The Dirty Coal Train em entrevista: “Não nos interessa explodir e ter aquele tema que toda a gente conhece”

The Dirty Coal Train em entrevista: “Não nos interessa explodir e ter aquele tema que toda a gente conhece”

| Junho 29, 2018 10:09 am

The Dirty Coal Train em entrevista: “Não nos interessa explodir e ter aquele tema que toda a gente conhece”

| Junho 29, 2018 10:09 am


Ricardo Ramos e Beatriz Rodrigues são o corpo e a alma dos The Dirty Coal Train, a banda de garage punk que anda na estrada há mais de meia década, a distribuir da boa destruição aos 4 cantos do mundo. Depois de terem editado o seu último disco em 2016, a dupla oriunda de Viseu lançou digitalmente Portuguese Freakshow no passado mês de janeiro. Neste disco arriscaram-se por temáticas ou sonoridades menos familiares como experimentações electrónicas, sons experimentais mais soturnos, esquizofrenia pop e covers de temas clássicos. 


Este álbum foi gravado no Estúdio King no Barreiro e no Estúdio Golden Pony em Lisboa, tendo sido produzido pelos próprios membros da banda. Portuguese Freakshow saiu fisicamente no dia 4 de maio pela Groovie Records em parceria com a Garagem Records, tendo contado com edição em duplo LP. A propósito disto tudo, estivemos a falar com os dois membros base da banda no Botequim da Graça, em Lisboa. Falámos sobre tudo desde Portuguese Freakshow, passando pelo Barreiro Rocks, bootlegs de vinil, até à história de bandas como Dead Moon, Half Japanese e The Fall

Leiam aqui o resultado desta conversa. 

Do vosso ponto de vista, perspectivas e ideologias, quem são os Dirty Coal Train?

 Ricardo – Ideologias? (risos) 

Sim, uma pergunta mais filosófica. 

Ricardo Dirty Coal Train começou como um projeto meu, quando acabaram as bandas onde eu estava. Começou com a ideia de ser um coletivo, vi rapidamente que não funcionava e então mudei para o oposto. Mudei para uma banda centrada em mim, com pessoas que vão entrando. Com a sonoridade mais centrada à volta do garage punk, aquela coisa de ir buscar discos de anos 50 ou 60 de estética punk. Em termos de ideologias, eu diria que somos fundamentalistas do Do It Yourself e da estética do rock independente. É a primeira vez que estamos a trabalhar com uma promotora. Nestes anos todos as edições, as gravações, as tournés foi tudo feito por nós. De modo independente mesmo. Às vezes a gente ouve aquela conversa da “editora independente”, e ficamos a pensar “bem se isto é um esquema independente, o nosso esquema é ultra-independente”. Nós fazemos tudo sozinhos. Os contactos são todos pessoais seja com promotores, seja com distribuidores, seja com editores. As edições são maioritariamente uma parceria, ou seja não é aquela coisa em que a editora chega, paga o estúdio, diz o que é que quer e pede o single. Nós é o contrário. Gravamos o que queremos e propomos à editora uma parceria, que é basicamente a percentagem de investimento com que eles entram, é a percentagem de discos com que ficam. Tão simples quanto isto. Nós dizemos que temos editoras mas são mais parceiros do que aquela noção que está um bocado ultrapassada no esquema independente de editora. De pagarem X tempo de estúdio, e de terem o esquema todo feito para a banda… mas eu acho isso já é raro, em termos de editoras independentes já são poucas as que fazem isto. 

O que difere Portuguese Freakshow dos vossos outros trabalhos até à data? Como é que foi escrever um disco com 38 músicas e encaixar tudo? 

Ricardo – A questão das músicas acho que não é dificuldade, nós temos sempre uma carrada de ideias. Aliás quando comecei a banda sozinho eu gravei sei lá… 4 álbuns em demo no espaço de um mês (risos). Portanto a minha dificuldade é mais a outra, que é não fazer tantos temas ou então depois pegar nas demos que tenho e escolher tipo “este tema secalhar é giro para trabalhar com estas pessoas”. Neste disco fizemos um pouco isto, pegamos em demos que queríamos trabalhar com outras pessoas porque já tínhamos essa ideia. E por outro lado também quisemos fazer coisas do zero, ou seja aproveitar os convidados e fazer o contrário. Pedir a estas pessoas para serem o ponto de base, começar um tema e depois nós acrescentamos para trocar um bocadinho as fórmulas. 
Beatriz – É criar desafios também. 
Ricardo – Sim, no fundo é para criar desafios diferentes. Tivemos o mais esquisito que foi o “Eulogy for Tod Browning”. Em que eu cheguei com 3 membros dos Act-Ups, que são o Nick Nicotine (Suave), o Johnny Intense que também tem uma data de bandas no Barreiro, e o Sisley (Tracy Lee Summer) que agora também está nos Act-Ups. E basicamente eu pedi a cada um deles para fazer um riff. Eles em estúdio pensaram “Como é que a gente faz um riff? O que é que é isso?”, e eu respondi “Epa não importa, improvisam um riff“. Dei-lhes um metrónomo para ter ali uma coisa que pudesse controlar e disse para fazerem o riff. Depois peguei no que eles fizeram, cortei, esquematizei, fiz um tema, fomos para a secção rítmica, fomos para as vozes e ficou um tema feito. Pronto, e eles ficaram surpreendidos como funcionou. 
Beatriz – E tudo isto num processo muito rápido. 
Ricardo – Sim sim, isto foi tudo muito rápido. Eles estavam um bocado naquela “Mas isto vai ser uma ganda merda, eu estou a tocar um riff e agora o meu riff não tem nada a ver com o dele. Mas como é que tu vais colar isto?”, e eu “Não te preocupes que já vais ver”. Depois no fim ficou aquilo que podem ouvir, assim um tema esquisito mas que achámos que funciona para o nosso gosto pelo menos. 


