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Vera Marmelo © |
No passado mês de abril estivemos à conversa com Rui Carvalho, mentor por trás da identidade artística Filho da Mãe. O guitarrista lançou a 4 de maio o seu novo disco de estúdio, Água Má, com o selo da Lovers & Lollypops, gravado ente as paredes de estúdio HAUS, Lisboa, e uma residência artística na ilha da Madeira, no primeiro trimestre de 2018. Não só de Água Má foi feita esta conversa, tendo o artista deixado um apelo final a que se visite o Teatro Maria Matos, que está prestes a mudar para uma gestão privada.
Podem ler a entrevista na íntegra, abaixo.
Do teu ponto de vista, perspetivas e ideologias, quem é o Filho da Mãe?
Filho da mãe é algo pessoal, um pouco introspetiva e com carradas de ironia, de vez em quando. É uma pergunta difícil de responder porque nunca pensei propriamente nisto. Não é um alter ego, é só um nome que eu dou a uma coisa que passei a fazer a solo. Eu costumava tocar mais com bandas e quando se toca sozinho tudo acaba por mudar lentamente. É um discurso direto, pessoal, honesto, com os erros e com as virtudes todas.
No futuro gostarias de participar numa banda, como os If Lucy Fell, ou preferes continuar o teu caminho a solo?
Eu gostava de continuar o meu percurso a solo. Vou tendo colaborações esporádicas. Por exemplo, com o Ricardo Martins, já fiz também umas coisas engraçadas com o Tó Trips a propósito do festival Guitarras ao Alto. Vou tocando de vez em quando com mais gente e tenho colaborações em alguns concertos meus. Na verdade, tive há pouco tempo uma coisa com o João Pais Filipe, percussionista. Gostei muito de tocar com ele, mas acabou por não sair um disco. É uma coisa que está no forno e que vai acontecer quase de certeza. Se calhar até mais para o fim do ano. Mas sim, gostava de voltar a uma banda.
Achas que esse ponto de vista foi mudando com os passar dos álbuns e com as mudanças na vida? Por exemplo, foste pai antes do Mergulho.
Quando gravei o disco em Amares, já o gravei com a criança lá e a minha mulher foi comigo. Ela é música (Linda Martini) e além disso faz as capas. Fazemos sempre uma espécie de residência. No primeiro disco ainda estava confuso e agora percebo no que é que isto muda tudo, porque muda, de facto. É um bocado difícil dizer exatamente em quê. Os discos têm sempre uma continuidade, há sempre alguma coisa que vem de um para outro. Isso é algo que eu e a Cláudia começámos a assumir a partir do Cabeça, que um elemento gráfico se transmite de uns álbuns para os outros. Às vezes é muito subtil, não se vê mas está lá sempre devido à tal continuidade. Não há assim propriamente uma estrutura nos discos. Há um caminho diferente e eu noto que as coisas mudam, a forma de tocar, a forma de encarar a música, a forma de encarar as músicas mais acústicas e aquelas que têm pedais. Tudo isso vai mudando. Não sei se é muito perceptível essa mudança para algumas pessoas, se calhar nota-se mais ao vivo. Uma coisa que eu notei foi que a intenção de improviso aumentou. Gosto mais de fazer coisas em cima da hora, não gosto de as planear tanto. Não gostava nada disso no Palácio e agora gosto que as músicas não soem propriamente à mesma coisa. Gosto que elas não sejam iguais de concerto para concerto. Isso foi uma coisa que mudou, algo mais imediato, uma coisa um bocadinho mais ao pé dos dedos e menos da cabeça. Antes era mais da cabeça e menos dos dedos.
Há algum conceito ou temáticas por detrás deste novo trabalho?
