa (back vocals), Maria Inês Gouveia (back vocals, flauta transversal) e João Guimarães (masterização).

Thin Ice, Pt. 1” é o tema de abertura desta peça de teatro. Começa com um silêncio, que se vai transformando aos poucos numa paisagem, caracterizada por notas longas no baixo e nos sintetizadores, e pelos samples de pássaros. A voz de Henrique Tomé, grave e profunda, surge após um minuto de apresentação da paisagem sonora, criando espaço para o drama que se irá desenrolar. Esta é uma faixa de spoken word, que reflete sobre o percurso de vida do autor até agora: a letra sugere que este percurso foi marcado por perigos, riscos, e pela sobrevivência aos mesmos (“I’ve walked through thin ice/Since the day I was born/Stepped it gently/Toe by toe“). Aos poucos, o artista foi testando limites até perder a conta dos seus dias, só para ser confrontado pela dúvida e pelo cansaço (“Cutting winds have worn me out/And the deep has made me doubt“). 

Henrique Tomé

© Rafaela Gomes

Mal “Thin Ice, Pt. 1” termina, “Replaced” apresenta-nos conflito da história. Esta é protagonizada por alguém que fugiu de uma relação e desapareceu sem deixar rasto (“So you left without a clue/And someone had to fit your shoe/There were no calls left to trace“). Tentou escapar como um rato de laboratório escapa do labirinto em que o aprisionaram, só para concluir que, na verdade, o limite que procurava transpor estava na sua própria cabeça (“You thought you could escape/And throw away the clutter/But in time the lesson you take/Will slice you easier than butter/You see, all the chains you brought/Are bonded tight inside your mind“). O tema é imersivo, de melodia clara na guitarra que nos fica no ouvido, e com ritmos na bateria de instrumental dramático antes da derradeira conclusão – “Some things can’t be replaced“. Isto prova que fugir foi, na verdade, um erro – porque há coisas que não se substituem.

A perda, o desaparecimento e a impossibilidade de substituir aquilo que foi, são assuntos recorrentes, surgindo de novo no breve “Replaced (Interlude)“. A faixa reescreve musicalmente a mesma narrativa, mas inclui elementos inovadores, como a drum machine. Funciona, assim, como um aviso, relembrando que é preciso preservar as coisas únicas e frágeis que ainda nos restam.

Alguns traços marcantes de Thin Ice são os inícios lentos e graduais, que representam uma espécie de calma antes da tempestade. “Paralysed” não é exceção – começa uma vez mais com spoken word, referindo-se ao contraste entre a infância  e a idade adulta. A infância marcada pelo amor e pela proteção, em que se sentia usado “como um amuleto da sorte”; e a idade adulta, repleta de questões, solidão, frieza, de gelo que faz escorregar, de caminhos traiçoeiros e de necessidade de submissão às normas sociais – Well, who can save you now?/We’ve got you tugged in our grip/The ice has made you slip/And now you bow for us”. A voz por cima deste instrumental (com algumas influências de rock progressivo, rock psicadélico e até de space rock) confronta-nos com uma assombração, que nos paralisa e lembra que estamos presos no interior da nossa cabeça, da qual não conseguimos sair.A seguir a vários momentos de introspeção e calma, surge o tema “Edge“. Elemento de contraste, explora ritmos e sonoridades mais típicos do punk rock e do rock alternativo. Até aqui, os instrumentais psicadélicos evidenciavam a ideia de um deserto gelado, de espaço amplo e infinito. No entanto, “Edge” é diferente – os espaços estão mais preenchidos, o ritmo e a melodia ficam no ouvido e convidam à ação. A mensagem é mais urgente e assertiva, dando destaque à solidão, ao desejo de explorar o mundo, de escolher a liberdade e de correr riscos:

“And I’m standing on the edge

And I’m staring down a gun

And I say I’m gonna jump

So that I never have to run

And I’m standing on the edge

And the ice is looking thin

And I’m freeing from your cage

And I’m going for a swim”.

The Pit” evidencia a versatilidade de Henrique Tomé: balada intimista que combina algumas influências de folk e de pop e caracteriza o modo como o próprio artista se vê. Está marcado pela profundidade, pelo passado, pelo trauma e ansiedade. “The Pit” apresenta-nos a emoção como um poço sem fundo, mas, acima de tudo, é a canção de alguém que se sente culpado e se aponta como a razão pelas quais as coisas não deram certo. Ao mesmo tempo, o artista assume a saudade, perguntando se algum dia tudo poderá vir a ser como antes: “And baby/When are you coming home?

Em contrapartida, a mesma pessoa a quem se dirige em “The Pit” é a corda que o tira do fundo do poço, o que é explicado em “Rope“. Na canção, a vida parece uma parede alta; a pessoa é a corda que o segura. Em “Rope”, Henrique Tomé confessa que não é bom a quebrar o gelo.  Viver possui, então, uma dualidade: tanto podemos caminhar sobre camadas finas de gelo, como podemos quebrar o gelo que existe entre todos nós. Então, o som da água no estado líquido, no início de “Rope”, pode simbolizar o gelo que derreteu,  no dia em que a relação começou. Assim como a água mudou de estado, também houve uma mudança no estado de espírito. 

“Rope”, “A Place We Can’t Be Seen” e “Thin Ice, Pt. 2” são os temas mais esperançosos, quebrando a atmosfera gelada do início. “A Place We Can’t Be Seen” é uma promessa de superação, de sair de si mesmo e procurar um lugar seguro e “Thin Ice, Pt. 2” é a prova de que existe sempre uma alternativa. “Thin Ice, Pt. 1” era sobre dúvidas, ilustradas pelo instrumental sombrio, mas a segunda parte é sobre possibilidades, resiliência e regeneração após o trauma. Isto é, ainda que tenha caminhado sobre o gelo durante toda a vida, existe alguém que lhe ensinou novas formas de ultrapassar as adversidades: I’ve walked through thin ice/All my life/You made me spin/We’re never/Ever/Falling in/I’ve walked through thin ice“. 

Flow” é o elemento conclusivo de Thin Ice: nela temos a certeza que o gelo já derreteu. Isto é, existe uma grande evolução entre o início e o final da história: primeiro, havia rigidez e reflexões sobre a fragilidade da existência, mas, no final, essa rigidez transformou-se em água, simbolizando um recomeço. Foi possível vivenciar esse recomeço em pessoa, no dia 14 de novembro de 2025, no RCA – Rádio Clube de Agramonte (Porto). Até lá, ficamos com esta viagem.

FacebookTwitter