Filipe Sambado em entrevista:”Revezo é um disco que assume um privilégio”

Filipe Sambado em entrevista:”Revezo é um disco que assume um privilégio”

| Fevereiro 14, 2020 12:00 am

Filipe Sambado em entrevista:”Revezo é um disco que assume um privilégio”

| Fevereiro 14, 2020 12:00 am
© Diogo Vasconcelos & Xipipa
Filipe Sambado é um dos artistas nacionais que mais tem dado que falar nos últimos anos, seja pela sua veia artística – editou três discos de originais entre 2016 e 2020 e produziu inúmeros projetos – seja pelo seu lado mais ativista, de luta pela igualdade – veja-se o mais recente cancelamento do concerto no Hard Club, Porto, devido à sala de espetáculos ter recebido um comício do Chega.

Para já, 2020 tem sido um bom ano para o artista, com a edição de Revezo (24 de janeiro, Valentim de Carvalho) o seu terceiro disco onde a pop contagiante dá a mão à música popular portuguesa, explorando novos ambientes e estéticas, e com a participação no festival da canção com o tema “Gerbera Amarela do Sul”.

Em entrevista por telefone no passado dia 23 de janeiro, falámos com Filipe Sambado sobre a composição de Revezo e as suas influências, a participação no festival da canção, o modo como prepara as suas atuações, entre outros assuntos.






Neste novo disco, Revezo, notámos uma mudança da produção e estética face aos álbuns anteriores, Filipe Sambado & Os Acompanhaste de Luxo (2018) e Vida Salgada (2016). É um disco mais eletrónico, folclórico, onde as flautas ganham um novo destaque e as guitarras passam para segundo plano. O que motivou essa mudança?

Filipe Sambado (FS) – Foi um bocado ao encontro de uma aproximação que eu já vinha a fazer no disco anterior, nalguns temas, como o “Dá Jeitinho”, “Dono da Bola” ou o próprio “Só Beijinhos”, que também tem assim um início já a sugerir um ritmo mais para o Chula. Depois o que acabou por acontecer foi que a determinado momento dos arranjos do disco comecei a perceber qual era a linha do disco, já pelas guitarras que eu tinha feito, a forma como estava a encaixar as palavras nas canções, começou-me a fazer sentido fazer uma exploração maior e com rigor de lugar, que é uma coisa que eu não vinha a fazer com tanto cuidado.  Tenho sentido a necessidade de que a música além de ser de um tempo seja também de um lugar. Para mim a melhor forma de transportar estas canções e estas palavras seria com este tipo de arranjos e de cuidado. A inclusão da flauta deve-se antes do mais por já tocar há muito tempo com a Violeta, uma amiga próxima com quem eu já tinha tocado em Jasmim, queria incluí-la neste novo disco. O trabalho percussivo deveu-se a um período em que foquei as minhas atenções em artistas mais específicos dos anos 60 e 70, nomeadamente o Fausto e o José Afonso. Também houve ali uma fase em que a Rosalía se tornou muito importante e me ajudou de certa forma com o El mal querer, ajudou-me a tentar fazer essa ponte entre uma linguagem mais atual e uma linguagem mais folclórica, mais portuguesa. 

Indo de encontro ao que disseste anteriormente, em Revezo parece que há uma fusão de letras modernas com música popular portuguesa e de intervenção. Voltando aos discos anteriores, já se notava este cariz interventivo em algumas das músicas.