Beatriz – E depois também por-lhe este nome (ao álbum), Freakshow, parece que é abrir porta a tudo. 
Ricardo – Sim nós temos temas aqui que não são temas, são interludes, porque nós também quisemos convidar pessoas que não são da música. Por exemplo temos um amigo da rádio que nós pedimos para fazer um trailer. Nós sentíamos a coisa da série B nos outros álbuns, e também fomos buscar diálogos de filmes de série B para introdução dos temas. 
Beatriz – Dissemos-lhe para imaginar aí um filme que não existe e como é que ele faria essa apresentação. 
Ricardo – Dissemos “Inventa um filme que não existe”, e ele fez os “Aniquiladores Intergalácticos” (risos). No fundo é um interlúdio, brinca assim um bocadinho com isso. 

No vosso single notei que estão um bocado mais post punk do que garage punk como costumam ser. É uma sonoridade que pretendem apostar mais noutro disco? 

Ricardo – Nós gostamos sempre de variar um bocadinho o núcleo duro. Também gostamos de mantê-lo porque há pessoas que já nos associam ao garage punk. Aquela escola dos anos 90 da Crypt Records, os Jon Spencer Blues Explosion, os Oblivians, os Gories, essas coisas assim mais a rasgar. Mas por outro lado nós temos gostos muito diversificados e gostamos de esticar um bocadinho os limites. Nós vamos ao blues punk, as bandas dessa altura também já iam. Vamos um bocadinho ao surf, onde algumas bandas também estão associadas. E depois temos um gosto pelo post-punk. Uma das nossas bandas favoritas são os Birthday Party, que são uma banda difícil de catalogar porque é o post-punk que apareceu depois do punk. 
Beatriz – Nós também ouvimos muitas coisas diferentes. Ainda esta manhã estávamos a ouvir o novo álbum de Ceramic Dog como a seguir na nossa playlist caseira vinha Kreator (risos). Nós vamos numa gama gigantesca de cenas. 
Ricardo – As pessoas sobretudo neste meio do garage punk separam-se em dois nichos. Um deles é aquele que estávamos a falar ligado à editora da Crypt Records e da In The Red, que é aquela coisa mais rochalhada e agressiva tipo Ty Segall. O outro nicho é um revival que basicamente é mais colado ao som mesmo dos anos 60, como os Fuzztones
Beatriz – Onde tens de ter o Farfisa, tens de ter o fuzz… Até esteticamente a forma como te apresentas. 
Ricardo – É isso, são bandas que cumprem essa estética. Tens de ter o pedal de fuzz, tens de orgãozinho Farfisa, tens de vestir aquela coisa, o sapatinho tem de ser em bico… É mesmo um revival dos anos 60. E acho piada, de volta e meia, a gente estar metida nos dois tipos de festival. Vamos a um festival onde é muito garage revival ou onde é este garage mais punkalhado e rockeiro. Depois a malta discute connosco “Então mas o que é que gostam de ouvir?”, e um gajo lá no meio dizer coisas tipo “Gosto de ouvir John Zorn, gosto de ouvir Morton Subotnick“, e eles “Ahn o que é isso?”. 

O John Zorn sim, ele vem cá agora. 

Ricardo – Sim, o Jazz em Agosto vai ser dedicado a ele. Mas Morton Subotnick é basicamente um gajo dos primórdios da eletrónica… Epá a gente gosta disso, de música clássica e às vezes estamos a ouvir metal e o pessoal pergunta “Então mas vocês ouvem metal?” (risos). Às vezes apetece-nos ouvir metal, não somos duros de ouvir. Tal como também ouvimos coisas muito calminhas. O Loren Connors é dos meus guitarristas preferidos porque é um gajo que faz drones de volta e meia, assim uma coisa muito calma e contemplativa. 

Sim, variar um bocado. Também estar sempre a bater na mesma tecla… 

Ricardo – É aquela coisa, nós gostamos de manter o núcleo duro de rockalhada, que também é para não desapontar quem nos segue. Se fizéssemos um disco completamente diferente… Há bandas que fazem isso, mas eu não gostava de o fazer. Mas depois aproveitamos aquele espacinho e pensamos “Ok já fizemos aquele núcleo duro, agora vamos avacalhar um bocadinho aqui no resto. Vamos brincar com a fórmula.”. 
Beatriz – E é engraçado receber algumas reações positivas de pessoas que já ouviram o álbum na integra. Mesmo também por estarem um pouco surpreendidos, de como é possível juntar esta coisa toda. E isto parece que faz sentido. 
Ricardo – Pois, até agora toda a gente nos diz que faz sentido. Assim coisas muito fora. Beatriz – É tudo muito estranho. E eu que sou aquela gaja em que está quase sempre a berrar, tenho aí um temazinho em que estou em falsete do início ao fim. 
Ricardo – O single especificamente, agora para fechar essa pergunta do single. Nós começamos a fazer-lo com o Carlos Mendes, (baterista) dos Tédio Boys, dos Parkinsons e agora dos Twist Connection. Ele começou com aquele ritmo e nós “Olha que ritmo fixe, vamos usar isto?”. Ele deixou-nos, começamos ali a andar de volta daquilo e decidimos manter o tema naquela tensãozinha que nunca explode. Para nós é uma coisa que secalhar nunca tínhamos feito, acho eu. Portanto foi bom mas também dependeu muito do ritmo do Carlos, se fosse com outro baterista não tínhamos ido àquele tema. 


E como é que foi gravar o videoclip de “Summer Asphalt” no Club Noir? Como é que aconteceu isso tudo? 

Beatriz – A ideia do ambiente surgiu quando se fez a letra, assim que se percebeu para onde a coisa ia… Foi mesmo aquela coisa do David Lynch e essa imagem toda. Depois pensámos que o sítio perfeito que mistura esse tipo de calor exótico seria lá. Fizemos a proposta à malta, à Teresa e ao marido, e foram impecáveis. Adoraram a ideia e deram-nos todas as hipóteses para tornar aquilo possível. 
Ricardo – Aturaram-nos, disponibilizaram o sítio. 
Beatriz – Aturaram-nos foi. E depois claro a nossa amiga Francisca Marvão, que tem feito aí alguns trabalhos no video, também alinha logo nestas coisas. Portanto foi assim tudo muito rápido e pronto, funcionou na perfeição para aquilo que a gente tinha na cabeça. 