Os conceitos às vezes são um bocadinho mentirosos porque eles vão-se adaptando à medida que fazemos as coisas. É difícil perceber o que é que vem primeiro, se o conceito se o álbum. A única coisa que veio mesmo antes do álbum foi a capa. Aquela alforreca meio esquisita com umas sombras também esquisitas. Tenho essa pintura em grande, que a Cláudia fez, no meu estúdio desde o início quando tinha para aí uma música. O conceito foi se adaptando e inicialmente tinha mais a ver com alguma coisa como “Casa” do que o resto. Não lhe chamei “Casa” porque tínhamos já pensado no nome da alforreca. A história da alforreca seria mais o de andar à deriva, de nunca planear nada e as coisas acabariam por acontecer. Algo que muita gente faz (risos). Não há um conceito muito definido, eram músicas pessoais, coisas muito próprias, com pouco pensamento só porque sabiam bem. Não tem um conceito específico, mas acabaram por ter um bocadinho o ar de família. Têm todas um bocado a ver com geografia. Por exemplo, eu oiço música do Peru esquisita, oiço coisas mais brasileiras, música africana, tudo misturado no mesmo sítio, sem grande bússola. Uma bússola partida, foi o meu primeiro conceito. Eu compus o disco quase todo em Lisboa, gravei no HAUS. De repente, no espaço de uma semana, o disco não ficou completo e surgiu a oportunidade de no mês seguinte gravar na Madeira. Saí de lá com um disco, tudo sempre muito pouco pensado, ao sabor da corrente. Os conceitos foram-se adaptando a isso. É menos importante onde é que eu estive a gravar e mais importante aquilo que eu estava a tentar fazer.
É sabido que os locais onde gravas os teus álbuns são muito importantes na sua história. Como é que são escolhidos esses locais?
No caso da Madeira, falei com o Hugo Valverde, técnico de som de muitas bandas que trabalha na Lourisom e que já me fez som algumas vezes. Antes de falar com ele já se tinha passado mais ou menos isto: gravei aqui em Lisboa e pensava que precisava de mais de uma semana para gravar o disco. Sabia muito bem o que é que ia ser. No entanto, falei com alguém de Barcelos para ir lá gravar, para me afastar daqui e ir gravar noutro sítio. Pensei ao início que o disco pudesse ser composto por músicas gravadas aqui no HAUS e outras que eu gravaria noutro sítio qualquer, sem grande conceito por trás, só mais porque eu já estou habituado. Eu gosto da história do field recording, chegar a um sítio, estar lá, comer lá, dormir lá. Gravar, tocar, tudo sempre no mesmo sítio. Pensei que podia unir as duas coisas, trabalho de estúdio e trabalho fora de estúdio. Pensava que ia gravar a Barcelos, mas não fui. Falei então com o Valverde, ele falou com o Pedro Azevedo do Musicbox que organiza o Aleste na Madeira. Por sua vez, o Azevedo falou com o pessoal do Barreirinha, gente que eu já conheço há algum tempo, já toquei no Aleste umas duas vezes. De repente, esta gente fala com o pessoal da Lovers & Lollypops, a minha editora e agência. E eu no espaço de uma semana estou a gravar na Madeira. Foi um processo rápido. Desde o momento que pus na cabeça que queria gravar o disco até ter o disco todo gravado e masterizado foram perto de 2 meses. Um disco de guitarra é uma coisa fácil de fazer, é apenas decidir o disco que queres ter. O que é complicado é tomar decisões com muito tempo de antecedência, pelo menos eu tenho alguma dificuldade. Acho que as melhores decisões são tomadas em cima da hora. Eu posso fazer isso porque logisticamente é mais simples. Se estivesse numa banda de seis elementos a ter que ir para a Madeira ou para outro lado qualquer, essas coisas tinham de ser tomadas com antecedência. Portanto, como já estou habituado a isso, deixei mais para o fim. O Mergulho foi muito bem combinado, com antecedência. Este eu pensei em fazer umas sessões de estúdio, tenho muitas horas de gravação que acabei por não usar. Ficaram-me aí ideias, boas ideias até, mas achei que não havia disco. No mês a seguir, um bocado por coincidência estava na Madeira a gravar. A Madeira entra a pé juntos no disco, mas o conceito não tem propriamente a ver com a Madeira. Tem tanto a ver com lisboa como com a Madeira, ou outro sítio qualquer. Aliás, os concertos de apresentação vão ser em Lisboa, Porto e Açores. Na Madeira eu toquei lá na altura da residência, na Barreirinha.