FS – Exato. Era uma coisa mais ou menos presente, neste disco foi mesmo uma decisão de balizar as influências, uma tentativa mais consciente, não estar a fugir a um conceito. Normalmente a fase em que passo aos arranjos é uma fase mais demorada, não tem a ver só com a parte da composição, é uma coisa em que eu estou cuidadosamente a aperaltar as canções. Neste disco foi um processo mais moroso, achei importante a determinada altura, quando comecei a perceber o caminho das canções, tentar começar a ouvir mais algumas coisas e focar-me mais nesse sentido. No caso do disco Filipe Sambado & Os Acompanhaste de Luxo é um bocado indiferente porque foi um trabalho feito com uma banda inteira. Na Vida Salgada houve um período em que ouvia mais uma coisa, outro período em que ouvia outra coisa. Em Revezo esse período dos arranjos, o encerramento acontece numa altura em que eu decido que queria ouvir as manhas dos mestres, queria estar focado nisto, sem me deixar influenciar por tanta outra música que vou pesquisando. A minha pesquisa cingiu-se mais a este lado de ouvir quem já o tinha feito tão bem, essa apropriação da nossa música folclórica passando para música do seu tempo, e como é que eu poderia fazer também alguma investigação através de música folclórica e tentar pô-la no meu tempo. É esse tal cruzamento, naturalmente com temas mais atuais por serem meus e dos meus dias, mas com essa noção geográfica. 

Falaste nos Acompanhantes de Luxo, eles vão fazer parte desta nova tua vida?

FS – Agora numa fase inicial os únicos que me vão estar a acompanhar é o Primeira Dama e o Chinaskee, que é agora quem está a tocar a bateria. Antes do Chinaskee tinha estado o Luís Barros, que tinha gravado o outro disco. Depois vai estar também a Violeta na flauta e o João Pratas nos backing tracks, o lado mais eletrónico dos beats. No futuro, na possibilidade de ter cachets para tudo, voltarei a incluir o Alexandre Rendeiro (Alek Rein), que tocava a guitarra, e incluir também o C de Crochê, o baixista, dando uma dinâmica mais orgânica aos concertos. Agora nesta fase inicial, só consigo contar com uma formação mais curta, é sempre a fase do arranque, perceber por onde é que podemos ir. Depois mais para frente queria também incluir algumas vozes, como é um disco muito carregado de vozes e harmonias, queria poder ter mais gente em palco também a cantá-lo.


Na performance do festival da canção vais conseguir ter mais pessoas em palco ou vão ser só os três?

FS – O Festival da Canção é sempre com playback instrumental, não podes estar a tocar. Vou estar em palco com mais 5 pessoas a cantar, um grupo de quatro coralistas e a Vera Vera Cruz, que fez as vozes dessa música no disco. A apresentação há de ter os meus toques pessoais em relação ao que eu possa querer fazer.

Revezo soou-me a álbum otimista, tanto a nível das letras como da sonoridade, e também muito ambicioso. Há alguma temática principal neste álbum e, já agora, de onde vem o nome Revezo

FS – Eu não pensei muito na temática quando o estava a fazer, apercebi-me de um lado transversal ao disco, há qualquer coisa que aproxima as canções todas umas das outras. Será provavelmente o sinónimo de lar. Não sei se é um disco muito otimista, não sei se o ponto mais forte é esse, acho que é um disco que assume um privilégio ou pelo menos a capacidade de eu me aperceber dos privilégios que tenho. É um disco que se foca muito nessa ideia, de casa, da família, de fatores de conforto, carinho, como solução para problemas de coisas simples como querer voltar para casa depois de um dia de trabalho. Por exemplo, o “É tão bom” é uma música que fala sobre o excesso de vida noturna que eu estava a fazer durante um período e a forma como comecei a encontrar na família um certo apaziguamento, porque se calhar essa vida noturna estava a ser feita numa fase em que tinha a cabeça mais em alvoroço. Comecei a encontrar um lugar mais meu e é isso que chamo no fundo de casa e família. Não tem de ser literalmente uma casa, é mais nessa sensação de liberdade que eu sinto. Daí eu achar que sou privilegiado, porque o simples facto de poder ter uma vida em que tenho uma casa nos dias que correm já é por si um privilégio muito grande. Eu poder ter voz enquanto pessoa já é mesmo uma coisa muito privilegiada. 
O título Revezo foi um feliz encontro, lembrei-me do nome porque a palavra é muito bonita e, ao pensar no seu significado, começou a ganhar cada vez mais força, por ser uma prática agrícola que faz tanto sentido enquanto metáfora de vivência, essa ideia de teres de ter um campo com funções rotativas em que está um pasto a crescer para o gado comer e depois troca. É um bocado como nós somos obrigados a levar a nossa vida, a deixar sempre alguma coisa a repousar para poder usufruir depois, isto com a devida tranquilidade. 