Sabe-se que vocês são uma presença assídua no Barreiro Rocks. O que é que o Barreiro significa para vocês? 

Beatriz – É engraçado porque há pessoas que acham que nós somos do Barreiro (risos). Até houve convites feitos directamente ao Nick Suave a dizer “Traz a malta das tuas bandas e os Dirty Coal Train“. 
Ricardo – E há pouca gente que sabe que nós somos de Viseu. Porque se não somos do Barreiro somos de Lisboa, se não somos de Lisboa não sei de onde é que somos, mas nunca somos de Viseu. Somos de Coimbra por causa que tocámos com o Kaló. Nunca somos de Viseu (risos). 
Beatriz – Digamos que há uma família do rock, vamos por-lhe esta etiqueta vá, que faz sentido termos isso em Coimbra e no Barreiro. E nós não irmos ao Barreiro, nem que seja só para estarmos a assistir ao festival, é estranho. 
Ricardo – Eu acho que tem muito haver com as afinidades e com a maneira de fazer as coisas. Nós identificamos-nos logo com a malta do Barreiro. 
Beatriz – A parte que estavas logo ao inicio a falar, da parte idealista e da forma de fazer as coisas… há esse cruzamento. 

Secalhar o pessoal ouve o vosso álbum e associa logo a sonoridade ao Barreiro, porque é uma coisa fazem lá muito. 

Beatriz – Eu nem falo tanto no som. 
Ricardo – Também há afinidade do gosto musical. Mas pronto, eles também têm aquela coisa do rock, do garage punk, daquela rockalhada mais a abrir, dos Jon Spencer Blues Explosion, dessas coisas todas. Eles levaram Ty Segall, levaram os Lost Sounds do Jay Reatard, tudo coisas que nós adoramos. Mas estou a falar mesmo em termos de postura perante a musica, aquela coisa… Eu ia dizer amadorismo, que pode ser conotado como fazer as coisas mal feitas. A maior parte das vezes que dizes “Este gajo é um amador”, dizes “Este gajo não sabe fazer nada”. Mas eu falo pelo contrário, que é pessoas que fazem as coisas por amor. Para mim o amadorismo quando falo nestas pessoas é isso. É porque tu notas que há ali muito amor à camisola, percebes? 
Beatriz – E matam-se a fazê-lo, com todo o gosto. 
Ricardo – Aliás houve uns anos que aquilo levou um corte no orçamento, e eles ficaram do tipo “Epa e agora? Não temos dinheiro para trazer aqueles grandes nomes que a gente trazia, o que vamos fazer?”. 

Eu vi o documentário do Barreiro Rocks, e eles disseram lá que tiveram quase a trazer White Stripes… 

Ricardo – Mas não tinham 300 euros, ou qualquer coisa assim não é? Na altura um preço ridículo, se fosse uns meses depois secalhar em vez de serem 300 euros eram 300 mil. Mas pronto, eles decidiram continuar a fazer as coisas. E se conheceres aquela malta notas que são muito assim. 

Eu já vou lá ao Barreiro Rocks há 4 anos, e hei de ir lá até ao fim da minha vida. Porque aquilo é uma coisa diferente. 

Beatriz – É esse o tipo de espírito. 
Ricardo – Nós associamos isso um bocado a uma festa de natal da família do rock, mas em que por acaso a família se dá bem. Não é como aquelas reuniões de família em que a malta se mata toda e secalhar se dão mal (risos), aquilo é uma família que se dá bem. É o que a Beatriz estava a dizer, as pessoas de volta e meia já nem querem saber do cartaz. “Epa este ano não vai nenhuma banda internacional”. Não importa, eu vou ao Barreiro Rocks porque vou. 

É o amor à camisola. 

Beatriz – Posso-te dar também o exemplo. Há 3 anos atrás fomos a um festival em Madrid ver os Dead Moon, não sei se vocês conhecem. Entretanto faleceu o vocalista, e na altura o baterista deles. Portanto foi a última hipótese de os ver. E quem é que a gente vai lá encontrar. Malta dos Los Chicos, que é malta batida do Barreiro, um grupo espanhol super antigo e super amigos deles. Então encontrámos os Los Chicos, encontrámos o Barreiro em Madrid. 
Ricardo – São os irmãos espanhóis do Barreiro vá. 
Beatriz – Depois também encontrámos o não-sei-quantos, epá agora estou a esquecer-me do nome dele… ele vive algures na República Checa, é americano mas não é americano… Sei lá, de repente estávamos numa situação do Barreiro num pleno festival em Madrid. 
Ricardo – Ou seja tens americanos, tens espanhóis, tens malta de todo o mundo que se conhece por causa do Barreiro no meio de Madrid. 
Beatriz – E tens os Dead Moon a agradecer aos portugueses em pleno concerto, porque eles também já lá tinham tocado (no Barreiro) com outra banda. 
Ricardo – Com os Pierced Arrows
Beatriz – Com os Pierced Arrows sim, que foram super bem tratados. Como todos os que vão ao Barreiro e levam boas memórias de lá. 
Ricardo – E eu acho que Dead Moon também é daquelas bandas que eu associo precisamente a esse espírito Do It Yourself. O vocalista dos Dead Moon nos anos 60 tinha os Lollipop Shoppe, que andavam a tocar com a Janis Joplin… Primórdios de anos 60 mesmo. Ele desde então passou o punk, o rock FM, e fez os Dead Moon para dizer basicamente “Isto vai ser a minha banda, da minha mulher e mais um baterista. E nós vamos fazer as coisas todas sozinhos. Vamos prensar os discos em casa.”. 
Beatriz – Eles construíram a própria casa, eles fizeram tudo. 
Ricardo – Eles construíram a casa, ele construía as guitarras dele, ele abriu uma loja de guitarras para vender o modelo de guitarra que criou… A mulher deu-lhe uma máquina de prensagem de vinil e eles faziam os próprios vinis no início. 

Isso é a pessoa mais Do It Yourself que eu ouvi falar. 

