Éme em entrevista: “As coisas que eu gosto de dizer, que me interessam, não estão refletidas na minha biografia”

Éme em entrevista: “As coisas que eu gosto de dizer, que me interessam, não estão refletidas na minha biografia”

| Junho 22, 2024 1:59 pm

Éme em entrevista: “As coisas que eu gosto de dizer, que me interessam, não estão refletidas na minha biografia”

| Junho 22, 2024 1:59 pm

Disco Tinto é o mais recente lançamento de Éme, nome da casa do circuito musical independente de Lisboa, albergado pela editora-coletivo Cafetra Records.

Em 2022 apresentou-nos um disco ‘a meias’, Éme e Moxila, mas agora segue um rumo mais pessoal, desde a conceção das canções à sua concretização, como verdadeiro artista folk independente que se grava a si próprio em casa. Apesar deste registo, o espírito Fetra de entreajuda continua presente, manifestando-se na participação de Moxila, Lourenço Crespo, Miguel Abras e Francisca Aires Mateus, que têm também acompanhado Éme nos concertos de apresentação.

Sentámo-nos com o cantautor para falar sobre o seu Disco Tinto.
O que é que te levou a fazer um álbum num registo particularmente especial, confecionado de forma caseira?

As circunstâncias, basicamente. Foi como deu, na verdade. Eu demoro sempre praí 5 anos a fazer os álbuns, e ‘tava um bocado farto disso. Por um lado, ser assim um artista Do-It-Yourself e não me conseguir gravar a mim próprio era uma coisa que me irritava um bocado, que me fazia um bocado de impressão porque sempre montei os meus concertos, fiz as coisas todas eu próprio, e de repente, para gravar álbuns, que é basicamente a minha coisa principal, o que eu sinto que é mais especial que eu consigo fazer, não conseguia fazê-lo sozinho. Achei que isso era uma lacuna um bocado tola, da minha parte.

Depois, por outro lado, quando surgiram os confinamentos comprei uma placa de som e acho que comprei um orgãozito, também. Esse órgão deu para fazer as basslines todas, que eu depois gravei por cima com um baixo normal. Comprei assim umas percussõezitas e outro cavaquinho, além do da Mariana (Moxila), que é o braguinha, um cavaquinho da Madeira. Já tinha gravado a “Sem Nome”, a “Estocolmo 1984”, e achei que era uma cena fazível.

O rumo seguido com Disco Tinto já estava a ser tecido em lançamentos anteriores, ou consideras um momento de rutura na tua discografia?

Eu acho que é um bocado parecido com o Éme e Moxila (2022), foram coisas que eu aprendi, em termos sónicos. Claro que mesmo em termos das contribuições da Mariana, da Moxila, obviamente não foram tantas como Éme e Moxila, porque esse foi composto 100% a meias, mas ela ajudou-me a fazer as melodias de várias músicas, como a “Disco Tinto”. Há melodias que são efetivamente dela, ou que ela fez a partir do que eu já estava a fazer. A diferença é que eu escrevi as letras todas, foi só em três músicas que ela me ajudou com melodias, especificamente a “Fã nº2”e a “Disco Tinto”. A “Chama Chama” foi composta efetivamente a meias, exceto a letra, mas a música foi toda feita a meias.

A forma como gravamos não foi assim tão diferente, claro que o Manel [Lourenço] ajudou muito no Éme e Moxila, mas houve muita coisa que eu aprendi nesse disco, que usei para este. Depois também entrou o Abras e o Nacho (Lourenço Crespo), que já entravam em muitos outros discos antigos, a Francisca também entrou e já tinha entrado no Éme e Moxila.

Não sei, não sinto que seja muito um álbum de rutura, mas o que é que te parece?

Se calhar há uma rutura em relação aos teus álbuns a solo anteriores, mas porque também já passou algum tempo desde aí.

Sim, talvez o Éme e Moxila seja mais de rutura do que este… sim, talvez. Nestas canções recorres a um storytelling num nível que ainda não tinhas explorado muito, porquê a abordagem através de um universo ficcionado?

Eu sinto que as coisas que eu gosto de dizer, que me interessam, não estão refletidas na minha biografia, neste momento. Se estiverem – claro que estão – não têm particular interesse. Eu acho que as coisas que me preocupam, se fossem veiculadas puramente pela minha biografia, não seriam esteticamente interessantes, para mim. Eu não gostaria nada de ouvir ninguém a falar sobre a biografia de uma pessoa como eu, já é uma coisa que me acontece há muito tempo, desde o Domingo à Tarde (2017), e ‘tou sempre a tentar arranjar maneiras de escapar a isso, porque realmente eu como ouvinte não quereria, de forma nenhuma, ouvir músicas autobiográficas de um gajo como eu.

Referes-te a este álbum como “conceptual”, em que consiste o conceito ou o espaço Disco Tinto?

Ok, isso é um bocado vergonhoso, mas basicamente eu li A Divina Comédia e foi uma ganda seca, e eu tinha que usar isso para alguma coisa de trabalho, porque senão teria sido a maior seca do mundo em vão. Então, como já tinha ouvido esta ‘piada de pai’, vá, e já tinha a ideia de fazer esse álbum, comecei a conceptualizar a partir daí, como se o Inferno fosse uma discoteca. Ou seja, no piso de cima estão as pessoas que ‘tão bem, tranquilas, que bebem água, e à medida que vais descendo vão estando as pessoas cada vez pior. Só que depois isso tudo ficou comprometido, porque eu também gosto de fazer cada música como uma entidade válida por si mesma, e a história acabou por não ficar tão encadeada quanto poderia ter ficado, porque eu preferi fazer uma ordem que musicalmente resultasse melhor do que conceptualmente. Então acabei por usar os temas que tinha à partida, mas não a narrativa que tinha. Que experiências estão por base na construção desse espaço?