Tens algum tema favorito no disco?

FS – Eu estou muito satisfeito com todos agora, ainda não tenho nenhum favorito. Quando começar com os concertos vou começar a ver. Acho que vai ser mais por exclusão, vou percebendo quais são os preferidos ou quais ainda não me cansam. 

O primeiro single de Revezo, “Jóia da Rotina”, teve direito a um vídeo simbólico em que funde o tradicional, as vestimentas são o que salta mais à vista, com novas formas de ver o mundo. Podes-nos contar a ideia por detrás deste vídeo?

FS – Eu deleguei completamente a criação do vídeo a um realizador (Miguel Afonso) com quem já tinha trabalhado num filme em que entrei como ator. Dei-lhe esse espaço, disse-lhe só que queria um vídeo muito bonito e que gostava que ele interpretasse o disco e tentasse colocar a sua visão no vídeo da música. Ele mandou-me inicialmente a primeira proposta de script e para mim foi muito fácil começar a encontrar justificações e aproximações do disco e, naturalmente, dar também algumas sugestões. É um vídeo que apresenta muito bem a síntese desse lado mais tradicional, de adulterar a tradição e o folclore com um lado mais plástico. O resultado do vídeo acaba por ser isso, a forma como a canção vai sendo explicada com imagens, essa ideia das novas tradições, novas famílias comunitárias, é um reajuste aos tempos e de aceitação da mudança que é necessária. 

Voltando ao Festival da Canção, és um dos compositores e interpretes que lá vão estar. Como é que surgiu essa oportunidade de participares neste concurso tão icónico da cultura nacional?

FS – De há uns anos para cá funciona por convite. Eu fui convidado pelo Nuno Galopim, atualmente o responsável do festival. Eu já andava a pressentir que isso ia acontecer, já ouvia alguns rumores de pessoas mais próximas a organizar o festival e comentava com a minha namorada que gostava de não participar. Não vi nada com bons olhos a minha participação num concurso, num evento mediático com este tipo de julgamentos e opiniões e que me fazia alguma confusão. Mas depois acabou por aparecer de facto o convite e nessa altura é que tens mesmo de decidir se sim ou sopas. Comecei então a avaliar os prós e contras e a perceber de que forma é que me divertiria a fazer isto e de que forma seria justo e honesto estar a participar num formato que não me é próximo e no qual até me sinto um bocado desconfortável. Decidi fazer uma canção propositada para o festival, não era suposto integrar o disco, mas acabou por acontecer, para aproveitarmos o momento de promoção, aliar os dois aspetos. 
À partida estava bastante reticente com a participação, mas comecei a perceber que seria se calhar mais proveitoso para mim enquanto montra de visibilidade mediática, poderia ser importante no sentido de desenvolvimento de carreira. Embora as coisas me tenham estado a correr um bocadinho melhor ao nível da massa crítica e da imprensa, não é significativo na qualidade da minha vida, não é uma coisa que eu possa dizer “estou tão bem que um bocadinho mais não me faz falta”. Na verdade, até faz e, portanto, esse lado do aproveitamento da carreira pesou na decisão. Fazer uma canção que eu atiraria com um propósito e uma direção mais concreta ao festival também me deixou mais satisfeito com a participação. Agora já não me via de outra forma, estou mesmo contente com a participação e acho uma coisa positiva, acima de tudo. 