Ricardo – Acho que foi uma banda que sempre fez o percurso dela. O mini boom que os Dead Moon tiveram foi um documentário que fizeram sobre eles há uns anos. Foi a malta de Seattle nos anos 90 a dizer toda bem deles, porque eles são ali da zona de Seattle… Portland acho eu. Com os Pearl Jam e os Nirvana a fazerem aquelas versõezinhas deles de volta e meia. Os Nirvana acho que não fizeram versões, mas também diziam bem deles. Os Pearl Jam fizeram uma data de versões. Ou seja foi graças a outras bandas que eles tiveram o mini boom. E era daquelas bandas que vinham para a Europa e o pessoal “Ehhhhh Dead Moon!!!”, e nos Estados Unidos acho que sempre foram aquela banda underground, percebes? Tu se falares aí num festival europeu mais ligado a este tipo de rock, de certeza que vais encontrar gajos que adoram Dead Moon, mas adoram mesmo. Assim uma coisa mesmo do tipo… Quem gosta de rock gosta dos Cramps, tu tens essa coisa na Europa de quem gosta de rock gosta dos Dead Moon. Com a diferença que os Cramps ainda tiveram aquela cena mais mediática da MTV, os Dead Moon não, os Dead Moon foi amor à camisola, de bora para a frente e ver no que isto dá. E décadas disto. É por isso que a gente os associa ao Barreiro, àquele espírito de “Não há dinheiro mas bora lá fazer na mesma porque a gente gosta disto”. 


Quando vou ao Barreiro eu noto mesmo nisso, o pessoal da organização parece que está mesmo ligado emocionalmente com a cena toda do festival. Uma pessoa fica mesmo presa àquele sentimento. 

Ricardo – Sim sim. E vês os gajos a sofrerem por não poderem vir para o meio do público curtir o concerto de volta e meia, vês eles lá atrás a curtir meio preocupados com a segurança e essas coisas. 

E quando vou lá farto-me de comprar vinis, bons vinis mesmo. Da última vez comprei 4 discos dos Kraftwerk por 20 euros no Barreiro Rocks. 

Ricardo – É, tens lá sempre o Tiago Comba. Eu também tento sempre andar atrás dele para atualizar a minha colecção. Lá está é daqueles gajos que ainda faz o preço a 5 euros, porque entretanto o vinil teve um boom. Ainda ontem estávamos a ver vinis usados na suposta Feira de Vinis no Oriente, e então um vinil usado… deixa cá ver os preços, e rondavam os 30 e tal euros. Eu pensei “Bem mas um disco em segunda mão… Isto é um lucro de quanto? 200%? Ou mais de 200%”. Um gajo compra aquilo a quê, 5 euros no máximo dos máximos. 

Eu fui à FNAC ver os preços depois de comprar aqueles discos de Kraftwerk, e aquilo era tudo 30 euros. 

Ricardo – Isso é outra coisa, que é a febre das reedições, discos que já fizeram lucro milhões de vezes. E o que é que vende ainda hoje? São os Beatles, são os Stones, são os Kraftwerk, são os clássicos. Antigamente ainda me lembro quando eu não tinha dinheiro para comprar CDs, só comprava um CD ou dois por ano porque era um teso do carago, tinhas aqueles preçozinhos com o ponto de exclamação que era aí 1000 e tal escudos. Mas pronto era porquê? Porque eram coisas antigas. Mas hoje já não existe isso, as coisas antigas parece que são mais caras. Se tu fores aos Beatles… Lá está, ainda no outro dia estava a ver uma cena dos vinis recentes com mais saída, ainda eram os Pink Floyd, ainda eram os Beatles… E isso saí a 20 e tal euros. Quem é que ganha com isso? O cadáver do John Lennon

A família dele? 

Ricardo – Primeiro ganha a editora. 
Beatriz – Esperemos que sim, que chegue à família. Mas em muitos casos isso não acontece. 
Ricardo – A fatia da família deve ser pequena. 

Mas eles são espertos, porque voltam a fazer novas edições com algumas músicas ainda não lançadas… 

Beatriz – Ou uma masterização nova… 
Ricardo – A propósito disso agora vou contar-te aqui outra história. Já não me calo (risos). O Dick Dale, que é aquele gajo que ficou mega conhecido quando foi o Pulp Fiction do Tarantino. Aquela cena da dança, em que ele fez a versão da “Misirlou” com a guitarra surf… O gajo não fez dinheiro nenhum com essa merda. E achei piada quando vi um documentário do Dick Dale há tempos, foi para aí há coisa de 2 anos, ele já operado não-sei-quantas vezes por causa de cancro. O gajo basicamente estar em pé doí. Mas pronto, a postura dele era “Eu quero morrer em palco, eu vou continuar a fazer isto. Tou me a cagar. A minha vida é isto. Se eu parar morro ainda mais depressa”. Mas isto não interessa. Relativamente às edições ele disse “Eu estou a fazer dinheiro agora que comecei a prensar os meus discos”. Os discos mais conhecidos com a versão do Misirlou… 

Não recebe nada… 

Ricardo – O gajo não vê um cêntimo. Ele disse “Eu estou finalmente a fazer dinheiro agora porque prensei os meus discos”. Por isso o meu conselho para quem está a começar a fazer uma banda é “Façam os vossos discos, tentem tocar o mais possível, levem os discos na carrinha…”, ou seja aquela cena do punk, do Do It Yourself. Façam vocês as coisas. Um gajo que anda nisto desde os anos 50 vem finalmente dizer “Se querem fazer dinheiro, é assim. Façam o vosso merchandising, façam os vossos discos, porque eu fiquei muita conhecido com aquelas edições e até hoje ainda não vi nada” (risos). E agora imagina quantas reedições da banda sonora do Pulp Fiction saíram, quantos discos já saíram com esse tema do Dick Dale, e quem é que faz dinheiro com isso. Mas isso agora também é quase discutir politica. 

A propósito disso, sei que agora tem havido um gajo a fazer reedições de discos dos Spacemen 3, o antigo manager deles. E eles também vieram dizer cá para fora que não ganhavam dinheiro nenhum com aquilo, e para não comprarem os discos deles por essa editora. 

