André Carvalho em entrevista: “Em Nova Iorque há espaço para qualquer estilo e corrente de música”

André Carvalho em entrevista: “Em Nova Iorque há espaço para qualquer estilo e corrente de música”

| Maio 18, 2019 1:02 am

André Carvalho em entrevista: “Em Nova Iorque há espaço para qualquer estilo e corrente de música”

| Maio 18, 2019 1:02 am
© Clara Pereira 

André Carvalho é um contrabaixista e compositor lisboeta que se encontra a residir em Nova Iorque desde 2014. O seu currículo é vasto, precioso e invejável, tendo colaborado com muitos músicos de várias nacionalidades e tocado intensivamente pela Europa, Estados Unidos e Egipto. Nos dois primeiros álbuns, Hajime e Memória de Amiba, o artista apresentou-nos uma mistura original de jazz contemporâneo com elementos de música portuguesa, tendo recebido muitos elogios da crítica nacional e internacional.


The Garden of Earthly Delights é o seu terceiro álbum e chega às lojas em maio deste ano. Inspirado na enigmática obra de Hieronymus Bosch, particularmente no quadro The Garden of Earthly Delights (1490-1510, Museu do Prado, Madrid), este trabalho conta com a participação de famosos músicos internacionais como Jeremy Powell, Eitan Gofman, Oskar Stenmark, André Matos e Rodrigo Recabarren, tendo sido gravado em Abril de 2018 no The Bunker Studio em Brooklyn, Nova Iorque.

A Threshold Magazine esteve à conversa com André Carvalho sobre o novo disco The Garden of Earthly Delights, a obra de Hieronymus Bosch, a sua vida em Nova Iorque e muito mais. Leiam a entrevista completa em baixo.

Podes-nos contar como é a experiência de viver em Nova Iorque como músico?

André Carvalho (AC) – Já vivo em Nova Iorque há quase 5 anos. Durante este tempo a minha relação com a cidade foi-se alterando. Mudei-me para cá inicialmente para fazer mestrado na Manhattan School of Music, que durou 2 anos. Tinha muito pouco tempo para fazer coisas para além do mestrado, porque este era muito intenso. Foi óptimo, fiz imensos amigos e estabeleci imensas relações musicais e, do pouco tempo que ia sobrando, tentei ao máximo ver concertos, ir a jam sessions e ter algumas aulas fora da universidade. Após este período, as coisas mudaram bastante. De repente, fiquei com muito mais tempo livre mas também tinha de arranjar soluções para viver. Comecei a dar aulas e a fazer muitas sessões com músicos que fui conhecendo ou através de outros amigos músicos ou em jam sessions. Sinto que neste período fui começando progressivamente a usufruir mais da cidade e da sua vida. Nova Iorque é uma cidade incrível, tem imensos músicos e o nível é realmente muito alto. Para mim, isto é um estímulo muito grande, apesar de por vezes haver momentos de cansaço absoluto. Temos de fazer um pouco de tudo, tocar, escrever música, dar aulas, para além de tudo o que uma vida normal envolve, como família, amigos, etc. Para além disto, acontece um pouco de tudo e terás certamente sempre alguém com os mesmos interesses que os teus e há sempre muita coisa nova a acontecer. Por vezes, o difícil é escolher, ter tempo e dinheiro para tudo.

Olhando para trás, mais concretamente para os álbuns Hajime e Memória de Amiba, de 2011 e 2013, respetivamente, e para o mais recente The Garden of Earthly Delights, sentes que o processo de composição se modificou ao longo da tua carreira?

AC – Sim, sem dúvida. Acho que isso é normal que aconteça e se não acontecer é porque algo está errado. É suposto irmos evoluindo na composição, como em qualquer outra faceta musical. Não só porque vamos ficando mais maduros, como também estamos sujeitos a coisas novas, influências, experiencias e pessoas. Acho também que o passar do tempo e quanto mais compomos, que temos uma maior capacidade de desapego em relação ao que escrevemos, não só porque conseguimos ver as coisas com um olhar mais astuto, como também por compreendermos que passamos por fases e estamos em constante evolução. No caso específico deste novo disco, o processo foi ainda mais diferente do que fiz anteriormente, porque parti de um quadro. Comecei por selecionar determinadas partes que achei interessantes, capturar e transmitir a sua essência através da minha música.

© Clara Pereira 

The Garden of Earthly Delights foi o primeiro disco que gravaste fora de Portugal, no The Bunker Studio em Brooklyn, Nova Iorque. A cidade de Nova Iorque é uma influência notória no disco?