Já tens ideias para o outfit e a performance a apresentar lá no festival?

FS – Não, eu quero deixar ainda em suspense porque estou a fechar alguns detalhes, não sei o quão plausível é levar algumas das coisas que eu quero levar. Também não quero estar a correr riscos de depois não acontecer e não ser tão bom (risos). Como é um programa de televisão nós temos algumas limitações de tempo de trocas e tudo mais, então há sempre uma ou outra coisa que pode não ser possível recriar no fim. 



Relativamente às tuas atuações, como é que escolhes a roupa, é uma continuação do teu dia a dia ou crias uma persona própria para o palco?

FS – É um bocado a mesma coisa, a única diferença é que se calhar cuido um bocadinho mais da maquilhagem. Não é em todos os concertos que eu vou mais montado. Há concertos em que estou um bocado mais assustado ou amedrontado, e acabo por também ficar um bocado mais standard, mais normativo na minha roupa, na minha maquilhagem. Há dias que no dia a dia até estou mais montado do que em concertos. A diferença dos concertos é que eu tenho ali normalmente uma hora antes de ir para o palco e tenho mais atenção ao detalhe da maquilhagem, às vezes não tenho e não consigo ter tanto cuidado. As roupas que eu uso em concerto são literalmente as roupas que uso no meu dia a dia, são as que eu tenho. A roupa que visto escolho em função de quão corajoso eu estou para assumir a minha expressão. Há dias em que não tenho de facto essa coragem porque me sinto olhado, não me sinto confortável com o julgamento dos outros. Por estar mais envergonhado, mais amedrontado acabo por não conseguir, porque ainda sinta alguma pressão, embora seja uma coisa em que já vou tendo cada vez mais confiança. 

És um artista muito associado ao transformismo e ao movimento queer, cada vez mais ao longo da carreira. Como é que tens gerido as reações?

FS – Tento ter cuidado para não ser confundido o espaço que eu ocupo. É uma coisa que é importante. Eu sei que tenho uma expressão queer. Acima de tudo é isso, logo faz-me assumidamente estar a defender um tipo de expressão. Eu não posso ocupar um espaço que não é meu. Eu nunca tive que sair do armário, por exemplo, é um espaço que é de alguém, eu não posso ocupar o espaço de uma voz homossexual ou transsexual. O meu sítio, o sítio que eu ocupo no espaço queer é acima de tudo de expressão, a minha expressão a nível de roupa e indumentária. É este o lado queer que eu tenho e naturalmente apoio todas as lutas interseccionais que possam haver. Sou completamente a favor da liberdade e da justiça. Tenho só de ter cuidado é com o espaço de fala que possa não ser meu. Aquilo que eu quero é poder andar vestido como bem me apetece, isto é a parte que me toca. O resto é a parte com quem eu sinto empatia e não tanto uma coisa que me toca diretamente. 
Acontece-me ser visto como homossexual e o problema disso não é eu estar a ser visto como homossexual, isso é me completamente indiferente, o problema é quererem que eu tenha a voz de alguém que sofre com uma coisa que eu não sofro. Eu posso sofrer com outros problemas, com outro tipo de julgamentos que se devem única e exclusivamente à maneira como eu me visto. Eu tenho uma relação empática por esses problemas, mas não posso falar por eles, não tenho esse direito, é um direito que é deles. Eu posso é dar-lhes espaço, dar visibilidade a essas pessoas para poderem falar, é isso que eu tento fazer quando introduzo essas temáticas nas minhas músicas. Espero que com isso as pessoas falem de um assunto e que ele se normalize. 

Revezo foi editado a 24 de janeiro pela Valentim de Carvalho em formato físico e digital. Podem adquiri-lo aqui.

Próximas datas de apresentação de Revezo:
14 Fevereiro – Porto, Maus Hábitos
28 Fevereiro – Vila Nova de Santo André
27 Junho – Lisboa, Centro Cultural de Belém
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