Ricardo – Há sempre essas histórias. Aí há tempos mostraram-me um vídeo que era nos anos 60 ou 70 com o Neil Young, não sei qual era o contexto ou se estavam a fazer um documentário sobre ele, mas o gajo ainda era novinho. Então estavam a filmar o Neil Young numa loja, e às tantas ele saca um vinil que era Crosby, Stills, Nash & Young, com aquela malta dos Byrds, e o gajo diz “Isto não existe, isto é uma bootleg! Quem é que está a fazer dinheiro com isto?”. Mas estava mesmo lixado, ele vai mesmo ao homem que está lá na loja a vender e diz “Quem é que te vendeu isto?!” (risos), e o gajo “Não sei, estou só aqui na loja, só estou a atender…”, e o Neil Young responde “Mas que edição é esta? O que é que é isto? Isto não é autorizado!!! Como é que tu tens este disco?!”. Olha que hoje nas FNACs ia dar bronca, as FNACs… Estás a gravar? Depois se quiseres cortas isto (risos). Mas onde é que vais comprar música em Portugal? É uma loja francesa sim, mas em Portugal qual é a maior loja para comprar música?



É a FNAC sim, com maior variedade. 

Ricardo – A FNAC é a loja com mais bootlegs
Beatriz – E passa tudo. 

Por acaso já tenho visto lá muitos discos ao vivo. 

Ricardo – Com mais bootlegs à vontade. Nirvana ao vivo, Pink Floyd ao vivo… 

Pavement ao vivo também já vi lá. 

Ricardo Pavement ao vivo, e se fores ver a editora tem assim um nome meio esquisito. Eu gosto de bootlegs não é por aí. 

Eu não gosto de comprar discos ao vivo por acaso. 

Ricardo – Até porque o som é sempre um risco, pode ser gravado da mesa ou pode ser um gajo com um gravador (risos). 

Começámos no Barreiro e acabámos nas bootlegs (risos). 

Ricardo – Vou tentar conter-me mais nas conversas desculpa (risos). 

E qual é o segredo para uma banda ter concertos tão intensos como os vossos? 

Beatriz – É andar fodido com a vida (risos). 
Ricardo – Às vezes não dá, mas a gente tenta sempre. Imagina tens um dia bom, tentas chegar àquele momento e dizer “Bora lá passar esta energia, bora lá partir tudo”. Tens um dia mau, pensas “Bora lá ver-nos livres desta energia”. A gente faz um esforçozinho para que, estejas com o estado de espírito que estejas, antes do concerto um gajo ficar naquela “Estamos aqui para tocar, é o que a gente gosta de fazer. Portanto vamos tentar passar isso”. É claro que de volta e meia estamos todos partidos, tipo no fim da tourné de não-sei-quantos dias, a dormir mal, a doer-te as costas, tu a quereres saltar e a doer-te tudo. Mas tentas dar tudo na mesma. 
Beatriz – Ele tem uma maneira boa de explicar isto, que é o de ser a nossa terapia. Nós temos uma oportunidade naquele momento de fazer uma explosão saudável. 
Ricardo – Sim, de purgar os demónios. 
Beatriz – Tens uma série de coisas que vais acumulando, e acho que cada vez mais. Vocês muito mais novos que nós e secalhar não pensam assim, mas eu não lido muito bem com esta velocidade das coisas, esta efemeridade das coisas, esta necessidade de estar sempre presente. 
Ricardo – Já estamos velhos (risos). 
Beatriz – Isso é só o exemplo de uma coisa que uma pessoa vai aqui acumulando, acumulando… tal como outras. Depois tens um momento em que há uma libertação, uma libertação de tensão e energia, e tens aquele momento em que… Não dá para fazer de outra maneira, é que se começar a ser de outra maneira a banda acaba. 
Ricardo – Até inclusive já pensámos nisso. 
Beatriz – No momento em que uma pessoa não fizer isto desta forma, não faz sentido fazer. 
Ricardo – Quanto muito não sei, quando a gente for velhotes… Se chegarmos a velhotes vamos lá ver, não vamos começar agora com essa discussão (risos). Mas, epá, imagino que um gajo não salte e não dê cambalhotas como dá agora, porque senão vai logo para o hospital com a anca partida. Mas tem de haver alguma maneira de passarmos energia ou de passarmos qualquer coisa. Tou a pensar naquela malta da Fat Possum que a gente também gosta muito, que é aquele blues mais a rasgar… quase blues punk. Houve R.L. Burnside ali nos anos 90, que tem uns álbuns com os Jon Spencer Blues Explosion. O Junior Kimbrough, se bem que esse é mais calminho. Isto tudo é malta dos blues que tem ali uma energia quase punk, embora seja blues. É um gajo a tocar sentado e outro baterista atrás, que se fores ver os vídeos e os documentários… Por acaso há um documentário muito giro sobre a Fat Possum Records. Mas tu vês os velhotes a tocar nesses vídeos, e notas que o gajo na bateria parece o sobrinho ou o filho, que está ali a tocar bateria com o tio e a pensar “Eu nem gosto muito disto, gosto é de hip hop. Mas pronto” (risos). Epá e aquilo tem uma energia muito própria, sem eles estarem a saltar naquela cena mais intensa, tu notas que há ali qualquer coisa… Eu costumo usar sempre esta palavra quando me perguntam que música é que eu gosto, eu digo “Gosto de música honesta”. Porque acho que em certos tipos de música, ou certos músicos, tu notas que eles não estão a fazer a cena que gostam, percebes? 

(documentário sobre a Fat Possum Records

Há gajos em palco que parece que estão ali a apanhar uma seca do caraças. 

Ricardo – E há gajos que tu notas que ensaiaram aquilo, do tipo “Nesta parte saltamos, nesta parte fingimos que somos rebeldes, nesta parte eu parto a guitarra…”. Tu notas que esses gajos são rebeldes, mas é uma rebeldia que estudam em casa, percebes? Ficas um bocado com a sensação que te estão a enganar. 

Quais são as melhores histórias que têm pela Europa? Pela Europa e o Brasil, vocês também já foram ao Brasil não é? 

