Spicy Noodles foi o nome escolhido para o projecto que nasceu no solarengo verão alentejano de 2016, numa residência artística. Érika Machado e Filipa Bastos partiram numa viagem de sons e imagens para escrever um diário a quatro mão, sendo as responsáveis por toda a parte criativa, das composições e execução das músicas, dos vídeos, às ilustrações, fotografias, e o que mais for preciso. Já circularam de norte a sul em Portugal, passando pela Casa da Música, Maus Hábitos, Festival Fnac Live, entre outros.
Depois de terem mostrado ao mundo em 2017 o seu primeiro single “Leve Leve” no álbum dos Novos Talentos Fnac 2017, as Spicy Noodles lançaram no final de janeiro o disco de estreia, Sensacional!, temperado com samplers, guitarras, teclados, brinquedos e bits eletrónicos que misturados dão uma explosão de barulhinhos em cada uma das canções.
Numa conversa de café no passado dia 14 de feveiro, falámos com o duo sobre as suas origens, o lançamento do disco de estreia, as suas motivações para criarem música alegre, entre muitas outras coisas. Fiquem com a entrevista completa em baixo.
Threshold Magazine – De onde surgiu o nome Spicy Noodles? Qual é a história por trás do projeto? Sei que começou no Alentejo.
Filipa Bastos – Exatamente. Temos que ir a 2016, recuar no tempo. Nós nessa altura inscrevemo-nos numa residência artística e tivemos a felicidade deste projeto ser aprovado. E então fomos para o Alentejo durante três meses. A nossa proposta inicial era fazer um vídeo e uma música ao longo destes três meses, a partir do nosso olhar passageiro pelo verão alentejano, no entanto acabou por se tornar um verão tão produtivo que conseguimos apresentar nove músicas e nove vídeos. Acho que fizemos ainda mais que nove músicas. Tudo isto acabou por culminar num concerto, que à partida não seria para acontecer, mas nós pensámos “Já temos tanto material, acho que seria interessante nós irmos para o palco e apresentar isto”. Então começamos a tentar imaginar como seria viável construir este concerto, porque existem muitos barulhinhos e somos só duas pessoas. Apesar de ter sido um bocadinho difícil, conseguimos encontrar vários instrumentos que nos ajudaram a pôr este projeto em pé, no palco.
Érika Machado – De uma forma orgânica, poderíamos pôr tudo no computador e carregar no play. Isso a gente não queria. Não queríamos usar o computador para soltar nada, a não ser para fornecer os timbres para os teclados da Filipa.
Filipa – No fim deste três meses houve um festival da residência artística, o Atalaia Artes Performativas,e eles convidaram-nos para apresentar este concerto. Entretanto, surgiu um outro convite a partir da Gerador, em Lisboa, para um novo concerto. Depois nós começámos a pensar “Bom, já temos este projeto em cima da mesa, seria interessante agora começar a espalhá-lo um bocadinho mais por Portugal”. Foi nessa altura que surgiu a necessidade de procurar um nome, inicialmente tentamos procurar um nome que evidenciasse esta questão de sermos duas pessoas a construir o projeto, mas nunca encontrámos um nome muito bom com esta ideia. Nesta residência artística havia uma artista coreana que se chamava Ji Sung e ela era professora universitária. A meio da residência ela teve de ir à Coreia do Sul e quando voltou trouxe um saco gigante de spicy noodles. Houve uma noite em que eu e a Érika estavamos no computador à procura do nome para a banda, estavamos a comer spicy noodles e entretanto alguém disse “E se fosse Spicy Noodles?”, e começamos a rir, na brincadeira. Entretanto, começámos a olhar para a caixinha, que tem sempre muitas cores e alguns bonecos. A nossa estética visual também tem sempre muita cor.
Érika – Como a gente dispara muitos samples na NPC e vai brincando e variando os beats a partir da loop station, a gente pensou que era mesmo isso, porque vêm um monte de pacotinhos dentro para você pôr os tempêros e fazer aquela comida, que também é bastante sintética. Isso tem muito a ver com o nosso som, acho que esse nome é perfeito.
Filipa – Temos os pacotinhos de explosões de sons e o aspeto colorido da coisa.
TM – Já deu para perceber que vocês usam bastantes instrumentos no vosso som. Que instrumentos usaram em Sensacional!?
Filipa – Nós temos esta loop station, temos a NPC, guitarra elétrica e a acústica, temos um guitalele, um Casio, aqueles pianinhos dos anos 80, temos um Yamaha todo desdentado, também dos anos 80, um Volka, um baixo, xilofone de brinquedo e um controlador.
