
c-mm em entrevista: “É um sussurro que se torna grito”
c-mm em entrevista: “É um sussurro que se torna grito”

c-mm em entrevista: “É um sussurro que se torna grito”
Lançado a 24 de janeiro, e nascido no seio do coletivo artístico GRAVV, Dar a Volta foi cozinhado lentamente ao longo dos últimos dois anos e marca a estreia dos c-mm — nome que homenageia as localidades de Cacém e Mem Martins, terras de origem dos membros do projeto. O quarteto lisboeta, formado por João Carvalho (bateria), Diogo Mendes (guitarra), Guilherme Nogueira (baixo) e Matilde Baleia (voz), apresenta um trabalho breve, mas denso: quatro faixas que condensam pouco mais de doze minutos de uma identidade nítida e que não deixa nada por dizer.
Para os que não conhecem, o coletivo GRAVV. fundado em 2022, surgiu de um grupo de amigos com visões artísticas semelhantes, cultivando uma identidade comum fortemente enraizada na periferia de Lisboa. Desde o início, tem-se dedicado a ser um espaço para o crescimento dos seus membros, promovendo uma programação descentralizada, tanto dentro como fora da cidade.
Assim, num final de tarde em Queluz, reunimo-nos com os c-mm numa esplanada soalheira. Entre imperiais, petiscos e confidências, o grupo mostrou-nos como fazer música pode ser tanto um processo de cura como de desconstrução. Por vezes, um grito sussurrado diz tudo – é nessa dicotomia que a sua música ganha vida. E, no nome que carregam, fica também a marca do lugar que os viu crescer.
Vamos já chutar a pergunta mais básica: Como descrevem o Dar a Volta?
João – Essa pergunta é logo a mais difícil… No fundo, é uma coleção de tudo o que fomos fazendo, sem grande preocupação com uma ligação temática. A única conexão entre os temas é mesmo o momento em que foram gravados. Fomos experimentando, foi tudo muito gradual. O início da banda também foi assim, há dois anos íamos participar num evento enquanto Gravv, e o Diogo mandou-me uma mensagem a dizer que tinha tido a ideia de tocarmos os dois, numa cena improvisada.
Diogo – Ya, e percebemos que havia ali espaço para mais. Falei com a Matilde e convidei-a a juntar-se, a veia poética dela já vem de longe. E nós já nos conhecemos todos há bastante tempo, facilitou imenso as coisas, eu e a Matilde já faz dez anos.
Matilde – Pois, eu já escrevia rimas e poemas. Agora, olhando para trás, nem sei bem como aceitei — acho que foi só para vocês me pararem de chatear… Mas correu bem nas Caldas, houve aquele clique, as pessoas gostaram, recebemos bom feedback, e decidimos continuar.
João – Começámos a ensaiar, e num dos dias o Gui apareceu. Eu estava com medo de o sobrecarregar, porque já andava cheio de projetos, mas não resisti e perguntei-lhe se queria pegar no baixo — e fluiu logo super bem. É que ele consegue dar ao baixo uma identidade mesmo própria.
Quanto tempo é que o EP esteve no forno?
João – Quarenta minutos no forno… cozedura lenta!
Matilde – Isto foi mais tipo um pernil no fumeiro. A “Vampiros” foi a última a entrar, fechou-se na gravação até. No início, não escrevia nada, eles tocavam e eu improvisava por cima. Escolhíamos um tema, por exemplo, uma personagem, e eu inventava no momento. Com a “Vampiros” e a “Podre”, comecei a escrever letras. Normalmente mostravam-me um ritmo e eu partia daí. Era tudo muito orgânico. Agora tentamos estruturar mais.
João – A “Podre” foi a primeira vez que a Matilde nos trouxe letras já escritas e tivemos aquele momento “É isto!”. Ela tem uma forma muito fixe de captar a ansiedade e de lhe dar uma direção. E é com base nisso que fomos trabalhando ao longo dos últimos tempos — a Matilde traz a ideia, não só de letra, mas também da ambiência. Depois tentamos dar vida a isso. O nosso processo é quase como fazer uma escultura.