Estando nesses locais, como é que funciona o processo de composição? Já tens ideias prévias ou é tudo inspirado pelo espaço que te rodeia?
Neste caso tinha, mas no Mergulho eu fui gravar a Amares e não tinha ideia absolutamente nenhuma, tinha apenas a direção do disco na cabeça. Desta vez faltava-me a direção do disco, tinha só as músicas. A direção do disco é como construir uma narrativa, tenho as músicas mas não sei que títulos é que são, não sei qual é o primeiro, não sei qual é o segundo. Na Madeira encontrei essa direção, e claro que o ambiente tem tudo a ver. Nós gravámos numa casa de um rapaz chamado Diogo Freitas, da família Freitas. Uma casa muito antiga com história, num ambiente de tempestade autêntico, a tempestade Emma. Havia pontões a serem partidos, turistas a caírem à água. Havia muitas músicas que já estavam feitas para o disco mas ainda não tinha conseguido criar a narrativa que queria. O Valverde ajudou-me muito a descobrir essa história. Há um dia que eu saí, fui almoçar e quando cheguei, o Valverde disse-me que afinal tínhamos 30 minutos de disco, que depois passaram para 40 minutos de disco, quando eu pensava que ia ter ali perto de uns 20 minutos.
É sempre bom ter uma perspectiva de fora.
Foram todos assim até agora. A pessoa que grava funciona um bocado como um elemento banda, a pessoa que está atrás da secretária e ao início não percebe nada do que estou ali a fazer e, de repente, aquilo começa-lhe a fazer sentido.
Se calhar é porque a pessoa que está a gravar contigo não tem aquela ligação emocional, então consegue ser mais racional em relação às músicas.
Isso sem dúvida. Mas a parte boa é quando a pessoa larga a parte racional e começa a aproximar-se da parte emocional. Primeiro não entende qual é o problema e quantas músicas é que já estão gravadas. Nem sequer sabe bem os nomes das músicas nem quais são as músicas. De repente começa-se a encontrar naquilo e começa a perceber como é que a coisa está a surgir. Foi o que aconteceu com o Brandão no Mergulho, o Guilherme Gonçalves no Cabeça e o Makoto Yagyu no Palácio. O sistema é sempre mais ou menos o mesmo, a pessoa com quem eu gravo também me ajuda a definir aquilo que é o disco. Eu gravo muitos takes e muitas vezes já nem sei o que é que tenho lá, preciso de ouvir aquilo com calma. A pessoa que está com esse distanciamento normalmente vai ouvindo as coisas que vão saindo e faz uma proposta de alinhamento de disco. O Valverde fez uma proposta de alinhamento de disco que eu achei brilhante e que funcionou muito bem para mim. Não tinha o mesmo disco no estúdio se não fosse ele, saia outro disco qualquer. Ou seja, estares a gravar num local influencia e muito. Primeiro é bom uma pessoa sair do estúdio, não ir diretamente para casa e preocupar-se com as suas coisinhas do dia-a-dia. É muito bom aquilo ser uma espécie de bolha, um intervalo na vida em que uma pessoa só se preocupa com o disco. Estou habituado a gravar os discos quase todos assim. As coisas ganham uma coerência, são menos cerebrais. São decisões tomadas com o coração e com ossos e com os braços. Eu não conseguiria fazer isso com bandas. Fazer uma espécie de pré-produção talvez seja fácil, agora gravar um disco e ele ficar acabado é mais complicado. Tem me corrido sempre bem quando faço isso.
Como foi a experiência de gravar na Madeira?
Foi ótima, envolveu muita poncha a horas esquisitas. A poncha também entra no disco. Qualquer bandinha que lá vá gravar ou se depara com 970 ou com poncha e aquilo funciona bem. Há uma energia fantástica na Madeira, principalmente à volta destas pessoas que tenho falado, do Aleste e do Barreirinha. A Madeira começa a saltar-te para os ossos e para os olhos. É um belo sítio para se estar e acabar por influenciar bastante. É difícil dormir na Madeira, com as pessoas que eu conheço é difícil (risos).
Onde é que as pessoas te vão poder ver nos próximos meses?