Érika – Tudo o que a gente tem, nós levamos para o palco. E tudo o que usamos no palco é tudo o que usámos para fazer o disco em nossa casa. A gente leva o estúdio todo.
Filipa – O nosso estúdio Quebra Galho vai mesmo para o palco também. Somos só duas e então temos de arranjar maneira de conseguir pôr o som no palco. Às vezes deve faltar um ou outro barulhinho, mas nós tentamos levar tudo para o palco.
Capa de Sensacional, disco de estreia das Spicy Noodles
TM – Podem-nos dizer como funciona o vosso processo de composição e gravação?
Érika – Nós somos um bocado estrambelhadas, não temos assim uma metodologia de trabalho. Às vezes a música surge de uma ideia, de uma palavra. Por exemplo a “Converseta”, uma das canções mais antigas feitas nessa residência, surgiu porque eu vi uma criança dizendo na porta de um museu “Estavamos ali na converseta”. Eu achei a palavra muito fixe, nunca tinha ouvido antes e sugeri fazer uma música usando essa palavra. “José Francisco” surgiu de uma experiência”. Todas as pessoas são um pouco “José Francisco”. A gente estava-se sentido muito “José Francisco” e sentamos uma manhã para escrever a letra. Às vezes compomos na guitarra, às vezes fazemos os beats no computador e vamos por cima. O “Para Chegar” foi um duelo de tecladinhos. Ela com um tecladinho e eu com outro. “Ficou fixe e parece música de videogame. Vamos fazer uma letra”.
Filipa – Nunca existe uma fórmula muito concreta mas existem tentativas e erros que vão acontecendo, às vezes a partir de uma imagem, de uma palavra, outras vezes a partir dos tecladinhos que nós desencantámos aí em algum sítio.
TM – É de forma livre.
Filipa – Exato. A nossa formação também não é em música, nós acabamos por experimentar muito. Acaba por dar mais liberdade.
Érika – Na verdade a gente faz a música que a gente consegue. A gente não tenta fazer igual ao que já tem aí. Se tentarmos fazer igual, a gente vai fazer muito pior, nós somos musicistas. É mesmo tentativa/erro. Dá certo, aí isso fica. A gente primeiro constrói a música e depois aprende a tocar.
TM – O que vos motiva a compor música tão alegre e divertida?
Érika – Acho que a gente e todas as pessoas estão sempre em busca de um mundo melhor. Mesmo que a gente fale de coisas que são estranhas, como por exemplo um “José Francisco”, a gente tenta colocar isso de uma forma leve e ri dessas desgraças e de nós mesmos. Eu particularmente gosto muito de música alegre. Acho que quando escuto uma música que é alegre, eu fico alegre. Muda o meu dia.
TM – Eu reconheço que ouço muito mais músicas tristes, acho que calha. Às vezes quero ouvir músicas alegres e pareço que não as encontro. Parece que não há tantas músicas alegres como músicas tristes.
Filipa – Eu também não sei se tem a ver um pouco com este nosso lado de cá da Europa, porque se pensarmos no Brasil, nós temos o Tom Jobim que canta “Tristeza não tem fim / Felicidade sim”, uma música que é super alegre e super bonita, começa logo com essa frase referente à tristeza mas consegue construir todo um mundo bonito e encantado ali à volta desta ideia. Acho que talvez a Érika consiga trazer esta felicidade brasileira para dentro destes conteúdos, que às vezes não são tão alegres mas podem ser tratados de uma forma leve e alegre.
Érika – A “Por aí” eu acho que é uma música menos alegre, embora diga “Por aí, entre a sorte e o azar, procurando um lugar no mundo, só para ver a alegria chegar e tudo ficar melhor, um pouco”. Eu acho que é a música mais triste do disco. É um triste buscando uma alegria também.
TM – É bom ter essa perspectiva das coisas. Ver a parte boa da parte má. É mais ou menos isso.
Vi que lançaram o vosso primeiro single “Leve Leve” na compilação Novos Talentos Fnac em 2017 e li também, na press release, que o vosso disco Sensacional! estava previsto ser lançado mais cedo, mas que houve um roubo. Eu queria saber mais sobre isto.
Filipa – Na realidade aconteceram dois roubos aqui em Coimbra. O do disco foi o segundo. Quando nós chegámos a casa, ela tinha sido invadida e o ladrão decidiu roubar não só o computador mas também os discos externos. Nós tínhamos tudo lá dentro, não tínhamos nada salvo na Cloud. Não tivemos de recomeçar propriamente do zero mas foi ir um bocadinho lá atrás para voltar a fazer tudo de novo. Acho que no fim das contas acabou por ser positivo.