Diogo – Tanto que nem acho que haja uma faixa que seja o coração do disco, são todas muito diferentes.
Como se categorizam? Há aqui uma mistura entre punk, shoegaze, spoken word…
Gui – Somos uma banda, simples.
Diogo – A nossa preocupação é mais com aquilo que não queremos ser. Não pensamos muito nisso — simplesmente flui.
João – Cada um traz uma cena muito própria para a banda. Tentamos aproveitar essa química que existe nas entrelinhas.
Gui – É tipo: fazemos barulho, e de repente estamos todos “Wow, não sei o que foi isto, mas é isto”.
Como explicariam este disco a uma criança de seis anos?
Matilde – Eu diria: “Tenho muitas saudades de pensar e sentir como tu, de ser inocente. Então fizemos isto para tentar dar às pessoas um bocadinho dessa tua vulnerabilidade e memórias”. Nós acabamos por falar muito sobre a escola. É como se os c-mm fossem uma criança a crescer — agora estamos na adolescência.
Gui – Eu diria: “Tu já sabes, mas daqui a uns anos vais perceber”. Por acaso, a minha prima ouviu algumas músicas de c-mm e ficou pasmada com uma frase — “os pássaros não voam”. Perguntou-me o que era aquilo. E eu: “Pronto, um pássaro quando não tem asas é como se não servisse para nada, como se fosse um saco de plástico”. Ela ficou confusa, achava que estava a dizer isso por causa do teatro.
João – Mano, se uma criança me perguntasse isso, eu dizia-lhe para ir ouvir Bad Bunny. Vão divertir-se e deixem c-mm para depois.
Houve alguma reação do público que vos tenha surpreendido?
Matilde – Como sou a única sem instrumento, passo muito tempo a olhar para o público. Adoro estar perto das pessoas, e já vi pessoas desatarem a chorar. Várias vezes.
João – Ya, e com músicas que, para nós, até são engraçadas.
Matilde – O mais impressionante foi ouvir pessoas a dizer que se identificam totalmente com o que escrevo. Nunca tinha mostrado nada a ninguém, e agora vejo uma plateia inteira a sentir. Às vezes até me pergunto: “Vocês estão a reagir assim a isto?” São histórias que me magoaram, e há malta na plateia a rir. Mas é isso — é interessante ver como cada um lida com os sentimentos. Cria-se uma vulnerabilidade comum. Fogo, é pesado. Mas olha, também já me vieram dizer “Ah eu tenho uma relação bué fixe com o meu pai, mas curti na mesma”.
Gui – A nossa música é psicoterapia. Não, não, é propaganda — comecem a odiar os vossos pais! Estou a brincar, que fique registado.
Agora para fechar, os c-mm são mais grito ou sussurro?
João – Eu acho que a beleza da nossa música está em conseguir ser exatamente as duas coisas ao mesmo tempo. Um grito sussurrado.
Diogo – É como gritar para a almofada.
Matilde – Para mim, é um sussurro que se torna grito. Algo que está cá dentro e tem de sair. Às vezes queremos que a música seja triste, e depois há um grito — mas faz parte. Cada um de nós traz uma energia diferente. O João puxa para o pesado, eu e o Diogo para o mais introspetivo. Não somos só uma banda de altos.
O meu espaço seguro é a melancolia. Eu e o João somos Yin e Yang — ele expressa-se com raiva, eu com tristeza. Às vezes digo: “Por favor, não grites, isto é só triste.” Mas também tenho de aceitar que ele está a sentir, e que temos formas diferentes de expressar a nossa raiva. Eu expresso-a de forma mais triste e melancólica, e ele de forma mais explosiva. No fundo, vamos aprendendo a dançar com estas diferenças.
Entrevista por Tomás Peixoto