Beatriz – E à Argentina. 
Ricardo – Estou a pensar na primeira vez que a gente foi a França, tocámos em Bordéus, e um pouco mais ao lado estavam a tocar os Guitar Wolf. A primeira coisa que nos veio à cabeça foi, a malta que gosta deste género vai estar toda a ver Guitar Wolf e ninguém nos vem ver. Segunda coisa, eu queria estar a ver os Guitar Wolf (risos). Então a gente começou o concerto, tínhamos lá umas 10 pessoas mas pensámos “Ok bora lá fazer isto”. E quase no fim do concerto, há uma debandada de malta a entrar que vinha de Guitar Wolf
Beatriz – Todos loucos! 
Ricardo – Tudo louco, tudo podre de bêbado já. Eles pegam em mim ao colo, eu a tocar guitarra a fazer solos, e estou no ar encostado ao teto. Porque uma coisa gira na França é que parece que vais sempre tocar aos bunkers da Segunda Guerra. Ou seja é sempre umas caves com cheiro a vinho, em que se tu saltas muito alto bates com a testa na parede. Então a malta saiu louca connosco ao colo e tal, grande loucura, nós tocámos dois temas, acabámos e eles disseram “Acabaram? Não acabaram nada! Vocês vão é tocar outra vez!!!”. Nós a dizer que acabámos de tocar e eles “Toca toca!!!”. 
Beatriz – Eu já nem tinha onde secar os dedos para segurar a palheta, estava tudo encharcado de suor e cerveja. 
Ricardo – Então fizemos o set todo outra vez para essa malta que chegou, e foi a loucura. Tudo suado, tudo cheio de cerveja e vinho por todo o lado. 
Beatriz – A Argentina também é muito intensa. A gente tocou duas noites no mesmo bar, o Bar Detroit, tudo gente espectacular. Ao fim do terceiro tema ou assim, um gajo mete a cabeça pelo meio das minhas pernas e eu fico a tocar guitarra em cima dos ombros dele. Eu pensei “Pronto, é o primeiro concerto aqui e já vou partir a cabeça”. E estes gajos estavam completamente bêbados, completamente doidos. 
Ricardo – Mas cá em Portugal também. Uma das historias mais engraçadas foi a primeira vez que tocámos em Castelo Branco. Com o Rafael, que é uma pessoa que a gente entretanto conheceu. Estávamos no terceiro tema a tocar como normalmente fazemos, todos divertidos e ele sobe ao palco, come a setlist e salta para o público (risos). Era a única setlist que nós tínhamos. Acabámos o tema e ficámos a olhar uns para os outros do tipo “Então o que é que a gente toca agora? Este gajo comeu a setlist“. 

Secalhar estava com fome. 

Ricardo – Acho que há um video no YouTube com isso, se vocês procurarem vídeos de nós em Castelo Branco. 

(minuto 5:49 para verem o “episódio da setlist”) 

Beatriz – Isso também é uma malta espectacular. Eles faziam o Bastard Rock só que infelizmente a associação acabou, mas espero que eles não percam a vontade de fazer isso. Sei que aquilo está sempre ali a borbulhar, só que entretanto há malta da organização que imigrou e tal. 
Ricardo – A primeira vez que os Cavemen vieram cá foi lá. Trouxeram também os Gino and The Goons, que é malta assim do nosso género. 
Beatriz – Olha aquela história de um gajo que passou por cima das luzes no Barreiro enquanto estavam a tocar os Parkinsons, e as pessoas ficaram do tipo “Este gajo vai mandar as luzes do palco para baixo”? Era o Rafael, de Castelo Branco. 
Ricardo – É o comedor de setlists
Beatriz – Ali junta-se mesmo a escumalha toda (risos) que a gente gosta, estão ali todos. Mas foi uma situação de stress (risos). 
Ricardo – Foi engraçado. Por acaso lembramos-nos mais ou menos dos temas que íamos tocar a seguir, mas foi giro. Há sempre assim umas histórias. Estava-me a lembrar também quando tocámos para uns motards, todos com ar de maus, e quando a Bia desce lá para o meio do público ficaram todos com medo dela. 
Beatriz – Ficaram com medo sim! 
Ricardo – Estás a ver o que é aquela malta toda com os cabedais, e de repente está tudo a afastar-se da Beatriz (risos). Também houve outra no mesmo concerto, em que nós estávamos a tocar um tema e há uma pessoa que caí podre de bêbada de cara. 
Beatriz – Ia-se a agarrar ao PA das colunas. 
Ricardo – A parte gira disto é que eu lembro-me de estarmos a tocar o tema, nós desaceleramos na velocidade, e quando ele se levanta o tema volta a acelerar (risos). Nós todos ficamos do tipo “O que é que aconteceu? Ele tá vivo? O que é que aconteceu com aquele gajo? Tá vivo? Pronto, então continua”, foi mesmo giro. Foi um tema que a banda toda desacelerou ao mesmo tempo mas sem combinarmos, porque estávamos a ver a cena. 
Beatriz – Pois, estávamos preocupados. 
Ricardo – “Paramos ou não paramos? Está vivo? Não paramos pronto, está vivo”. Agora de certeza que há histórias mais engraçadas, mas não me lembro. 

Quais são os vossos planos para o futuro? 

Ricardo – Enquanto der para tocar, estamos aí. 
Beatriz – Correr o máximo de sítios, em Portugal ainda há muita coisa a fazer. Felizmente há sempre sítios a explorar e a aparecer. 
Ricardo – Quando fecha um abre outro, felizmente. 
Beatriz – A gente faz turismo também (risos). 
Ricardo – A nossa coisa boa é termos começado com 15 aninhos a ter bandas, umas acabaram… Quer dizer acabaram todas menos esta, tendo em conta que agora só tocamos nesta. Mas acho que deu para aprender o esquema em que podes fazer as coisas. Há malta que vem muitas vezes ter connosco a dizer “Epá vocês têm de se promover mais. Têm de trabalhar mais com promotores. Deviam fazer um vídeo e pôr em todo o lado. Deviam tentar ir tocar a Paredes de Coura e a Vilar de Mouros, tipo aqueles festivais grandes, porque é que vocês não estão lá?”. A nossa experiência também é um bocado fazermos o nosso percurso e não há necessidade de haver aquela explosão grande. Porque às vezes a malta que explode também passado um ano ou dois já está tudo saturado. 