Érika – A gente quando faz alguma coisa pela segunda vez acho que faz sempre um bocadinho melhor. As coisas que a gente gostava muito da primeira edição, a gente conseguiu lembrar e reproduzir. As coisas que não tínhamos tanta certeza, a gente teve a chance de poder tentar fazer de novo.
TM – É impressionante como conseguiram chegar a este resultado a partir da memória.
Falando agora do single “Juntas na Fita”, como é que surgiu a ideia do vídeo caseiro, gravado em stop motion com duas bailarinas de plasticina?
Érika – Já não me lembro muito bem de onde surgiu a ideia. A gente achava que a “Juntas na Fita” talvez fosse a música mais dançante do disco. Como a gente não sabe dançar, alguém tinha de dançar por nós. Foi uma primeira experiência que nem sabíamos se ia dar certo. Fomos ao chinês e comprámos aqueles bonequinhos de madeira articulados para fazer desenhos, reproduzimos nós as duas e começámos a colocar as bonecas para dançar e tirar fotografias. E elas realmente dançaram!
A primeira versão foram só as bonequinhas dançando. Depois a gente achou muito cansativo um videoclip inteiro com duas bonecas de plasticina dançando num fundo branco. Então a gente começou a tentar criar outras histórias editadas em digital, buscar recortes e imagens da Internet. A única ideia que a gente tinha predefinida era de que as bonecas deveriam dançar. As outras ideias foram surgindo enquanto a gente ia desenvolvendo. Cada movimento, cada cena foram pequenas conquistas. Ao todo foram 3800 fotos, tivemos que tirar o fundo de todas para poder redesenhar atrás, montávamos no Photoshop para depois passar para o Premiere. Foi muito divertido.
TM – Resultou bem, ficou bonito
Érika – Fixe, obrigada!
TM – Têm alguma música favorita em Sensacional!?
Érika – Eu vario de dia para dia. Quando a gente tinha acabado de gravar o disco, a última que ficou pronta foi o “Juntas na Fita”, que até é uma música super nova. Acho que nesse momento era a minha música favorita. Talvez por ter feito durante tanto tempo o videoclip e ficar ouvindo aquela música tantas vezes já mudei um bocadinho a minha música favorita. E acho que sei qual é a da Filipa também.
Filipa – Eu não consigo dizer uma. Eu acho que existem três que são muito especiais para mim. A primeira de todas é a “Leve Leve”, porque também foi o primeira “filha”. Foi a música que nos apresentou e através da qual o Henrique Amaro nos chamou para os Novos Talentos da FNAC. É especial por isso, porque foi a primeira música de todas a ser feita e nos abriu algumas portas para entrarmos noutros espaços. Depois existe esta “Juntas na Fita”, que é muito especial para mim, a letra diz tudo. Existe outra que eu gosto muito, eu venho aqui da Europa e também gosto dessas músicas tristes como estávamos a falar há bocadinho, que é a “Por aí”. É a música talvez mais diferente e tem um andamento um bocadinho mais lento, mas eu gosto muito da letra, dos instrumentos que foram usados, como o Volka, que é instrumento que não é assim tão usado, gosto da sonoridade que ele traz para a música. E também gosto muito da letra e tudo o que ela diz. Mas a Érika acabou por não dizer qual é a sua preferida.
Érika – Eu acho que não tenho nenhuma preferida. Realmente a “Leve Leve” é muito especial por tudo o que ela nos trouxe. Gosto de muito de fazer ao vivo a “Sensacional!”, é bem divertida, é uma música um bocado de inocência, o refrão fala de dois super fails, o Mr. Bean e o Charlie Brown, dois fails completos. Mr. Bean super trapalhão e o Charlie Brown sofre bullying dos melhores amigos e depois fala “Fico tão contente por me achar sensacional”. Eu acho a música leve, engraçada e inocente. Gosto também da “José Francisco”, acho que tem uma letra engraçada.
TM – Se vos fizesse esta pergunta daqui a um ano, se calhar a resposta já será diferente.
Érika – Ou talvez na próxima semana (risos).
TM – Ou então logo à noite depois do concerto.
Érika – Acho que a gente gosta de todas. Tínhamos um reportório bem maior quando escolhemos gravar estas 9 canções. Tínhamos coisas idiotas que eu adorava mas a Filipa não gostavam muito, ficou de fora. A Filipa gostava muito de uma que era “Prefiro a ruga ao botox”, e eu não estava certa sobre esta música. Essas músicas a gente não estava completamente convencidas e ficaram no baú.
Filipa – Ou então são para levar para os concertos.
TM – Sim, para testar as reações do público.
Érika – “Prefiro a ruga ao botox” a gente até tocava em concertos antigos, para abrir. Eu curtia fazê-la ao vivo mas na hora de fazer o disco, achei que tínhamos músicas mais fortes.