8 de maio no Teatro Maria Matos, 9 de Maio no Ateneu Comercial do Porto, 17 de maio na Horta, no Festival MUMA, 19 de maio em São Miguel, 23 de maio no Festival Impulso, nas Caldas da Rainha, 24 de maio no Teatro Aveirense.
O que andas a ouvir nas últimas semanas além do teu disco?
Precisamente por causa disso não ando a ouvir absolutamente nada. Não consigo ouvir nada. Ouvi tantas vezes o meu disco, a pensar nele, na altura das misturas. É muito errado a pessoa ouvir tantas vezes o seu próprio disco.
Regra geral, os artistas não gostam muito de ouvir os seus discos.
Mas há uma altura em que tens que ouvir, principalmente se és o único gajo a dirigir aquilo. Às vezes há coisas que eu já nem dirijo. Já confio na pessoa e assumo aquilo que lá está. É um bocado esquisito estar sempre a ouvir a mesma voz. Ou o disco começa a parecer demasiado bem ou começa a parecer demasiado mal. Depois desse período gosto de ter uma altura em que não oiço absolutamente nada. Se eu quiser ouvir alguma coisa, oiço alguma emocionalmente neutra, por exemplo, jazz. Leva-te para um sítio muito específico desse género, não se mistura com mais nada. A música que oiço mais provavelmente é música do Mali, música africana, leva-me para longe. Aqui de perto tenho ouvido muito pouco.
Alguma mensagem final para os leitores desta entrevista, alguma coisa que queiras dizer?
Venham aos concertos. Abram o coração e a mãos e depois bebemos um copo. Falando de outra coisa, também tem a ver com aquilo que falei há bocado acerca de casa, uma dessas casas era o Teatro Maria Matos. Desde o início que lá toco e me abriram as portas, deram-me condições para fazer coisas que não tive noutros sítios. Foram concertos sempre espetaculares que nunca me hei-de esquecer na vida, toquei lá com a maior parte dos meus amigos. Um teatro pode ser uma coisa fria mas aquilo para mim é uma coisa quente.
Eu também sinto muito isso, sempre fui lá bem recebido.
É um sítio brutal que vai passar de uma gestão pública para uma gestão privada. Daquilo que nós sabemos, a continuidade toda deste trabalho que foi feito, pelo menos na parte da música, que há coisas mais importante na arte, teatro, dança, gente que normalmente não tem sítio para fazer as coisas. Aquilo vai passar para uma gestão privada que não dá garantias nenhumas de que o trabalho que foi desenvolvido até agora se perpetue. Eu tive lá concertos com sala cheia e há lá muitos concertos com sala cheias para música que normalmente é considerada, e foi pelo vereador, como emergente. Ninguém sabe o que é que emergente quer dizer neste contexto. Não percebo essa história da música emergente. Aquilo é uma despedida, não só porque vai mudar alguma coisa, porque as coisas mudam. Aquilo é um bom exemplo da lógica de raciocínio quando se fala em investimento público e investimento na cultura. Os orçamentos não rebentavam, pelo o que eu sei, não é por causa do Teatro Maria Matos que o país está no estado em que está. Geravam empatia com o público, até podias fazer assinaturas mensais, num sítio que não tem nada a ver com moda em Lisboa. Não é onde as pessoas param, não é o Bairro Alto, não é o Cais do Sodré. As pessoas iam lá por causa disso e depois, de repente, com um lógica muito mercantilizada, começam a falar de cultura quando só estão a falar de números, na verdade, e é triste porque houve muita gente que lá trabalhou. Em Lisboa não tens salas daquele tamanho, tens salas gigantes ou muito pequeninas. Tinhas uma sala média com um certo registo, mas há coisas que não cabem lá. Houve muita gente que nunca pôs os pés no Maria Matos, mas houve muita outra gente que sim. Aquilo seria uma coisa a manter e dar como bom exemplo. A forma como foi ou parece que vai ser varrida, a partir do momento em que é uma gestão privada, a lógica do investimento público desaparece. Essa era a mensagem que eu gostava de dar, para as pessoas irem àquele teatro.
Entrevista por: Rui Gameiro