Há muitas bandas que aparecem aí, têm aquele pico alto e depois perdes logo a pica. 

Ricardo – É isso, têm aquele boom. No fundo andam a tocar bué, rodam bué, e depois o próprio público às vezes cansa-se. 

Sim, é preciso deixar as pessoas a desejar também. Se estiverem em todo o lado uma pessoa acaba por ver a banda em todos os sítios. 

Ricardo – Nem é tanto nesse esquema que eu falo. A própria banda parece que perde um bocado a pica. Ou por estarem sempre a tocar, ou secalhar porque muitos têm aquele objectivo de “Bora fazer um disco, bora ficar conhecidos” e depois passa-lhes um bocado a cena. 
Beatriz – Também não fazemos isto como o nosso modo de vida. Se fossemos uma banda que tivesse isto como modo de vida também tínhamos de pensar as coisas de uma determinada forma, mas não é o nosso caso. 
Ricardo – Sim, mas achas que ias fazer esse boom? Não nos interessa explodir, não nos interessa ter aquele tema que toda a gente conhece, nem ir àquele festival. 
Beatriz – Eu estou a falar de tocares para teres dinheiro para viver, porque decidiste que aquilo ia ser a tua vida. 
Ricardo – Ter dinheiro não é mau! Vamos lá com calma (risos). A gente não vai dizer que ser famoso é mau ou que ter dinheiro é mau, não é isso. O que eu estou a dizer é que não nos incomoda este registo do underground, percebes? Nós dizemos que estamos debaixo do underground até. Mas na boa, sem complexos de inferioridade nem nada disso. 
Beatriz – Assim podemos continuar a conhecer outros países, a fazer as cenas sair. Ainda agora viemos de Itália e nunca tinha tido oportunidade de ir a Itália. E poder fazer-lo desta maneira a conhecer logo aqueles cromos do rock, aqueles sítios míticos, aproveitar para ver museus e tudo mais… 
Ricardo – Também é fixe em vez de seres aquela banda grande em Portugal, seres uma banda deste tamanho em Portugal, em Espanha, em França, em Itália, na Argentina, no Brasil… Vais fazendo o teu esquema de como queres fazer as coisas, sem pressão nenhuma. 

É muito mais interessante, porque há bandas que apostam mais serem grandes em Portugal do que no resto. 

Ricardo – É isso. Não faz aquele grande público, mas faz um público pequenino em vários sítios. E fazes o que tu queres, não estás com aquela pressão de “Agora temos de fazer um single orelhudo para a rádio” ou assim. Temos sorte de termos feito o que nos dá na telha, quando nos dá na telha. 

E o que é vocês têm andado a ouvir nas últimas semanas? Ainda há bocado estávamos a falar disso. 

Ricardo – O novo de Ceramic Dog, a banda rock do Marc Ribot, que é um guitarrista associado com tudo e mais alguma coisa. Tom Waits, John Zorn, acho que até Caetano Veloso e Waldemar Bastos… Se fores ver a discografia dele como convidado noutros álbuns aquilo é uma coisa quilométrica. E depois tem uma carreira a solo muito interessante, com alguns álbuns só de guitarra solo. Ceramic Dog é a banda de rock dele, e eu acho que está um álbum do carago. Saiu esta semana para aí, ou semana passada. Está um álbum… dos poucos álbuns rock que eu já ouvi marcadamente político, o que acho importante tendo em conta o estado dos Estados Unidos. 


Beatriz – É o que ele estava a dizer, é impossível ele ter feito o álbum de outra maneira, tem mesmo de berrar esta merda toda cá para fora. 
Ricardo – É engraçado ver um gajo que vem do jazz e daquelas cenas à Tom Waits fazer uma rockalhada, eu acho que é muito giro. E lá está, precisamente por causa daquilo de brincar com as fórmulas. Tu vês um gajo que tem muita escola de jazz, e ele até teve uma banda que eram os Prosthetic Cubans, que era ele a fingir que tinha uma banda cubana (risos). E depois de repente vês o gajo a misturar isso com rock. Epá eu acho que é um disco muito bom. Também tenho andado a ouvir muito umas bandas que eu sempre ouvi, que é The Fall e Half Japanese. Sempre ouvi estas bandas e vou recorrentemente buscar as duas. The Fall ele faleceu este ano, o Mark E. Smith. Que também foi aquele gajo que esteve aí desde os anos 70, e eles eram piores do que nós, no sentido em que lançavam para aí 3 álbuns por ano. É um álbum de originais, mais uma compilação, mais um álbum ao vivo… 

Há uns tempos eu queria entrar mais em The Fall e fui a fazer download da discografia. Fui à pasta depois, fazia scroll e a lista nunca mais acabava. Eu fiquei do tipo “Por onde é que eu começo?” (risos). 

Ricardo – Gastaste um disco inteiro só para a discografia não? Mas eu gosto muito de The Fall. E Half Japanese é outra das figuras principais do Do It Yourself americano. O Jad Fair começou a banda com o irmão, com aquelas primeiras edições que são um bocadinho agrestes, que é basicamente ele e o irmão no quarto. Eles têm um documentário muito interessante, em que em menos de um minuto ensinam a tocar guitarra. É o curso de guitarra mais completo que eu já vi. O gajo basicamente diz “Tens que ter cordas. Se quiseres afinar podes afinar, se não quiseres afinar podes não afinar. Se queres tocar um tema rápido tens de fazer muito rápido com a mão direita. Se queres tocar um tema lento, com a mão direita tens de fazer mais lento”, e é basicamente isso. 

(curso de guitarra por David & Jad Fair dos Half Japanese

É como aquele documentário sobre o Lemmy dos Motorhead. O gajo a ensinar guitarra ao filho foi basicamente só a tocar Mi e a dizer “O que importa é o ritmo”. Também lembrei-me agora disso. 