AC – Sim, sem dúvida. Primeiro, os músicos que tocam no disco vivem cá e foi cá, em Nova Iorque, que os conheci. Além disso, tenho a certeza de que a forma como escrevi esta música e a forma como toco foi influenciada por estes anos que tenho cá estado. Foi em Nova Iorque que tive contacto com músicos e compositores que me influenciaram nos últimos tempos, onde toquei muitas horas com muitos músicos, incluindo os que fazem parte do disco e onde tive também aulas com algumas pessoas determinantes no meu percurso.

TM – Como foi a experiência de gravação em estúdio e como foram escolhidos os músicos com quem decidiste gravar o disco?

AC – A experiência foi óptima e relaxada. Já tínhamos tocado a música em 2 ou 3 concertos antes de irmos para o estúdio, por isso as coisas já estavam alinhadas, sendo que há sempre alterações que se fazem à última hora. Reservei o estúdio por um dia e meio de gravação e, após o primeiro dia, ficámos com tudo praticamente gravado, sobrando o outro meio dia que aproveitámos para fazer alguns takes extra e gravar alguns overdubs. O estúdio é muito bom e tem um ambiente descontraído. Os músicos conheci em momentos e sítios diferentes. O Eitan Gofman (saxofone) foi meu colega na universidade e ficámos muito amigos desde que nos conhecemos. Passávamos horas a tocar juntos e é um músicos extremamente talentoso e inteligente, toca muito bem vários instrumentos e é muito espontâneo. O Oskar Stenmark (trompete) já conhecia antes de vir para Nova Iorque, porque ambos participámos num concurso em Bucareste, ele com uma banda dele e eu com a minha. Por mero acaso, voltámos a encontrar-nos na universidade porque fomos colegas, assim como o Eitan. Adoro o som do Oskar e sabia que ele traria algo de especial ao som do grupo. Já conhecia o André Matos (guitarra) de Portugal, sendo que não éramos muito próximos na altura. Quando vim para cá aproximamo-nos e hoje em dia tocamos bastante juntos, no meu projecto assim como noutros projectos paralelos. Tem um som muito especial, para além de contribuir sempre com boas ideias, críticas e sugestões. O Jeremy Powell (saxofone) e o Rodrigo Recabarren (bateria) conheci há cerca de dois anos julgo eu, fazendo sessões em casa de outros músicos. O Jeremy é um autêntico craque, tem um som incrível e sei que lhe posso dar qualquer coisa para tocar que ele vai soar sempre bem. O Rodrigo toca muito bem também, para além de se ter tornado um verdadeiro amigo. Gosto do som dele, a abertura de espírito e interacção.


O quadro The Garden of Earthly Delights de Hieronymus Bosch foi a principal inspiração deste novo trabalho. Porquê a escolha deste quadro em específico?

AC – São várias as razões. Para começar, este quadro é uma autêntica obra-prima. O seu criador era um visionário, tendo uma abordagem muito à frente do seu tempo. Além disso, este quadro, assim como outros que Bosch pintou, é muito controverso. Não há unanimidade em relação a muitas das coisas que nos são apresentadas, há muito mistério e simbolismo por trás de cada detalhe. Para mim o quadro conta uma história e isso era algo que queria para o género de música que queria escrever. O quadro fala também sobre várias questões relacionadas com a condição Humana, as nossas acções enquanto Seres Humanos e, para mim, o nosso papel no Mundo.

Além da interpretação detalhada da obra de Hieronymus Bosch, há alguma temática pessoal neste disco que gostarias de partilhar?

AC – Para mim, Bosch retrata a sua visão da Humanidade. Nem sempre é a que partilho, mas também o quadro foi pintado há 500 anos, por isso é normal que isto aconteça. No entanto, o quadro põe-me a pensar sobre o nosso papel enquanto habitantes do nosso planeta, enquanto membros da sociedade e nas nossas responsabilidades. Para além disto, o quadro é um tríptico que tem três painéis interiores e um painel exterior. É comum achar-se que Bosch apresenta-nos uma narrativa que começa com o quadro fechado passando para o interior que segue da esquerda para a direita. Para mim, esta história que nos é contada é um eterno retorno, as nossas acções repetem-se, assim como o quadro fecha-se e abre-se. Para quebrar este ciclo, temos de ser conscientes de nós próprios, dos outros e do mundo em que vivemos. Por isso, a suite que escrevi começa e acaba de forma semelhante, para além de todos os outros elementos que vão sendo revisitados ao longo da obra. Por isso também decidi dar o nome de “Phowa” ao último movimento da suite, que se refere a uma prática meditativa Tibetana que consiste na transferência da consciência aquando da morte.

