Um Corpo Estranho em entrevista: “Somos obrigados a (…) procurar o extraordinário no casual”

Um Corpo Estranho em entrevista: “Somos obrigados a (…) procurar o extraordinário no casual”

| Abril 1, 2019 6:58 pm

Um Corpo Estranho em entrevista: “Somos obrigados a (…) procurar o extraordinário no casual”

| Abril 1, 2019 6:58 pm
© Rui David

Um Corpo Estranho são uma dupla Setubalense composta por Pedro Franco e João Mato e este ano voltaram às edições discográficas com Homem Delírio. O sucessor de Pulso (2016) chegou às lojas no passado dia 22 de março com o selo da Malafamado Records e apoio da Fundação GDA. Neste novo registo o duo explora um universo mais introspectivo e intimista, apoiando-se numa poética inspirada no surrealismo e no teatro do absurdo, envolvendo os oito temas que o compõem em camadas ambientais mais densas que nos discos anteriores.


A Threshold Magazine esteve à conversa com os Um Corpo Estranho sobre o novo disco Homem Delírio, o crescimento da dupla ao longos dos anos, a cultura na cidade de Setúbal e muito mais. Leiam a entrevista completa em baixo.

Threshold Magazine (TM) – Do vosso ponto de vista, perspectivas e ideologias, quem são os Um Corpo Estranho?

Um Corpo Estranho (UCE) – Um Corpo Estranho é o resultado de um jogo criativo entre duas cabeças. Somos velhos amigos e tocamos e escrevemos canções juntos desde a adolescência. Ainda assim, temos influências e vamos beber inspiração de fontes díspares. No final, as canções acabam por nos ser estranhas aos dois, apenas o corpo é comum. Tentamos não anular as ideias e a personalidade um do outro no que compomos, o que sobra disso é o que define a nossa música.

TM – Porque delira o Homem?

UCE – Por tudo. Começa por ser um delírio o simples facto de escrever uma canção. Somos obrigados a transpor o quotidiano para algo que nos pareça mágico, a procurar o extraordinário no casual. É preciso extrapolar, sublimar e deixarmo-nos levar pela impressão das coisas. Metaforicamente, é o delírio de um Dom Quixote, ou se quisermos ficar aquém-fronteiras, o delírio impressionista de Cesário Verde. As canções são o nosso portal para outros universos, onde conhecemos coisas extraordinárias. Como no universo de Alice, de Lewis Carroll, crescemos e diminuímos, lutamos e aceitamos o invulgar por normal. No fundo, o Homem delira para celebrar a capacidade de sonhar.

TM – Sentem que alguma coisa mudou entre De Não Ter Tempo (2014) e Homem Delírio (2019)?

UCE – Sim, muita. Crescemos, entretanto. Encontrámos uma linguagem própria e deixamo-nos de preocupar tanto sobre em que caixa arrumar o trabalho que fazemos. A ruptura com os discos de canções anteriores foi propositada. Precisámos dessa liberdade. Paralelamente, aproximamo-nos mais dos ambientes dos trabalhos que fizemos para teatro físico e dança, o caso de A Velha Ampulheta (2015) ou Qarib (2018). Este disco serve-nos um pouco de tabula rasa, para meditar e perceber quem somos enquanto escritores de canções e que caminhos se podem abrir dentro dos vários universos de Um Corpo Estranho. Duvido que voltemos a compor um disco como este.


TM – Como funcionou o processo de composição em Homem Delírio? Sabemos que neste disco apostam numa abordagem teatral e surrealista. 

UCE – O processo é sempre o mesmo. Escrevemos as nossas coisas em separado. Depois começa o ping-pong. Moldamos as ideias um do outro e andamos alí como no jogo do Risco, a roubar território um ao outro. Até que nasce a canção final, que já é dos dois, ou antes, que já é de Um Corpo Estranho. Depois é encontrar um terreno estético, para o qual contribui o nosso produtor, Sérgio Mendes, com quem temos vindo a trabalhar, entre outra boa gente talentosa. Este disco, em específico, já tinha um universo, legado pelos trabalhos para teatro físico que tínhamos feito.

TM – O que vos influenciou a modificar o vosso registo musical?

UCE – Não foi nada em concreto. Sentimos que queríamos explorar este lado mais cénico nas canções. Quisemos prestar homenagem a alguns arquétipos da literatura, e andámos a namorar essa ideia do sonho, do absurdo onírico, do impressionismo, do surrealismo, no fundo, diferentes perspectivas do que é criar algo do nada, da capacidade de olhar o mundo real e metamorfoseá-lo em qualquer coisa interessante, a transformação das barreiras em possibilidades. Talvez seja isso, ser adulto é extremamente cansativo, sentimos que o espírito se curva e que nos resignamos demasiado. Este disco somos nós à procura de sermos crianças, a inventar mundos de forma séria, como uma criança se leva a sério enquanto sonha.