Ricardo – Os Half Japanese acho que ainda são mais extremos. Já apanhei uma entrevista deles no YouTube, em que estava um técnico a fazer som e o Jad Fair, que é o vocalista, estava com a guitarra sem cabo. E o técnico de som interrompe a dizer “Espera lá! O cabo da guitarra não está ligado”, e o Jad Fair responde “E então? Eu só quero a guitarra para curtir” (risos). Ou seja, o interesse dele naquele concerto era ter a guitarra para brincar com ela, não precisava de estar ligada. Curiosamente da última vez que o vi foi ali na Zé dos Bois, que era ele e o guitarrista dos Teenage Fanclub. O gajo dos Teenage Fanclub basicamente estava a aguentar a parte melódica, e o Jad estava com uma guitarrinha de brincar presa com um elástico, a tocar, e de volta e meia ele dobrava completamente o braço da guitarra. 
Beatriz – Sacava uns sons muito giros. 
Ricardo – Ele e o Daniel Johnston fazem-me lembrar crianças adultas. O que é que acontece se tu conseguires ser criança até seres velhos? Para mim é o Jad Fair e o Daniel Johnston. Tu olhas para eles e parece que têm aquela inocência de puto mesmo. Então ele a cantar com aquela vozinha parece mesmo um puto. Mas continuando com a pergunta do que andávamos a ouvir, acho que faz parte da curiosidade. Tens dois tipos de pessoas que gostam de música, aquelas que gostam de ligar o rádio e ouvem o que lhe mostram, e outras que fazem isso mas depois vão à procura. Eu gosto sempre de ir à procura. Eu cheguei ao Marc Ribot porque ouvi álbuns do Tom Waits e pensei “Epá esta guitarra não é igual à dos outros álbuns. Esta guitarra é muito fixe. O que é que é isto?”. E depois a internet permite que tu pesquises e penses “O guitarrista neste álbum é este gajo que se chama Marc Ribot, e neste também. Então espera lá… Quem é este Marc Ribot?”. Tou a pensar no Rowland S. Howard agora, que era o guitarrista de Birthday Party. A primeira banda do Nick Cave. Tu ouves Birthday Party e é aquele som estridente, a primeira vez que ouvi aquilo fiquei com uma ganda dor de cabeça e pensei “Ou isto é muito mau, ou isto é muito bom”. 

“Secalhar vou ouvir daqui a uns dias e vai ser muito bom”. 

Ricardo – Aconteceu mesmo isso. Aquela coisa do estranhas estranhas e depois quando começas a gostar, adoras aquilo. E depois fui investigar também por aí, pelo guitarrista. Aconteceu-me o mesmo com o Captain Beefhart, que tem uma data de formações. Não sei se já viram o documentário da BBC sobre o Captain Beefhart, que é feito pelo John Peel. Tens montes de cromos nesse documentário, e no meio deles tens o Matt Groening dos Simpsons, acho que ele adora Captain Beefhart. E ele diz lá que comprou aquele álbum da truta, o Trout Mask Replica, foi para casa, meteu a passar e pensou “Isto é uma merda!!!”. Mas depois ouviu-o outra vez e pensou “É uma merda mas… Tem aqui algumas coisas giras. Não percebo o que é que é isto, mas tem qualquer coisa de interessante”. Porque aquilo é uma cacofonia do carago, mas é uma cacofonia que faz sentido. Então ele ouviu aquilo tantas vezes que tornou-se na banda preferida dele. Acho piada a estas bandas que são difíceis. 

(minuto 28:27 para ver Matt Groening a falar sobre o Trout Mask Replica

É sempre interessante quando isso acontece. 

Ricardo – Porque afinal estás a ouvir uma coisa nova. Acho que o Captain Beefhart mexeu com conceitos de free jazz nesse álbum, daquelas coisas que não são melodicamente logo acessíveis mas no fundo encaixam. 

Acho que é mais a surpresa de não estarmos habituados. Até porque temos de treinar um bocadinho o ouvido. 

Beatriz – É tão bom sermos surpreendidos. 

É mesmo! É dos melhores sentimentos da música. 

Ricardo – E tens casos como aquele gajo da Eurovisão (Diogo Piçarra), em que dizem que ele copiou o tema de não-sei-quem. Isso no pop é o que mais acontece. Porque tu tens aquelas sequências que o teu ouvido já decorou. Quando fazes o tema tu pensas “Isto está a soar bem”. Soa bem porque tu já ouviste qualquer coisa assim. 

Até podes nem saber isso. 

Ricardo – Claro, isso é o que mais acontece no pop. E no rock também, os Ramones fizeram não sei quantos álbuns com um acorde. 
Beatriz – Olha é a tal cena do ritmo. Sempre a dar para a frente. 
Ricardo – Mas eles afinam. O Jad Fair dos Half Japanese de volta e meia acho que nem isso, quanto muito ainda desafina mais. 

Alguma mensagem final para os leitores desta entrevista? 

Ricardo – Sejam curiosos, descubram música, leiam revistas, leiam sites, oiçam rádio mas que também sejam curiosos. 
Beatriz – E desliguem-se da rede.
Ricardo – Desliguem-se da rede? Isso não é muito bom. 
Beatriz – Desliguem-se da rede e liguem-se à terra de vez em quando. 
Ricardo – Ah um bocadinho de cada, desligar completamente também não. Senão como é que eles iam saber da entrevista? (risos) 
Beatriz – Não! É só uma forma de pensar. 
Ricardo – Eu sei, estou só a estragar-te a frase, a ver se te complico aí a lógica. 
Beatriz – Estúpido pá, fogo (risos). Mas pronto venham ver os concertos e divirtam-se acima de tudo. O que a gente precisa é de mandar as coisas para fora e ter sentido de humor. 
Ricardo – Façam bandas. 
Beatriz – Anda tudo com muito sentimento de ódio, muito separatismo. 
Ricardo – Ainda começo a discutir politica, ninguém quer saber disso. Eu sei que podes ter razão mas ninguém quer saber (risos). 
Beatriz – Não vamos por aí. 

Pronto é isso, obrigado!

Entrevista por: Tiago Farinha e Rui Gameiro
Fotografia: Rui Gameiro
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