A capa de The Garden of Earthly Delights parece ter uma atitude mais otimista, exótica, espacial, e, diga-se até, New Age, face à pintura de Hieronymus Bosch. Como é que surgiu a ideia para esta capa?

AC – A ideia inicial que tive era pegar em emoções, símbolos, conceitos que são apresentados no quadro e apresentá-los de uma forma diferente mas tentar que fosse igualmente forte e visualmente impressionante. Não queria que o artwork fosse uma interpretação do quadro ou algo do género. Depois disto, tentei imaginar o meio em que imaginava o artwork e rapidamente fui parar ao mundo da colagem. Depois, soube da Margarida Girão e do seu trabalho e entrei em contacto com ela. É uma artística incrível e queria que ela trabalhasse comigo. Ela gostou muito do projecto e atirou-se de cabeça. Fomos falando sobre as nossas ideias e conceitos. Começámos com um brainstorming com palavras/conceitos que achávamos que deviam ser retratados e depois a Margarida foi apresentando várias versões, que na verdade até não foram muitas, até chegarmos à versão final. Para além de todo o trabalho que a Margarida fez, decidimos também brincar com formato do disco, escolhendo um formado em três faces interiores e exteriores como um tríptico. Aberto temos um ambiente muito diferente do seu interior, que é mais íntimo e calmo.

Já tocaste com nomes do jazz, música clássica e fado como Maria João, Mário Laginha Carlos do Carmo e Cristina Branco. Com que outros músicos nacionais gostarias de colaborar?

AC – Há muitos nomes que gostaria de colaborar, não só de Jazz como eventualmente de outros géneros musicais, tanto lendas da música portuguesa como também novos talentos. Em relação a estes últimos, gosto sempre de ir conhecendo músicos mais novos e aprender com eles. Felizmente, na área do Jazz têm havido imensos novos músicos a aparecer e isso é óptimo! Quando vou a Portugal, acabo por conhecer sempre alguém novo que toca bem. Em relação às parcerias e colaborações seria fantástico, mas sei que estar em Nova Iorque pode dificultar as coisas.

Foste escolhido pelo consulado português para representar Portugal no European Sounds Festival, no Blue Note, NY, a 30 de junho. Como é ser reconhecido e ter a honra de representar o nosso país lá fora?

AC – É fantástico! A Blue Note é um dos clubes com mais nome do mundo e será óptimo apresentar o novo disco lá. Estou muito orgulhoso e feliz por ter o apoio do consulado. Conheço alguns outros músicos que estarão a participar no European Sound Festival, representando os seus países, por isso será ainda melhor porque estarei com vários amigos! O consulado português ajudou imenso e estou imensamente grato pelo apoio!

Que diferenças notas entre tocar em Nova Iorque e Portugal, em termos de público e espaços para concertos?

AC – Em Nova Iorque há muitos mais sítios para tocar, mas ao mesmo tempo também há muitos mais músicos e a competição é feroz. Há espaço para qualquer estilo e corrente de música. Isso é óptimo, porque significa que também há público para isso. Em relação ao Jazz, esta é a capital deste estilo. Nos clubes mais centrais, há sempre imensa gente a ver concertos, muitos turistas mas também muitos Nova Iorquinos.
Em relação a Portugal, tenho mais dificuldades em ter uma opinião fundamentada, visto que já não estou aí a viver e geralmente só aí vou no Verão e Natal, que por vezes são épocas mais difíceis de programar. No entanto, das últimas vezes que toquei em Portugal, nomeadamente no Hot Clube em Lisboa, senti que havia muito interesse e muito público, para além da comunidade de músicos que acaba por estar sempre presente. Em Lisboa, sinto que há muito público estrangeiro. Acho que fora dos grandes centros é ainda difícil tocar e quando se trata de organizar uma tour que passe por vários sítios com vários concertos de seguida sem dias “mortos” mais difícil ainda.

Equacionas um regresso a Portugal nos próximos anos ou sentes que encontraste a “tua casa” em Nova Iorque?

AC – Gosto muito de estar em Nova Iorque e consigo imaginar-me aqui, mas um regresso a Portugal não está posto de parte. O ideal talvez fosse ter um pé em cada lado do oceano. A cena em Nova Iorque é realmente estimulante, mas eu tenho parte da minha família em Portugal e isso também conta muito.



Entrevista: Rui Gameiro
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