TM – Vocês têm uma ligação muito grande à cidade de Coimbra, gravaram cá o disco no estúdio caseiro Quebra Galho e o vosso disco saiu pela Lux Records, mas nenhuma de vocês nasceu aqui. Tenho aqui apontado que a Érika vive em Lisboa e a Filipa no Porto.
Filipa – Eu vivo por aí (risos). A Érika tem uma grande ligação a Coimbra porque ela veio para cá em 2010 fazer um mestrado.
Érika – Nos ultimos 10 anos eu andei por aí, já vivi em Belo Horizonte, São Paulo, Lisboa, Porto, Alentejo. Coimbra nos últimos 10 anos foi a cidade que eu vivi por mais tempo. Nos últimos 3 anos estive aqui sempre em Coimbra. Ainda venho a Coimbra todas as semanas por causa do doutoramento que ando a fazer. Saio de Coimbra mas Coimbra não sai de mim (risos).
Filipa – Eu nasci em Trás-os-Montes mas com 10 anos de idade vim aqui para Coimbra, fiz aqui a escola. Acho que foi a partir do momento em que eu conheci a Érika que passei também a andar aí pelo mundo. Desde Porto, Lisboa, também fui para o Brasil, morei lá um tempo em Belo Horizonte e em São Paulo. Depois voltámos para cá, começámos este projeto no Alentejo. Nos últimos 6 meses eu vivi no Porto, agora estou a fazer um curso aqui em Coimbra, Design, Multimédia e Comunicação na ESEC. Vou ficar os próximos 3 meses e meio em Coimbra, mas depois já tenho projetos para no fim desse tempo ir para outro lado. Ninguém é daqui mas estamos sempre por aqui.
TM – Para terminar esta entrevista, uma pergunta que costumo fazer em todas as entrevistas. Quais os artistas ou álbuns que tens ouvido nas últimas semanas?
Érika – Nas últimas semanas a gente não tem ouvido nada, temos tido tanto trabalho. Eu passei o Natal no Brasil com a minha família e acabei chegando dia 27 de janeiro, mesmo em cima do lançamento do Sensacional!. Tem sido uma correria tão grande que não temos de ouvir quase nada.
Filipa – É verdade, estas últimas semanas têm sido caóticas, em termos de disponibilidade. Temos ensaiado muito e pouco tempo temos para fazer mais coisas.
Érika – O novo single dos Clã, “Tudo no Amor”, é incrível. Saiu no mesmo dia que o nosso single “Juntas na Fita”.
Filipa – “Tudo no Amor” foi mesmo a única música que consegui ouvir neste últimos tempos, e ouvi mesmo em modo repeat, realmente é uma música lindíssima. Falando nos Clã, podemos também falar aqui do Sérgio Godinho, que foi o compositor dessa música, também é uma pessoa inspiradora. Já que falamos nos Clã, aproveito também para falar sobre os Pato Fu, particularmente sobre o John Ulhoa que foi o produtor do nosso disco, e que também é um grande parceiro dos Clã, compõe para eles, tanto em nome próprio como também a banda Pato Fu. São os irmãos brasileiros dos Clã.
Érika – Ouvi também “Duodeno”, o single novo do Arthur de Faria, um EP com duas músicas que o John também produziu. Desde que a gente parou para fazer o disco, tivemos que nos concentrar tanto nas nossas coisas que quase que não foi possível prestar atenção em mais nada. Somos só as duas para fazer o site, o videoclip, o encarte do disco, o disco todo.
Quando a gente passa o dia todo escutando a nossa música, o silêncio torna-se algo muito precioso.
TM – Chegaram a ouvir o disco depois de o terem terminado?
Érika – Sim, nós somos obrigadas a ouvir o disco. Nós gravamos as músicas e depois temos que aprender a tocá-las (risos). A gente vai experimentando coisas e editando até achar que está fixe.
TM – Há alguma coisa que tenha ficado diferente na versão de estúdio, que vocês agora não gostem muito e depois ao vivo tentem transformar isso?
Filipa – Eu acho que não.
Érika – Também acho que não. Num concerto quando a gente erra não tem como voltar atrás, no disco ele fica pronto quando a gente fica satisfeita.
Sensacional! foi composto entre Julho e Agosto de 2019 e foi todo gravado e pré produzido no estúdio caseiro Quebra Galho em Coimbra, e depois seguiu para o Estúdio 128 Japs em Belo Horizonte no Brasil, onde o John Ulhoa (Pato Fu) cuidou da produção, mistura e masterização. O disco saiu em formato físico e digital no
passado dia 31 de janeiro com o selo da Lux Records epode ser escutado na íntegra em baixo.