TM – Podem contar-nos como foi a experiência da criação da parte visual de Homem Delírio por parte da Rita Melo?

UCE – Lançámos o desafio à Rita de criar a cara desta personagem para a capa do disco. Passámos-lhe os temas e as letras e não aprofundámos muito nenhum conceito. Gostamos de dar liberdade criativa absoluta a quem trabalha connosco. Foi assim também com o António Aleixo, que realizou o vídeo para “O Estrangeiro” e está a ser assim também na criação do espectáculo com o Ricardo Mondim. A Rita aceitou prontamente e enviava-nos esboços a uma velocidade estonteante. Por fim, escolhemos a face que ficou na capa. É uma pessoa incrível e uma artista que admiramos muito.


TM – A nível de concertos de apresentação deste novo disco, têm uma atuação marcada para o dia 11 de Maio, no Teatro Teatro São João em Palmela, com um espetáculo de dança e teatro físico. Os vossos concertos costumam ter uma forte componente cénica ou este vai ser especial?

UCE – Normalmente não. São concertos simples, seja no formato em duo, ou com a banda. Mas quisemos criar essa ruptura também. Sentimos este disco como outra coisa mais do que apenas canções. Somos amigos do Ricardo há muito e já trabalhámos juntos em dois espectáculos de sua autoria. Queríamos que a nossa música fizesse parte do universo em que ele se move em cena, mas desta vez queríamos estar lá também. Conhecemos bem o trabalho dele, que também tem muita importância no universo do nosso, visto ter colaborado sempre na parte visual de Um Corpo Estranho, criando marionetas e estruturas para os nossos vídeos. Mas nunca estivemos em palco com ele, só estava a nossa música. Desta vez quisemos dar oportunidade a isso. É um criativo incrível e uma pessoa fantástica de se trabalhar. Está a ser um desafio muito motivante para os três, visto que ele também não tem por hábito trabalhar com música ao vivo nos espectáculos. E depois é mais uma extrapolação das nossas canções, como aconteceu com a ilustração da Rita, ou com o vídeo do Tó. O Ricardo tem uma leitura própria da temática dos temas e outras possibilidades se abrem. Acho que esse é o factor mais interessante, sentir que a música não é uma coisa estática e fechada.

TM – Além desta data, onde é que vamos poder ver Um Corpo Estranho nos próximos meses?

UCE – Já temos algumas datas fechadas mas para já apenas podemos anunciar a da estreia. Em breve vamos anunciar na página de Facebook e Instagram.

TM – Planos para o futuro, há algo que nos possam contar?

UCE – Para já estamos a preparar o espectáculo para a estreia e contamos levá-lo a todos os cantinhos do país. Talvez fora de fronteiras também, mas para já temos Portugal como prioridade. Já começámos a escrever alguns esboços para um próximo disco. É uma coisa que não se cala em nós. Temos de escrever canções. Mas para já estamos muito focados no Homem Delírio e ansiosos por levar o espectáculo ao maior número de públicos possíveis.


TM – Como sentem que está a situação cultural de Setúbal? Acham que se podia fazer mais na divulgação de projectos artísticos na cidade em que vivem?

UCE – Actualmente a cidade está a gozar de muito boa saúde a nível cultural. Mesmo o perfil do setubalense está a mudar. Crescemos na cidade e habituámo-nos à típica fisionomia de humores que era comum nos habitantes. Nunca foi uma cidade triste, mas era uma cidade em constante desconforto. Havia muito pouca coisa a acontecer e muitos poucos apoios. Hoje em dia isso está a mudar. O típico setubalense de hoje sorri mais, cuida mais da cidade, usa melhor os espaços, usufrui da oferta cultural e tem mais orgulho em sí próprio, e já não quer fugir para Lisboa, como noutros tempos.
Mas há sempre mais a fazer. Os artistas independentes continuam a carecer de apoio e é natural que o procurem na cidade. Falta ainda algum caminho nesse sentido, uma proximidade maior entre Setúbal e o que Setúbal produz.

TM – O que andam a ouvir nas últimas semanas?

UCE – O último álbum de Luca Argel, Conversa de Fila e os discos de estreia dos nossos conterrâneos Museum Museum, Bare Me Raw, e A Garota Não, Rua das Marimbas.

TM – Querem deixar alguma mensagem aos nossos leitores?

UCE – Apenas de carinho e gratidão pelo tempo que despendem a ler-nos a ouvir-nos ou a presentear-nos com a vossa presença nos nossos espectáculos. Não temos como agradecer. Abraço a todos! E um forte abraço e muita gratidão a toda a equipa da Threshold Magazine.



Podem ouvir aqui em baixo Homem Delírio, o novo álbum dos Um Corpo Estranho.


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