Hum, não sei responder a essa pergunta…

Posso pegar na música que as pessoas me têm falado mais, “O Actor”. Essa música contraria o que respondi na pergunta anterior, ou seja, essa música é quase exatamente aquilo que aconteceu, não tem grande criatividade, não tem nada: é uma experiência quase 100% como ela aconteceu. Não sei, eu gosto de ter uma escrita que seja corriqueira e casual, mas às vezes há coisas que eu tenho pena de não ter.
Eu sinto que a música preenche um bocado… sei lá, pessoas que têm religião para conseguirem transcender o dia-a-dia, e eu tenho essa experiência com a música, a ouvir ou a tocar, é um momento diferente, fora daquilo que é quotidiano. Mas por outro lado, eu não gosto de escrever com outras palavras que não sejam as que eu utilize no dia-a-dia. Então é normal que talvez numa história que pode ser exatamente igual àquilo que aconteceu, eu tente procurar o que é que nessa história pode transcendê-la e preencher essa camada da nossa existência – da minha, neste caso. Quais foram as principais referências para o Disco Tinto?

Eu tentei procurar referências que em termos de produção não fossem demasiado ambiciosas, porque sabia que não ia ter grandes meios para gravar isto, então fui buscar às coisas de sempre, Frankie Cosmos, provavelmente os dois primeiros, fui buscar a Belle & Sebastian, provavelmente os dois primeiros também… sempre os dois primeiros, apesar de eu estar no quinto, ou lá o que é. Há uma coisa na “Branco Maduro”, na guitarra, aí tentei imitar uma produção do Johnny Cash, ele põe uma carta na guitarra e toda a percussão – eles eram três no início, eram os Tenessee Trio, havia contrabaixo, guitarra elétrica e Johnny Cash – e ele tinha só uma carta numa zona da guitarra e a percussão era toda com isso. Tentei imitar essa produção dos Sun Records studios, que era nos anos 50 por isso não era lo-fi, mas para o que nós temos disponível até é bastante. Yo La Tengo também, Bright Eyes talvez um bocado, por aí. Coisas que fossem um bocado lo-fi mas que não fossem demasiado destruídas. Também tentei ir buscar algum indie dos 2000s, mas acho que não se nota, tipo o riff da “Disco Tinto”, não se nota muito depois com a produção mas é basicamente um riff de Bloc Party, assim em contratempo indie. Mas isso foi uma tentativa que acho que foi um bocado fracassada na execução. Até um bocadinho – isso é TSF core – de Phoenix, mas não ficou muito, e tenho alguma vergonha… E claro, às nossas coisas tipo à Cafetra, do Lourenço [Crespo] também, pensei ativamente em algumas músicas do disco dele mais recente para ‘copiar’, e acho que isso até se nota bastante. Cenas da Maria [Reis], também, e da Júlia [Reis], até há algumas vezes que a Mariana toca, se não me engano, pandeireta, com uma técnica que a Júlia lhe recomendou, portanto por aí também tem bué influência.

Este disco assemelha-se a um vinho?

Epa… talvez, eu fiz esse press release mais como forma de chamar à atenção. Se calhar tem, na apresentação e… claro, acaba por ter porque o vinho faz um bocado a ponte, em bué situações, entre a camada mais baixa da existência e alguma transcendência, então nesse sentido tem qualquer coisa disso. Há sempre aquela situação de o Baco ser o deus do vinho, mas ao mesmo tempo ser um tolo, e da verdade do vinho e não sei quê… No fundo, até acaba por ter bastante a ver, mas também uma cota parte de brincadeira, de eu brincar com o conceito do álbum e só querer arranjar formas engraçadas de o apresentar. O conjunto de canções, se não fala de vinho, fala de cerveja ou álcool e de vícios no geral.

Super é igual a Sagres?

Eu acho, completamente. Se me fizerem uma prova cega, acho igualzinho, e acho que essa é provavelmente a frase mais polémica das minhas músicas – o que diz bastante sobre o nível de… se calhar tenho que carregar um bocado na polémica, para tornar o meu trabalho mais interessante! Porque se isso é o mais polémico até agora… convém.

Éme

A última vez que tocaste em banda foi no seguimento do Domingo à Tarde, perto de 2018, que expectativas tens para o regresso a concertos em banda na apresentação do novo álbum?

Tenho boas, estou excitado, não é fácil ensaiar uma banda mas… este processo foi diferente, porque as coisas já estavam feitas. Claro que vai mudar um bocado os arranjos. Eu acho que o concerto vai ser melhor que o disco. Também vamos tocar coisas antigas, estou bastante excitado, era bué bom que o pessoal viesse. Não vai ser muito rebuscado, eu acho, não há deep cuts a não ser que peçam, podem pedir e a gente trata disso mas diria que deep cuts só por pedido.

Há planos para uma edição física de Disco Tinto?

Acho que sim, vamos fazer CD, não vai ser vinil, não vai ser este ainda. Talvez o próximo.

 

Fotografia: Francisco Correia

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