A Place To Bury Strangers // Dead Oceans // Fevereiro de 2015
9.2/10
Aquilo que era para ser uma sessão de dj set pessoal com as faixas presente no meu pc (Quem nunca?) acabou prontamente interrompido pelo Transfixiation, o novo longa duração dos norte-americanos A Place to Bury Strangers.
Devo confessar-vos que já tinha este LP parado na minha pasta de música há algum tempo. Já era para ter pegado nele mais cedo, mas hoje, por acaso, calhou.
Serendipidade é dizer pouco neste caso.
Aliás, a minha relação com os A Place to Bury Strangers sempre foi uma de serendipidade.
Tendo falhado o concerto deles no Porto em 2013 (nunca me vou perdoar por isto) e sendo já um seguidor mais ou menos regular dos seus trabalhos, foi com grande excitação que, no ano transacto, vi a integração do colectivo no cartaz da primeira edição do Reverence Valada. As expectativas que eu levava para o concerto eram altas e não saí de lá defraudado. Foi perto de 30 e tal minutos efusivos, e o Ackermann ainda escavacou a guitarra dele, esgotados estavam os escapes sonoros para a fúria que a sua mensagem transportava, ele passou para a catarse física do seu sentimento.
E essa mensagem é ruidosa e introspectiva. E sem surpresas, também o é Transfixiation.
Chega de recordações queridas. Falemos do álbum.
O primeiro tema “Supermaster” é uma balada introspectiva, um retrato.
A narrativa fala-nos de um indivíduo deslocado da realidade e cheio de dúvidas, que se tornou irreconhecível aos seus olhos. Talvez por actualmente eu me encontrar numa espécie de limbo na minha vida, esta “Supermaster” prendeu-me imediatamente. Eu revejo-me neste indivíduo, assolado por uma densa camada de pensamentos negativos. Esta narrativa de contornos simples foi o que bastou para me prender. Outra pessoa ficaria indiferente a “Supermaster”, mas eu estava no sítio certo, à hora certa, e com o estado de espírito ideal. Como já disse, serendipidade.
“Straight“ fala-nos da paixão não-correspondida e incompreendida.
A “Now It’s Over“ idem.
Todos temos algo a dizer neste campo. Os A Place To Bury Strangers são humanos, afinal de contas.
A “Deeper” é um dos momentos mais altos do disco.
Aqui, os nossos medos mais profundos são matéria de exploração.
O sentimento, puro, nu e animalesco é despertado num palco daquilo que parecem vários amplificadores a serem levados ao extremo, Ackermann personifica uma personagem sombria, de voz grave e com um tom ameaçador, numa atmosfera em tudo semelhante à
“Broken Little Sister” dos Death In Vegas, mas em mais pesado, naturalmente.
O disco acaba com a “I Will Die”, tema que aborda a efemeridade da vida e o niilismo em que os A Place To Bury Strangers se colocam e através do qual se expressam.
Este tema marca o fim do disco. Fala-se de morte, afinal de contas.
E essa toma lugar vezes sem conta no tema, como se a repetição do acto provocasse um aumento exponencial da dor no indivíduo.
A voz de Ackermann assim denuncia a sentença, vezes e vezes repetidas.
Apesar dos meus highlights pessoais, o facto é que todo o álbum é meritório de audição.
Ao fim ao cabo, esta é uma longa narrativa — composta por 11 histórias — escrita com linhas de baixo sujas, percussão e cordas a dispararem de todos os lados e, é claro, verbalizada com ruído, distorção e crueza. E é na parte que toca à verbalização dos seus contos que os A Place To Bury Strangers se mostram profissionais experientes.
Profissionais na exploração e experimentação de erros analógicos, para que, por via do ruído, se possa descortinar aquilo que de mais cru e animalesco o selo do post-punk comporta, os A Place to Bury Strangers não se preocupam com a existência de ruído.
Pelo contrário, amplificam-no. Ele é matéria fértil para a construção das suas paisagens conturbadas, humanizadas apenas pela presença do homem, já que tudo o resto que o rodeia é alienígena. Ruído, se assim lhe quisermos chamar.
As narrativas, essas de traços simples, são talvez o maior trunfo deste Transfixiation.
Porque, afinal de contas, a vida é simples. As pessoas é que a tornam complicada.
E os A Place To Bury Strangers são, obviamente, humanos. Têm problemas normais, desilusões naturais e uma existência que podemos classificar como normal.
Como nós, eles existem num mundo que não presta, cheio de dor, sofrimento e imundície. Não é por acaso que as suas narrativas são envoltas numa densa camada de ruído. Este é representativo de todas as barreiras que existem na nossa vida: os gajos que dizem que não és capaz de levar a tua avante, a sorte que não te toca, a gaja/o gajo que não te quer, a vontade de desaparecer, as dores, o sofrimento, enfim, tudo o que a vida tem de mau.
Chamem-lhe energias negativas, chamem-lhe vicissitudes, o que entenderem, mas compreendam que a presença de ruído em Transfixiation serve um propósito:
metaforizar a existência humana.
A lírica luta para trespassar esta barreira sonora porque, afinal de contas, nada que preste nesta vida se obtém sem esforço. Isto também é representativo da luta do homem contra as vicissitudes da vida. Enquanto formos vivos, temos que lutar mais um dia, contra as vicissitudes, os desaires, o ruído.
A metaforização dos elementos da existência humana na música dos A Place To Bury Strangers é prova evidente do seu génio, da lucidez com que encaram a vida, sintetizando-a em música.
A sintetização da vida em música — Ou da música em vida? — é, para mim, a prova maior de que estamos perante uma das grandes bandas da nossa era.
Com poucas audições em cima e muito sentimento ainda a fervilhar, não preciso de mais elementos para formar a minha opinião sobre Transfixiation: estamos perante um dos grandes discos de 2015. Não se admirem de ver este disco em listas de tops do ano.
A par do LP dos Viet Cong, Transfixiation já tem um lugar marcado no meu top.
Apesar de tudo, alguns de vós poderão argumentar (e com alguma razão) que o ruído é o núcleo da sonoridade deste Transfixiation. Um núcleo demasiado grande, que abarca todos os restantes elementos passíveis de apreciação. E têm razão.
Mas vamos esclarecer uma coisa, em linguagem muito simples: quem não curtir música ruidosa e distorção, não vai curtir o Transfixiation, pura e simplesmente.
Isto não é um disco para meninos.
Aliás, os A Place To Bury Strangers não são uma banda para meninos.
São gajos que sofrem, gajos que estão revoltados com a vida, para quem escavacar guitarras, partir cordas e ensurdecer os nossos e os seus ouvidos são das poucas liberdades que a sua existência ainda lhes permite.
E apesar de não apreciarem o ruído enquanto forma de expressão, é o nosso dever defender até às nossas últimas forças o direito que os outros têm de se expressar livremente.
Eu pessoalmente defendo o ruído enquanto forma de expressão e acho que esta liberdade — e muitas outras — devem ser exercidas e ilibadas de culpa no seu exercício.
Também acho que a mensagem dos A Place To Bury Strangers deve fazer-se ouvir.
E alto e em bom som.
Alguém que trate do regresso destes gajos a Portugal rapidamente por favor.
Transfixiation’s Tracklist:
1. Supermaster
2. Straight
3. Love High
4. What We Don’t See
5. Deeper
6. Lower Zone
7. We’ve Come So Far
8. Now It’s Over
9. I’m So Clean
10. Fill The Void
11. I Will Die